“A Bruxa”, “Midsommar” e personagens femininas em busca de vingança

“A Bruxa”, “Midsommar” e personagens femininas em busca de vingança

Robert Eggers e Ari Aster já demonstraram grande domínio nas narrativas de terror. “A Bruxa” (2015) e “Hereditário” (2018), filmes de estreia dos dois diretores (ambos já haviam trabalhado com curtas anteriormente, mas não com longas) nos mostram esse domínio. Filmes certeiros que causaram uma enorme movimentação quando lançados, pro bem ou pro mal, já que nem todas as críticas foram positivas. A verdade é que Eggers e Aster são diretores competentes dentro do gênero, e volta e meia apresentam um filme que ignora certas regras e convenções, causando um frisson na mídia especializada e nos meios dos fãs de terror.

O recente lançamento de Aster, “Midsommar” (2019), não foi diferente. Pessoas odiaram ou amaram e a crítica ficou dividida, mas com “Hereditário” também foi assim. Independente disso, com méritos ou deméritos, Aster e Eggers tem algo interessante em suas narrativas até então: suas personagens femininas.

Não escrevo para advogar a favor dos filmes de ambos os diretores, mas sobre a necessidade analisar suas personagens femininas principais em “A Bruxa” e “Midsommar”. Antes, é necessário avisar: trata-se de uma das várias interpretações de tais personagens. E por observar personagens femininas no cinema há algum tempo, considero importante escrever sobre elas e, nesse caso específico, são duas mulheres cis. Portanto, trata-se de um texto opinativo, mas embasado em pesquisa e tempo de trabalho.

Aviso: o texto abaixo contém spoilers de “A Bruxa” e “Midsommar”

Em “A Bruxa”, Thomasin (Anya Taylor-Joy) é filha de uma família que foi exilada da vila em que moravam, e acabam se afastando daquela civilização, partindo para morar perto de uma floresta. Digam o que for, mas “A Bruxa” deu um tipo de fôlego pra narrativas de terror atmosféricas e fez com que isso chegasse ao grande público. Houve outros anteriormente, isso é claro. O próprio “February” (2015), de Oz Perkins, e “The Invitation” (2015), de Karyn Kusama, trabalham diretamente essa situação, e saíram em momentos semelhantes, mas não geraram conversa como “A Bruxa”.

O diálogo direto entre “A Bruxa” e “Midsommar”

A Bruxa
Cena do filme “A Bruxa, de Robert Eggers.

Dani (Florence Pugh) acabou de passar por uma tragédia em sua vida. Desde o começo do filme notamos que o relacionamento com o namorado não vai muito bem, e quando uma horrível perda se abate sobre ela, as coisas ficam piores. Seu namorado, Christian (Jack Reynor), havia programado uma viagem para a Suécia com seus amigos, mas não havia contado para ela. A questão é que Dani se culpa por todos os problemas dela e acha que exige demais de Christian.

Se você já esteve em um relacionamento abusivo e conseguiu sair dele, vai reconhecer tudo naquela cena, desde os pedidos de desculpa até a movimentação de Dani. Seja quando ela pede para Christian ficar, quando afirma que não queria brigar com ele, apenas entender a situação, ou quando implora para que ele converse com ela. Aster não descobriu o fogo, mas soube captar um momento único e delicado de uma vítima de abuso psicológico: o desespero pelo perdão por algo que não fez.

E, bem como todo o filme, Aster deixa isso muito explícito e claro: Dani não fez nada errado. Dani está abalada, fragilizada, sofreu uma perda terrível, e Christian e seus amigos não conseguem compreender o papel de apoio que ela deveria receber, ainda mais de uma pessoa importante que deveria apoiá-la.

Quando o casal e os amigos de Christian chegam juntos ao festival sueco de Solstício de Verão, as coisas estão muito debilitadas entre o casal. E tudo piora. Ao longo do filme, Dani começa a perceber como está sozinha em relação a Christian, como o apoio que ela precisa não existe ali. Como o fato de Christian não demonstrar ser um homem que lhe oferece conforto e nem ao menos a sensação de “lar”, pode afetar sua vida. Conforme a personagem descobre que está, realmente, em um relacionamento abusivo, ela percebe que precisa reagir. E encontra conforto no festival, com aquelas pessoas.

Dani (Florence Pugh) em Midsommar, filme de Ari Aster
Dani (Florence Pugh) em “Midsommar”, filme de Ari Aster.

Uma coisa que muitas pessoas notaram em “Midsommar” é a semelhança do filme com “Homem de Palha” (1973) e a tantos outros filmes de folk horror que existem por aí. Novamente, Aster não descobriu o fogo. Ele utilizou e bebeu de tudo deste gênero. O folk horror é isso: rituais pagãos exóticos para o ocidente cristão. No cinema, tal gênero nasceu a partir do boom de 1970 e da redescoberta dos rituais antigos, através da exploração que os filmes poderiam tirar disso.

E Aster utilizou o filme como um pano de fundo para a jornada de Dani. Chocar por chocar, muitos outros já fizeram, mas Aster constrói uma narrativa forte em cima de uma personagem com um sofrimento interno – que pode não ficar claro para muitas espectadoras. Contudo, Dani precisa se libertar. E ela se liberta através de um ritual antigo, que pode parecer assustador para quem está de fora. E é mesmo. Contudo, o sofrimento de Dani é ainda mais assustador e acontece com várias mulheres de forma silenciosa.

O que tem assustado as pessoas em “Midsommar” é o ritual, e não o que Dani tem passado em sua relação com Christian.

E é nesse ponto que Dani se encontra com Thomasin. Thomasin sofreu o diabo (com o perdão da palavra) com sua família, pois a culpa de tudo de errado que tem acontecido – desde que se mudaram – caiu sobre ela. Os gêmeos encapetados são fingidos de inocentes, o irmão mais novo com sentimentos incestuosos não pode ser culpabilizado – já que é só um garoto vivendo isolado -, o pai sofrendo, a mãe sofrendo, todos sofrem, e a culpa é sempre de Thomasin. Porque ela é a filha. Até o momento em que Thomasin decide aceitar o demônio e viver deliciosamente. E quem pode culpá-la? Se a culpa é dela, é melhor abraçar a culpa de uma vez e aceitar.

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O terror tem algo particularmente interessante quando pensamos em personagens femininas. Durante vários anos, mulheres seminuas foram perseguidas por assassinos com facas, até que uma donzela virginal assumisse o papel de vingadora. Antes, mulheres foram estupradas no audiovisual e tiveram que voltar do lugar mais fragilizado em que poderiam estar para ter algum tipo de vingança.

Existe um tipo diferente de sofrimento com Dani e Thomasin, e é um sofrimento interno. O que abala essas mulheres é o psicológico. Seus amigos e familiares que morrem não são exatamente perdas, não são mortes feitas para que elas sofram, para que elas cheguem até a beirada do precipício emocional e falte pouco para que pulem. São mortes calculadas para que cheguem até a liberdade mental das amarras que as sufocam. Você não precisa colocar essas mulheres correndo de um serial killer por uma rua do subúrbio. O terror agora é outro: o terror pessoal, silencioso, que acaba com a sua cabeça.

Existem vários outros filmes anteriores a eles que trataram disso, posso citar principalmente “O Bebê de Rosemary“, de 1968. Mas chamo a atenção para isso porque tem se tornado uma tendência, e é importante ficar de olho nela. Além de tudo, existe uma diferença entre esse sofrimento tratado agora e o sofrimento anterior: a possibilidade de se vingar.

E suas vinganças também são diferentes: assim que se libertam desse terror, elas estão prontas para seguir em frente. Por exemplo, há certo alívio na cena em que Thomasin dança ao redor da fogueira, e na cena que Dani percebe que a casa ritualística está em chamas. Elas foram feridas, de forma interna, por pessoas que mais deveriam ampará-las.

Da mesma forma, algo que difere Thomasin e Dani das final girls é o fato que não existe ali uma caricatura de vítima. Dani é uma moça normal, que estuda, mas que está em um relacionamento abusivo. E ela demora a compreender essa situação. Thomasin é uma garota normal, que teve o azar de nascer do sexo feminino, em um período horrível para qualquer mulher. Não são mulheres caricatas, símbolos de inocência e bondade. Aster e Eggers tiveram bom senso (e não fizeram mais que a obrigação, mas fizeram mais do que estamos acostumadas a receber).

Entretanto, ainda existem muitas narrativas que precisam ser exploradas. Falta no terror o protagonismo negro e LGBTQ+ e, no próprio “Midsommar”, faltou uma leitura mais aprofundada sobre o personagem Josh, interpretado por William Jackson Harper (aliás, recomendo a leitura desse texto do site Graveyard Shift Sisters). Precisamos, portanto, encarar que ainda falta muito a ser conquistado, mas é importante perceber que algumas narrativas foram superadas e que outras têm sido repensadas.

O sofrimento feminino é explorado no cinema há muito tempo. E duvido que ele vá ser superado em algum momento. Mas, pelo menos, se podemos nos alegrar por alguma coisa, é que tal sofrimento pode ser trabalhado de forma diferente. Afinal, ele existe. Eggers e Aster escreveram filmes de vingança, uma vingança catártica e bem feita. E, por fim, se você pensar bem, nenhuma das duas personagens teve que sujar as mãos, mas a satisfação é visível, tanto para quem se vinga quanto para nós, que assistimos.


Edição realizada por Isabelle Simões.

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Formada em História, escreve e pesquisa sobre terror. Tem um afeto especial por filmes dos anos 1980, vampiros do século XIX e ler tomando um café quentinho.
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