Coringa: dualidade, repercussão e violência

Coringa: dualidade, repercussão e violência

O ano de 2019 não terminou ainda, mas certamente já lançou seu filme mais polêmico. Coringa” é um triunfo na bilheteria, em suas performances, e também na mídia. Mas aqui vem o divisor de águas: temos um relacionamento envolvendo amor e ódio cujo ciclo parece não ter fim. Para o bem ou para o mal, o filme vai durar, sua repercussão e debate será lembrado por aquelas e aqueles que fizeram parte dele, sempre quando a obra for mencionada. Até onde vai sua longevidade, porém, é impossível prever. 

A natureza provocativa e o background no mundo dos heróis irá, contudo, garantir que a obra de Todd Phillips, consagrada pela interpretação de Joaquin Phoenix, cause uma duplicidade no teor de suas críticas e recepção das espectadoras.

Interpretações e especulações em “Coringa”

Coringa (Joaquin Phoenix)
Joaquin Phoenix como Coringa. (Imagem: reprodução)

O sentimento não explodiu apenas depois das exibições, sendo o próprio personagem e a classificação indicativa previamente anunciada, já um motivo de especulação sobre sua mensagem. Enquanto alguns a enxergam como ousada e necessária, um segundo grupo a enxerga como algo que não deveria sequer ter ido para as telas de cinema, e por fim, existem aqueles que a veem como uma execução regular atuada de modo espetacular, que apenas tornou-se tão polêmica por estar na esfera do mundo dos heróis. Por que neste mundo? Simples, é o que mais arrecada dinheiro e mais fomenta mídias sociais. 

Esse universo fantástico onde vivem os heróis e seus vilões não “apenas” movimentou bilhões como transformou a indústria do cinema. Com tanta luz no palco, mesmo que sua produção original fosse vendida como algo quase independente, a escolha de um ator como Joaquin Phoenix foi suficiente para alavancar a popularidade do filme e criar uma intensa onda de questionamentos ao seu redor. Phoenix e logo mais, Robert De Niro. Tal cenário era perfeito para se especular. Logo, muitos criavam teorias sobre o Coringa de Todd Phillips e as chances dele fugir da linha imposta previamente por Jared Leto em “Esquadrão Suicida“, ainda amargando para muitos. 

Coringa (2019) crítica
Cena de “Coringa”. (GIF: reprodução)

A categoria dramática da atuação de Phoenix permitiu um momento de visita ao passado da audiência: conseguiria ele criar um personagem memorável? Iria atrás de um Coringa capaz de acompanhar a história do cinema? Um Coringa, digamos, Heath Ledger? A resposta é sim, ele tentou ser memorável e conseguiu. Foi marcante, preciso, seu trabalho definitivamente vai ser celebrado no imaginário dos fãs por muito tempo. Mas comparações devem ser evitadas, pois ambos são muito distantes, e é extremamente perceptível em seu trabalho que o próprio escolheu essa distância. 

Enquanto em Ledger vemos o Coringa no ápice do caos, versado em seus discursos e confortável consigo mesmo, o de Phoenix ainda nasce. É seu capítulo de origem, e o ator escolheu uma caminhada que vai de um personagem introspectivo para seu auge, onde morre Arthur e nasce o Coringa. Aquele que irá atormentar sua cidade, moradores e antagonizar o Batman, se assim Matt Reeves, Phoenix e a DC decidirem que ele deva se encaixar com o mundo que está sendo montado ao redor de Gotham. 

Efeito Coringa

Coringa (2019) crítica
Cena de “Coringa”. (Imagem: reprodução)

Controvérsia é a palavra-chave circundando o filme do vilão mais famoso da galeria do Batman. O Coringa ultrapassou o universo onde foi criado para se consagrar na imaginação popular, como um dos vilões com maior visibilidade mundo afora. Seja nos quadrinhos, desenhos ou mundo cinematográfico. 

Violência sendo uma das palavras que surgem em nossa mente quando tentamos associar o personagem com algo. E a violência neste filme causou certo impacto, juntando-se a outros produtos cinematográficos memoráveis: a tentativa de analisar a violência em Coringa pode ser vista em trabalhos, como o clássico exemplo de Michael Haneke, com “Violência Gratuita” (1997), Stanley Kubrick e seu “Laranja Mecânica” (1972), “Precisamos Falar Sobre o Kevin”, de Lynne Ramsay (2012), ou “Elephant”, de Gus Van Sant (2003) – lembrando que todos os exemplos citados usam sua própria abordagem e método, sendo a sobriedade outro elemento que une as películas.

Portanto, dissecar a maldade não é algo novo ou pioneiro no cinema. Este não vai ser o último retrato cru sobre a violência utilizando um ângulo desconfortável. Mas é, sim, um tópico onde poucos decidem ir, visto a repercussão e cuidado que tem de existir ao retratar sua natureza com seriedade. 

O fator humano em “Coringa”

A "máscara" de Arthur Fleck
A “máscara” de Arthur Fleck. (Imagem: reprodução)

Existem razões compreensíveis para o choque de parte do público: sendo o fator que causou a combustão o de que trata-se de um filme com figura mundialmente popular que, como dito anteriormente, tem alcance massivo, cuja popularidade do cenário onde vive não o tornava nada de nicho. E ainda que o Coringa não seja conhecido por sua, digamos, benevolência, nenhuma de suas adaptações no cinema tinha demonstrado ela de forma tão focada. Ele sempre dividiu o tempo de tela com vários outros personagens, algo que aqui não acontece. 

A atual conjuntura norte-americana de engajamento contra armas de fogo e situação política global, previam que o filme não ia ser recebido com apatia. Inclusive, em termos de recepção, seu diretor e criador tem uma digital muito grande na negatividade ao redor. Todd Phillips não torna nada fácil aproveitar sua obra ou postura artística enquanto está em divulgação. Portanto, existem dois momentos após “Coringa”: antes e depois do lançamento mundial, além das falas de Todd que fazem parte desse pós nada encantador.

A fala dele sobre humor e como tentar ser engraçado em tempos de cultura consciente não caiu bem sequer entre seus colegas artistas e futuros votantes da Academia. O resultado? Antes sozinho na disputando pelo prêmio, Joaquin agora vê seu trabalho sendo minado, tendo o nome acompanhado por Adam Driver em algumas listas de previsões (Driver estrela o filme de Noah Baumbach, “A Marriage Story”). E ainda mais poderoso do que Driver, os votantes criam imensa expectativa para Robert De Niro e seu trabalho com “The Irishman”, dirigido por Martin Scorsese, que chegará em dezembro, época ideal para lançamentos que querem concorrer ao Oscar

Os bastidores de Gotham

Coringa (2019) crítica
Gotham é um local repleto de corrupção, sujeira e desorganização. (Imagem: reprodução)

Gotham é retratada como nunca antes. Não que exista uma versão glamourizada da metrópole, mas aqui é diferente, consegue ser ainda mais precisa nos seus problemas urbanos e sociais. Eles são o que o diretor provavelmente quis colocar como emblemática do filme. Gotham fede, é quebrada, e nada funciona. Corrupta, suja e desorganizada, seus cidadãos são reféns jogados ao descaso nas mãos de políticos desprovidos de empatia. 

O principal destes políticos – e clássico personagem da DC – vem na forma de Thomas Wayne (Brett Cullen), que aqui foi feito de maneira muito diferente daquele visto em versões cinematográficas anteriores: ele é um empresário que se lança na política cheio de promessas para ajudar um povo com o qual não se identifica, para melhorar um problema que não conhece, com promessas feitas numa campanha arrogante, feita numa visível crença de superioridade.

A corporação Wayne antagoniza a população com sua apatia e bondade pretensiosa. Ao menos é isto que se passa toda vez onde Thomas concede uma entrevista, ou na visível riqueza do seu cenário, contrastando com o restante da cidade, esmaecida no cinza.

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É a representação de algo que paralela com a realidade nas ruas de muitos países, inclusive o nosso. A jornada de Arthur Fleck coincide com a jornada de Gotham, ambos rumam de mãos dadas, em meio ao caos. Rumo à destruição. Ele não é um herói. Nem se considera um, tampouco o filme lhe trata como. Ele é uma saída. Mas saídas não são soluções. Tentativas de exercer mudança através do caos deflagram em mais caos. Gotham não será salva pelo Coringa, cairá nas garras de sua histeria. 

Político e apolítico como elementos narrativos

Joker (2019) crítica
Joaquin Phoenix em “Joker”. (Imagem: reprodução)

Durante todo o tempo da projeção de Coringa”, há uma extensa conversa com a espectadora sobre o que é que acontece quando o governo e os homens no poder passam a ignorar aqueles que deveriam auxiliar. Quando um sistema é intrinsecamente corrupto e nada faz para seu povo, ele nota. E então, na ausência da ordem, das leis e do diálogo, ele nasce. E ele não é bom. Em instante algum a frieza nos olhos de Joaquin Phoenix denota compaixão, simpatia, ou uma tentativa de buscar o correto. 

Existe, durante o caos, uma brecha para aqueles que pretendem instaurar o medo e a revolta. O que outrora seria considerado inaceitável é agora tolerado apenas para que seja diferente do que era. Arthur transforma-se no rosto de um movimento para o qual ele mesmo não dá a mínima. E ele sequer mente sobre isso, sendo transparente que não é um político: mas ao falar isso, ele faz política. 

Para algumas, talvez isso não faça muito sentido. Mas tente ver da seguinte maneira: num cenário desgastado, onde todos cansaram dos joguetes e da corrupção, o surgimento de um rosto novo que brada a revolução do povo, a princípio, como piada, logo depois como movimento, ao mesmo tempo não se coloca em rol igual aos demais políticos que lesionaram a população. Aquele homem, que despertou uma revolução, automaticamente se destaca no imaginário popular. Ninguém aqui afirma que a figura do Coringa tenha categoricamente feito isso, mas que a equipe por trás do filme sabe o que faz. Eles sabem a conjuntura mundial, sabem de história, geopolítica e escrita. Nada é por acaso. E por mais que o filme não seja um manifesto, ele é, sim, fruto de todo um complexo de ideias.

Em tempo real, muitas democracias morrem pela ascensão de discursos daqueles que se dizem apolíticos. Este é um elemento incluso no filme, aliás, e um que deixa muito difícil argumentar de que o filme não existe para apatia política. 

Coringa (2019) crítica
(GIF: reprodução)

Afinal de contas, nesse momento da história, usar tal recurso no roteiro é no mínimo inspirado pelos arredores. E no máximo, uma tentativa de fazer a espectadora refletir. Não que a escrita tenha se arraigado em algum Estado específico, apenas no estado do mundo. E é uma análise feita com sucesso, visto que este é o curso em lugares esquecidos pelo governo. 

Vejamos: Gotham é um local que sofre dos males da corrupção e abandono. Ninguém se importa com seu desenvolvimento, combate à violência, infraestrutura, e a disparidade entre as classes sociais é mais do que evidente. A super cidade virou um grande conglomerado onde o crime é a regra, a tensão se instaura e a proteção existe apenas para os mais ricos. Temos aqui um antagonismo de classes como pano de fundo para a ascensão do Coringa.

Esse embate sempre foi e sempre será um tema recorrente no cinema, e aqui fica claro em momentos como as reações divergentes perante o assassinato dos jovens de Wall Street. “Bons rapazes” de classe social evidentemente alta que estavam assediando uma jovem dentro do metrô. É um dos pontos mais interessantes do filme, pois é onde podemos ver o ponto de vista populacional, não apenas de Arthur. Ver que toda aquela dinâmica existe de fato, não sendo apenas invenção de sua mente. 

Depois da tempestade

Joker (2019) crítica
Cena de “Coringa”. (Imagem: reprodução)

O longa-metragem de Todd Phillips faz todo um esforço para ser levado a sério. Ele quer ser levado a sério não como um propagador de verdades absolutas, mas como uma narrativa que se distancia do mundo solenemente fantástico dos super heróis (como exemplo disso, temos diversas entrevistas de pessoas relacionadas com o filme, que tentam distanciá-lo do gênero antes de seu lançamento). 

Só que, mesmo tentando fugir dessa linha, não escapa dela por inteiro. Ainda temos ali, no coração do filme: um Coringa inesquecível, um Thomas Wayne que será lembrado, além de um jovem Bruce. É uma produção cujo ar ao seu redor lembra obras da Vertigo e DC Black Label. O resultado pode ser visto durante as mais de duas horas, onde vamos desde “um dia ruim” para os problemas sociais, visualizando o precário sistema de saúde dos Estados Unidos, enquanto apreciamos uma bela trilha sonora que acalenta os nossos ouvidos. 

Coringa” não é um filme fácil de tragar, e o debate o circundando é mais do que válido. Afinal de contas, todo mundo consome cultura de forma diferenciada. Não há um padrão. Entregar-se para sua jornada é ter um momento próximo com a mente de Arthur Fleck. Porém, nem sua vida ou situação são confortáveis. O que nos resta é teorizar sobre sua realidade, discutir o filme, e saber que de encontro com nossa interpretação pessoal, poderemos ter uma visão contrária de alguma amiga ou amigo. E está tudo bem. 


Edição e revisão realizada por Isabelle Simões.

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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