Euphoria – 1ª temporada: um estímulo ao diálogo entre gerações

Euphoria – 1ª temporada: um estímulo ao diálogo entre gerações

Na metade de junho deste ano, a HBO lançou sua nova série, “Euphoria. Oito semanas depois, com os tradicionais episódios dominicais, a primeira temporada ganhou seu desfecho e conseguiu 1,2 milhão de espectadores através de todas as plataformas. Voltada para temáticas que abrangem o público jovem, mas sem necessariamente afastar a audiência adulta, a estratégia proposital do canal para atrair consumidores mais novos parece ter funcionado muito bem: “Euphoria” é a segunda série com maior presença social da HBO, vencida apenas por “Game of Thrones. Mas por quê? “Euphoria” pode não ter dragões ou batalhas como a série fantástica baseada nos livros de George R. R. Martin, mas é tão cativante quanto.

A trama de “Euphoria”

Baseada em uma série israelense de 2012 de mesmo nome, as duas produções não poderiam ser mais diferentes. “Euphoria acompanha a vida de Rue (Zendaya) e outros seis adolescentes principais durante o ensino médio, enquanto eles têm que lidar com saúde mental, drogas, sexo, identidade, trauma, redes sociais, amor e amizade.

Entretanto, diferente da maioria das séries adolescentes, os dramas escolares e a idade não são o foco principal da narrativa, servindo mais como uma contextualização do mundo que habitam. Todos eles se encontram presos em uma rede de vícios – alguns mais literais que outros.

O processo de se descobrir como indivíduo, junto à busca pela aceitação alheia nesse meio tempo, impacta os relacionamentos cotidianos, sejam eles familiares, românticos ou de qualquer outro tipo, e é nisso que “Euphoria se agarra, funcionando quase como um estudo psicológico das aflições vividas pelas gerações mais novas, isso sem deixar de pontuar os medos das gerações mais velhas no mundo contemporâneo.

“Euphoria”: personagens realistas ou puro sensacionalismo?

Euphoria
Kat, interpretada pela atriz filha de mãe brasileira, Barbie Ferreira (Imagem: reprodução/HBO)

Existe uma discussão na internet de que “Euphoria conseguiu seu sucesso através do uso do sensacionalismo. Algumas pessoas não são exatamente contra esse “recurso”, mas o usam como argumento de que as futuras temporadas não conseguirão dar conta de prender a espectadora da mesma maneira. Se isso se concretizará, não há como saber. Entretanto, é possível debater se adolescentes realmente possuem comportamentos como os que a série demonstra ou se é tudo muito exagerado.

A verdade é que o padrão de ações (auto) destrutivas que as personagens possuem não deve ser fixado ao conceito de Geração Z (20 anos ou menos), por exemplo. Isso porque o próprio diretor e roteirista de “Euphoria, Sam Levinson, que obviamente não se enquadra nessa faixa etária, viveu o que colocou no papel. 

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Aos 34 anos e sóbrio há 14, Levinson sofreu com o vício em drogas quando ele mesmo era adolescente. Essa vivência, junto com as histórias de outras pessoas que ele conheceu, foram colocadas em cada uma das personagens de “Euphoria, em um processo de colaboração artística que continuou com elenco, inclusive. Os atores contaram que tiveram longas conversas com o diretor que resultaram na adição de características psicológicas e trejeitos físicos pessoais deles nas personagens, até chegarem nas versões atuais.

Por mais que ainda parta do olhar hegemônico da indústria (heterossexual, masculino e branco), discutido com mais visibilidade nos últimos anos, Levinson também estava muito disposto a ouvir e colaborar com aqueles ao seu redor. Como a própria Zendaya disse em entrevista, ele poderia simplesmente ter moldado a série ao redor de um garoto branco para espelhar sua experiência, mas optou por seguir caminhos completamente distintos. 

Pela proximidade tão íntima do criador com as temáticas que o roteiro aborda e sua disposição em incluir outras perspectivas, “Euphoria atinge níveis de profundidade em sua representação que outras séries ditas teen não conseguiram. 

Drake, um dos produtores de “Euphoria”, junto com Sam Levinson e Zendaya (Imagem: divulgação)

Esses detalhes retornam à crítica de que o sucesso da série se apoia no sensacionalismo. É claro que eventos são aumentados para efeito dramático, afinal, a série de ficção é uma forma de entretenimento. Contudo, o que faz as consequências de cada problema ecoarem com a audiência depois do episódio ter terminado (e, agora, a temporada) não é o drama em si, mas a preocupação com aquelas personagens. 

Mesmo sem uma identificação pessoal com as situações exibidas e até com a recriminação de algumas decisões, Euphoria consegue gerar empatia. Isso acontece porque as vidas passadas e privadas daqueles adolescentes são exploradas. Com o roteiro oferecendo detalhes para uma melhor compreensão, a chance de o público se importar com as histórias que acompanha aumenta muito. Há um certo desejo de que eles fiquem bem ao final.

Veja a seguir algumas das principais temáticas abordadas por Euphoria”:

Rótulos e interdependência

Jules e Nate em Euphoria
Jules e Nate no terceiro episódio de “Euphoria” (Imagem: reprodução/HBO)

Estas duas temáticas compõem um dos pilares mais importantes de “Euphoria. A interdependência é assunto constante: como nós, seres humanos, sempre estamos inclinados a buscar algo nos outros, a depender de opiniões coletivas, dispostos a mudar pelos demais, tudo é sempre social, antes mesmo de se tratar sobre redes sociais. 

Sendo assim, os adolescentes, talvez mais do que outros grupos, sofrem com a visão que as demais pessoas têm deles, sejam essas figuras colegas de classe ou familiares. Todavia, em “Euphoria nenhum dos rótulos são definitivos; as primeiras impressões que tanto o público quanto as personagens têm uma das outras são desafiadas a cada cena, permitindo que cada um dos jovens vá muito além do que tramas estereotipadas teriam delineado para eles. 

As introduções do primeiro episódio são pautadas no que estava acontecendo na vida de cada um deles naquele momento ou em um passado recente, em vez de moldar as histórias de acordo com a fisicalidade de cada personagem. O exemplo mais notável dessa abordagem é Jules (Hunter Schafer), que não aparece como simplesmente “a garota trans que chegou na cidade”, mas sim como a recém-chegada em uma cidade menor do que estava acostumada. 

Vemos suas perspectivas tentando navegar o novo ambiente junto a comportamentos do passado, como encontros marcados através de aplicativos de namoro. A história dela já parte de um ponto muito além de sua identidade, permitindo que ela se desenvolva e incentive o público a acompanhar a velocidade da narrativa.

Sexo e sexualidade

Euphoria
Maddy e Nate dançando (Imagem: reprodução/HBO)

Além da representatividade especificamente LGBTQ+ que “Euphoria aborda com certa tranquilidade (no sentido de que não hesita diante do assunto), a série faz questão de incluir todas as dúvidas e questionamentos que são naturais da adolescência. Maddy (Alexa Demie), que tem um relacionamento “iô-iô” abusivo com Nate (Jacob Elordi), repete ao namorado a frase que ouviu da amiga Kat (Barbie Ferreira): “sexualidade é um espectro”. 

Ainda que o momento quando Maddy proferiu a frase não tenha sido muito bom, essa é realmente uma filosofia que “Euphoria abraça. Rue não tem sua sexualidade definida e Lexi (Maude Apatow) lida com a possibilidade de ser lésbica. Nate, então, possui todo um arco na trama junto a Jules e seu pai Cal (Eric Dane) que trata sobre experimentação e o universo gay e o quão destrutiva a descoberta sexual pode ser quando misturada com valores machistas enraizados.

Euphoria
Cassie e McKay durante uma festa na casa dele (Imagem: reprodução/HBO)

Já em uma perspectiva hétero, McKay (Algee Smith) e Cassie (Sydney Sweeney) têm uma interação logo no primeiro episódio, onde que ele é bruto com ela no sexo, sem qualquer discussão prévia. Quando Cassie rejeita seu comportamento, ele fica confuso e justifica: “pensei que você gostasse disso”. 

Imediatamente em seguida, a edição (brilhante) de “Euphoria passa para um compilado de imagens borradas de vídeos pornôs com a voz de Rue por cima, explicando que através do consumo exacerbado desse conteúdo, garotos estão aprendendo que sexo é uma atividade pela qual eles ganham não só prazer, mas também controle.

Apesar de estudos apontarem que os jovens de agora transam menos do que as gerações anteriores, o consumo de conteúdo pornográfico é um tópico válido de ser discutido. Em 2016, o ator Terry Crews (Brooklyn 99, “As Branquelas”, “Todo Mundo Odeia o Chris”) compartilhou como a pornografia havia se tornado um vício para ele, chegando a ter que fazer reabilitação. Com o crescimento do uso da internet por pessoas cada vez mais novas, é interessante que se fale sobre a possibilidade delas serem influenciadas pelo conteúdo adulto disponível nas redes.

Privilégios econômico, branco e masculino como arma

A escritora Clarkisha Kent publicou um artigo na Entertainment Weekly (link em inglês) sobre como o Nate Jacobs é o vilão mais assustador da TV atualmente – e é verdade: Nate é um jovem que não só acumula todos os privilégios possíveis na nossa sociedade, como não tem medo algum de usufruir deles para benefício próprio – e destruição alheia.

O roteiro de “Euphoria conseguiu recriar perfeitamente o comportamento de um garoto que, além de privilegiado, é mimado, arrogante, irascível, dominador e sexualmente confuso. As ações de Nate são instáveis, fazendo com que algumas cenas pareçam até de uma série de terror. Ele protagoniza momentos com reviravoltas muito bem planejadas  de antemão, sem que desconfiem de seus objetivos. 

Não à toa que um dos maiores desejos dos fãs é ver o garoto sofrer as consequências de seus atos. Entretanto, Nate sempre consegue escapar. Quando não prevê os desdobramentos de suas decisões e faz uso de seus planos secundários, consegue contornar os resultados pela associação com seu pai (bem influente na cidade, dono da maior parte dos empreendimentos) ou por não ter seu discurso masculino questionado pelas autoridades. 

Euphoria
Nate e seu desconforto no vestiário, abordado no episódio 2, “Stuntin’ Like My Daddy” (Imagem: reprodução/HBO)

O ator Jacob Elordi – que ficou conhecido como o Noah do romântico filme-fenômeno da Netflix “A Barraca do Beijo” – tem uma das melhores atuações de “Euphoria. As nuances que consegue demonstrar podem confundir as espectadoras no início da temporada, principalmente quem quer dar uma chance dele se redimir e notar o caminho que está traçando para si mesmo. Contudo, nos quinto e sexto episódios, já não há justificativa que salve: Nate tem plena consciência de seus atos.

O impacto das drogas na família (e em todos ao redor que se importam)

Em “Euphoria, Rue é exemplo de que o vício afeta não só o usuário, mas todos que entram em contato com ele. Alguns episódios ao início da temporada permitem que haja, antes de qualquer coisa, a construção de um certo “apego” pela personagem. Sabe-se que ela não se manteve sóbria nem mesmo durante a reabilitação, de onde acabou de sair, mas também nota-se que Rue não quer magoar sua mãe Leslie (Nika King), nem sua irmã Gia (Storm Reid). 

Gia, irmã de Rue
Gia, irmã de Rue, em cena no hospital (Imagem: reprodução/HBO)

Em outras palavras, Rue se encontra em uma fase que ela não está no seu pior momento – e essa sendo a primeira impressão que Euphoria permite que a audiência tenha de Rue. Portanto, na hora em que se vê o verdadeiro ponto baixo que o vício pode a deixar, o impacto é muito maior.

Com Rue em abstinência, a deterioração da personalidade dela é gigantesca. Ela grita com Fezco (Angus Cloud), seu amigo de anos (e traficante), enquanto bate em sua porta e o acusa como o principal culpado por ela ser viciada. Em outro momento, Rue é capaz de ameaçar a própria mãe com um caco de vidro por ela ser um obstáculo entre a garota e as drogas. 

Essa cena foi uma das inúmeras que gerou alvoroço (merecido) na internet, pedindo que Zendaya seja indicada ao Emmy, prêmio de atuação da televisão norte-americana. Realmente, para quem já viu a atriz nos novos filmes do Homem-Aranha (“De Volta Para Casa” e “Longe de Casa”) ou antes no Disney Channel, seu trabalho em “Euphoria é bem diferente – pra dizer o mínimo.

Moral da história de “Euphoria”

Último episódio de Euphoria
Rue e Jules no baile da escola (Imagem: reprodução/HBO)

Euphoria” tem muito a ser analisado. Com poucos episódios, a série trouxe à tona assuntos modernos que afetam a todos. Ela se tornou um fenômeno não sem motivo: há uma demanda no entretenimento por representações mais críveis, próximas aos dilemas atuais – e é o que a primeira temporada entrega.

Vale ressaltar que Levinson disse que o objetivo de “Euphoria” não é ser uma “cura” para tudo que está acontecendo. Contudo, colocar todos esses assuntos em foco e em discussão é um bom início para gerar empatia e, consequentemente, compreensão. A vontade dele era de “estender uma mão” tanto pros adolescentes que passam por essas situações quanto pros adultos e demais pessoas ao entorno desses núcleos.

A primeira temporada não tem (nem tenta ter) uma moral específica – é mais uma tentativa de funcionar como um mecanismo de aproximação. É uma mera olhadela em situações complicadas, sem tentar ativamente fetichizar ou glamourizar o estado em que essas pessoas se encontram.

Haverá segunda temporada de “Euphoria”?

Sim! A HBO confirmou, pouco menos de um mês depois do início da exibição de “Euphoria, que a série voltaria para uma segunda temporada. Com o oitavo episódio da primeira temporada trazendo mais perguntas do que respostas sobre as tramas de cada uma das personagens, o anúncio de que haverá continuação serve de alívio para os fãs. 

Apesar da confirmação, ainda não há data de estreia prevista para a segunda temporada. Portanto, com uma espera de no mínimo um ano, a opção que resta é ouvir em loop a incrível trilha sonora criada pelo Labrinth.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Graduada em Publicidade e Cinema pela UFMG, se interessa pelos mais diversos assuntos. Comediante por natureza e professora por acaso, se descobriu escritora por necessidade. Sonha em ser uma poliglota fluente, mas não consegue focar em estudar um só idioma por vez.
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