Segredos Oficiais: uma mulher contra os homens poderosos do governo

Segredos Oficiais: uma mulher contra os homens poderosos do governo

O cinema é uma arte mágica. Na telona há sempre tempo para histórias fantasiosas, engraçadas, românticas, assustadoras e ainda aquelas que se baseiam em fatos ou pessoas reais. Além de entreter, o cinema pode revelar histórias desconhecidas, com temas extremamente atuais. É o caso de “Segredos Oficiais“, dirigido por Gavin Hood e com roteiro do próprio diretor, além das participações de nomes como Gregory Bernstein e Sara Bernstein. O filme, que entrou em cartaz nos cinema dia 31 de outubro, revela o episódio heroico e corajoso ocorrido na vida de Katherine Gun (Keira Knightley).

Em 2003, Katherine é funcionária do GCHQ (Government Communications Headquarters), serviço de inteligência britânica, cuja função é a coleta de informações relacionadas com possíveis ameaças à segurança do Estado. Essa coleta é realizada através da interceptação de sinais de comunicação entre pessoas ou máquinas.

A GCHQ faz parte do grupo de cinco Estados chamados de “Os Cinco Olhos”, são eles: EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. Casada com o imigrante Yasar Gun (Adam Bakri), que tenta conseguir um visto de permanência no país, a personagem leva uma vida pacata e tranquila, sem grandes aspirações profissionais ou aparente ambição.

Katharine Gun (Keira Knightley) em Segredos Oficiais
Katharine Gun (Keira Knightley) em “Segredos Oficiais”. (Imagem: reprodução)

Num dia ordinário de trabalho, um e-mail em especial chama sua atenção pelo teor pouco usual e pela proposta que, em seu ponto de vista, não parecia ético, além de ilegal. O tal e-mail vinha dos EUA, em nome de Frank Koza, chefe de gabinete da divisão de “alvos regionais” da agência de inteligência americana (ASN) – que solicitava que membros “instáveis” (Angola, Bulgária, Camarões, Chile, Guiné e Paquistão) da ONU fossem monitorados com o objetivo de encontrar algo que servisse de moeda de troca para a aprovação da invasão dos EUA ao Iraque (vale mencionar que Tony Blair, o então primeiro ministro inglês, apoiava a invasão do Iraque).

Tal manobra era importante, pois a ONU não via com bons olhos uma possível guerra contra o país. A opinião pública mundial era contra a invasão e até o dado momento não haviam provas (como nunca conseguiu-se provar) de que o pais, liderado por Sadan Hussein, possuísse armas de destruição em massa (armas nucleares).

Portanto, para realizar seu intento, os EUA precisava que 9 membros da ONU apoiassem a invasão, porém apenas 4 países anunciaram que apoiariam a guerra. Dessa forma, conseguir a adesão de mais 5 países era de suma importância para que se mantivesse a diplomacia, e a guerra recebesse o apoio da ONU.

Katharine (Keira Knightley) e Yasar Gun (Aman Bakri) em Segredos Oficiais
Katharine e Yasar Gun (Aman Bakri) em “Segredos Oficiais”. (Imagem: reprodução)

Claro que Kate não viu com bons olhos essa missão e acabou encontrando uma forma de fazer essa informação vazar, com o objetivo de trazer à público o que ocorria nos bastidores do governo Blair. Ao tomar essa decisão, nossa personagem rompe a Lei de Segredos Oficiais, que prevê a proteção de segredos de Estado e informações oficiais, principalmente relacionadas à segurança nacional.

O que ocorre em “Segredos Oficiais” é que todo funcionário da GCHQ está sujeito à sanções (inclusive ir preso), caso vazem informações relativas às suas atividades. Por isso, ao “denunciar” o pacto entre os EUA e o Reino Unido, Kate acaba sendo presa e se inicia uma luta para provar sua inocência. E é exatamente a ideia de inocência, o elemento mais interessante dessa história.

Não é novidade para ninguém que vivemos todos sob à escuta e vistas de governos poderosos. Apesar de não autorizarmos tal invasão em nossas redes, é evidente que estamos inertes aos acessos em nossas vidas privadas. Além disso, lidamos com o fato de que apenas informações “autorizadas” e “convenientes” são vazadas pelos governos, afinal, cada governante tenta manter intacto sua imagem, assim como a de seu projeto, para evitar enfraquecimento com a população e defender interesses políticos próprios.

Katharine Gun (Keira Knightley) e Shami Chakrabarti (Indira Varma)
Katharine Gun e Shami Chakrabarti (Indira Varma) em “Segredos Oficiais”. (Imagem: reprodução)

Porém, ao privar as populações de informação, a verdade dá lugar às famosas fake news, criando um cenário caótico e de medo. Sim, medo, afinal, com a inverdade ou com a verdade seletiva, vivemos sempre sob a suspeita da mentira. Vivemos numa lógica inversa. Ao invés de crermos em algo até que se prove o contrário, cremos na mentira até que se prove o contrário.

Aqueles que deveriam manter com sua população um pacto de confiança, nos enganam com meias verdades ou mentiras sinceras. Assim como os populares são mantidos sobre a escuta, vemos cada mais denúncias de juízes, políticos, suspeitos e criminosos no mundo todo, que envolvidos em conversas, no minimo, pouco éticas, acabam sendo pegos (e denunciados) por jornalistas e hackers.

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No Brasil, recentemente, temos o caso que envolve o jornalista americano Glenn Greenwald, criador do jornal online, The Intercept, que denunciou conversas de juízes e promotores envolvidos no processo da Lava Jato, que culminou na condenação de políticos e empresários brasileiros, entre eles o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva.

Podemos citar também eventos recentes da história mundial que envolvem denuncias de organismos envolvidos em manipulação de dados e informações: Wikileaks (organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica em sua página postagens de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis) e o caso Edward Snowden (que levou à público a existência dos programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos, efetuados pela sua Agência de Segurança Nacional).

Katharine Gun (Keira Knightley) e Martin Bright (Matt Smith)
Katharine e Martin Bright (Matt Smith) em “Segredos Oficiais”. (Imagem: reprodução)

Vejam que em ambos os exemplos acima, vemos tanto os EUA envolvidos em ações “ilícitas” de manipulação de dados, como uma crescente em situações de “espionagem” de pessoas e nações independentes, com o objetivo de se manter a soberania de países super potentes (em armas e tecnologia).

Por isso, a ação de Katherine no Reino Unido é heroica e admirável, afinal, uma simples funcionária do governo, mulher e casada com um imigrante, agiu mais pelo impeto e pela cidadania traída, do que movida por interesses próprios. Como não fazê-lo? Perguntavam-se colegas de Kate. Como todos eles não tinham denunciado esse abuso de seu governo que traía sua população contrária a invasão?

No Reino Unido, assim como em grande parte dos países pelo mundo, a guerra não era bem vista e considerada ilegal, inclusive por colocar em risco a vida de milhões de inocentes. Como de fato aconteceu – não há um número exato de mortos no Iraque, estima-se que entre 2003 (ano da invasão dos EUA) e 2013 por volta de 170.000 e 500.000 iraquianos morreram no conflito. Além desse número, existem a baixas dos soldados americanos, britânicos e de outros países.

Cena de "Segredos Oficiais"
Cena de “Segredos Oficiais”. (Imagem: reprodução)

Kate teria de provar sua inocência se baseando na crença de estar sendo enganada junto da população, sobre o real interesse da Inglaterra no conflito e a forma antiética que buscavam apoio de outros países. Ou seja, uma ação que obrigaria o país a provar a real posição da ONU sobre a invasão, o que colocaria o governo em maus lençóis perante a opinião pública.

O fato é a que a guerra dos homens “fortes” aconteceu, e Kate acabou enfrentando – com êxito – um júri composto apenas de homens que, como sempre, legislam em seu favor, visando interesses muitas vezes aquém do que somos capazes de imaginar.

Segredos Oficiais” é um ótimo exemplo cinematográfico de cidadania e resistência. Nós, que acreditamos na justiça e na transparência das organizações, apoiamos Katherine Gun, Marielle Franco e outras fortalezas que fazem a diferença!


Edição e revisão realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
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