“Noiva em Fuga” e a reivindicação do game over feminino

“Noiva em Fuga” e a reivindicação do game over feminino

Na primeira vez em que assisti “Noiva em Fuga”, eu senti muita raiva da Maggie, a protagonista interpretada por Julia Roberts. Afinal de contas, que pessoa sem sentimento faria isso seguidamente com vários homens, deixá-los esperando no altar? Até onde eu entendi, uma mulher não deveria fazer nada além de agradecer a honra de ser pedida em casamento, não é mesmo?

Claro que era o final dos anos 90 e a minha ideia de protagonismo feminino se resumia em algumas frases soltas nas músicas das Spice Girls. Trazendo o filme para a realidade atual e as discussões acerca do amor romântico, voltei a pensar na construção dessa personagem e nos aprendizados sobre toda essa ideia de feminilidade.

Noiva em fuga

As mulheres sempre querem casar?

Noiva em Fuga” (Runaway Bride, no original) foi lançado em 1999, nove anos depois do aclamado “Uma linda mulher”, pelo mesmo diretor Garry Marshall e, todos sabem, com a mesma dupla romântica interpretada por Richard Gere, Julia Roberts e toda sua química.

O filme abre com as patas de um cavalo correndo em um campo aberto. Na sequência em zoom out, vemos a atriz mais bem paga do mundo, na época. Vestida de noiva e com direito a véu e bouquet, que assistimos serem destroçados em sua rota de fuga sobre quatro patas.

Em uma sociedade que até hoje faz brincadeiras como o célebre game over do homem quando vai se casar, podemos entender que uma noiva fugindo permanece sarcasticamente delicioso – e uma pequena trívia aqui, na vida real, Julia Roberts foi quase uma noiva em fuga, desistindo de seu casamento com o também ator Kiefer Sutherland apenas três dias antes do casamento deles

Foto: reprodução

O homem de meia idade que não sabe nada de mulheres

Aos olhos do jornalista Ike Graham (Richard Gere), vamos investigando essa mulher considerada uma men eater, “devoradora de homens” e percebendo aos poucos como todas as camadas desse estereótipo vão caindo por terra. Maggie trabalha em uma loja de materiais de construção e se veste como tal, totalmente fora do padrão da fêmea delicada; e ela é carinhosa e dedicada ao seu atual noivo Bob (Cristopher Meloni muito antes de “Law&Order”).

Enquanto Ike vai criando uma admiração por Maggie na medida em que conhece seus dramas familiares, como o pai alcoólatra e o fato de ela ter deixado os estudos depois da morte da mãe, vamos compreendendo a profundidade de suas escolhas. Em uma cena com sua ex-mulher “Ellie” (Rita Wilson), ele confirma que o casamento deles não havia funcionado, porque ele apenas não enxergava sua esposa.

Noiva em fuga
“Noiva em Fuga” (GIF: reprodução)

A metáfora dos ovos

E então Ike começa a desenvolver a sua teoria sobre a recorrente fuga da Maggie, saindo da simplificação da mulher sem coração e indo totalmente na contramão disso. Ike compreende um pouco da necessidade forjada na feminilidade de agradar a todo; vai entendendo como Maggie responde a seus noivos da forma que ela acha que eles querem que ela responda.

Os tradicionais ovos do café da manhã norte-americano vão se transformando de acordo com o homem que está a seu lado, mostrando que, na verdade, nenhum de seus noivos estava preocupado em entender quais ovos eram os preferidos de Maggie.

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Isso demonstra a dificuldade dos relacionamentos idealizados, porque não saem da superfície do que é agradável. Ike não é melhor que nenhum dos noivos, ele só parte de um pressuposto investigativo que o obriga a enxergar o objeto do seu estudo, o que nesse caso realmente permite que ele se abra para amar de verdade uma pessoa completa, enquanto os noivos de Maggie apenas amavam o reflexo deles mesmos nela.

Noiva em fuga
“Uma Linda Mulher” (GIF: reprodução)

A competição feminina não será naturalizada

Existe um script claro que Maggie tenta seguir, além do da filha que provém pela casa e cuida do negócio do pai, abdicando de sua formação em desenho industrial. Ela também precisa encontrar um homem para chamar de seu, que cuide dela, e então ela segue interpretando essa competição com outras mulheres em busca de ser o centro das atenções, inclusive com o marido de sua melhor amiga Peggy (Joan Cusack).

É muito bonita a conversa que as duas têm depois disso, com Maggy se dando conta aos poucos de como ela reproduz muitas coisas que não são essenciais para ela. Importante lembrar que “Noiva em Fuga” passa no teste Bechdel por conta desse relacionamento das amigas e dessa troca que acontece entre elas – e é surpreendente quão raro isso acontece em comédias românticas nos anos 90.

Noiva em fuga
Maggie e Peggie em “Noiva em Fuga” (Imagem: reprodução)

Uma questão de vulnerabilidade

Tanto Maggie quanto Ike têm medo de estarem vulneráveis; no caso dele, a proteção vem em uma forma de misoginia encenada, escrevendo coisas terríveis sobre mulheres e partindo de estereótipos que o mantém protegido do que possa machucá-lo. Já Maggie também busca algo em seus homens, algo que a defina, como testes de personalidade em que ela descobre, só no final, que estava buscando fora dela.

Isso é muito comum quando se trata do amor romântico que entende a felicidade completa apenas no encontro dessa “outra metade”, esquecendo o fato de que, na realidade, somos todos seres completos e inteiros – e que ser inteiro requer trabalho e autoconhecimento.

Uma ressalva sobre a ideia do homem salvador 

Mesmo com Ike e toda a troca real que eles tiveram nessa vulnerabilidade necessária para o amor, fica claro que Maggie segue aceitando se comprometer sem se conhecer de verdade, e então ela foge mais uma vez. No último bloco de “Noiva em Fuga“, ela volta a pensar no seu negócio com o design de luminárias e finalmente descobre que tipo de ovos gosta. Só então, quando ela realmente está completa, é que ela busca pelo homem que escolhe, porque o quer ao seu lado e não para reproduzir seu modo de vida.

Na cena em que pede Ike em casamento, ela reproduz seu discurso anterior que resume a realidade de um relacionamento não idealizado: Eu garanto que vão haver tempos difíceis e garanto que de vez em quando um de nós, ou os dois, vão querer sair fora. Mas também garanto que se eu não pedir para que você seja meu, eu vou me arrepender pelo resto da vida (…)“.

Julia Roberts e Richard Gere
Julia Roberts e Richard Gere (GIF: divulgação)

Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Jacu metropolitana com mente abstrata, salva da realidade pelas ficções. Formada em comunicação social, publicitária em atividade e estudante de Filosofia. Mais de trinta anos sem nunca deixar comida no prato.
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