Watchmen -1×03: She Was Killed by Space Junk

Watchmen -1×03: She Was Killed by Space Junk

Os dois primeiros episódios de “Watchmen” nos acostumaram a uma estrutura que aos poucos se fazia familiar: no início do capítulo, tínhamos um vislumbre do passado de Will Reeves (Louis Gossett Jr.), seguindo para a Tulsa do presente e todas as suas bizarrices, com uma breve pausa para assistirmos às maquinações de Adrian Veidt (Jeremy Irons) em seu exílio, finalizando com algum acontecimento bombástico.

A despeito de (acertadamente) priorizar as personagens introduzidas com a nova trama, a série faz uma pequena digressão neste terceiro episódio: somos (re)apresentadas a Laurie Blake (Jean Smart), outrora Laurie Juspeczyk, a ex-Espectral II – co-protagonista da HQ original de Alan Moore.

AVISO: o texto contém spoilers do terceiro episódio de “Watchmen”

Uma das personagens mais negligenciadas e ignoradas nas múltiplas análises produzidas sobre a graphic novel nos últimos trinta anos, Laurie concentra praticamente todos os holofotes para si, em “She Was Killed By Space Junk”. O episódio se inicia com Blake entrando em uma das várias cabines telefônicas com conexão direta para Marte espalhadas pelo país, com fins de ligar para ninguém menos que Dr. Manhattan.

Os acontecimentos do capítulo são cuidadosamente construídos ao longo de uma piada que Laurie conta a seu ex-companheiro, com um desfecho um tanto quanto surpreendente – ou nem tanto, para quem reconhece que Espectral II jamais recebeu a mesma atenção que seus co-protagonistas masculinos. Mas vamos por partes.

Laurie Blake (Jean Smart) em “She Was Killed By Space Junk”
Laurie Blake (Jean Smart) em “She Was Killed By Space Junk”. (Imagem: reprodução)

A filha da Espectral I, a filha do Comediante, a namorada de Dr. Manhattan e a agente do FBI: as várias faces de Laurie Blake em “Watchmen”

Nos anos que separam os acontecimentos da história de 1985 e a série, Laurie assumiu o sobrenome do pai (Edward Blake, o Comediante), bem como seu senso de humor seco e a vocação para trabalhar a serviço do governo americano, tornando-se uma agente especial do FBI especializada em localizar e combater vigilantes que surjam pelo país.

No terceiro episódio da série, acompanhamos enquanto Blake captura um vigilante (após um assalto a banco forjado pela força-tarefa da qual faz parte, um cenário óbvio até demais que simplesmente funciona) e atira em sua armadura, sem dar a mínima se haveria blindagem por debaixo para protegê-lo dos tiros. Sendo ela mesma uma ex-vigilante, Laurie não esconde de ninguém o desdém que sente por quaisquer dos desocupados que tentam bancar os heróis nas horas vagas, e faz disso sua profissão.

Laurie Blake no terceiro episódio da série da HBO
Laurie Blake no terceiro episódio de “Watchmen”. (Imagem: reprodução)

Já em seu apartamento em Washington, D.C., a agente alimenta sua coruja de estimação e coloca Devo para tocar (uma referência não tão óbvia ao quadrinho, no qual Laurie manifestava gostar da banda), antes de ser interrompida pelo senador Joe Keene Jr. de Oklahoma (filho do responsável pela Lei Keene de 1977, que proibiu o vigilantismo em todo o território dos EUA), ele próprio responsável pela implementação de máscaras e identidades secretas para as forças policiais em Tulsa e no restante do Estado.

Ele solicita a Laurie que investigue as circunstâncias da morte de Judd Crawford (Don Johnson), o qual todos acreditam ter morrido nas mãos da Sétima Kavalaria. Laurie não se convence facilmente. Keene, cujas políticas de segurança em Oklahoma são o carro-chefe de sua candidatura à presidência dos Estados Unidos, faz sua oferta: como presidente eleito, poderá fazer qualquer coisa, inclusive retirar determinadas “corujas” de suas gaiolas. A ex-agente não vê outra escolha senão concordar com seus termos.

Necessário ressaltar que, em uma das entradas da Peteypedia (conjunto de informações adicionais do universo da série), conhecemos o destino de Dan Dreiberg, ex-namorado de Laurie outrora conhecido como o vigilante mascarado Coruja II, também co-protagonista do quadrinho original. Ambos foram presos pelo FBI em 1995 por desempenharem atividades de vigilantismo e, aparentemente, apenas Blake conseguiu se safar, indicando que Dreiberg encontra-se sob custódia até hoje. Ao que tudo indica, a agente aceita a missão para tentar libertá-lo.

Os detalhes do apartamento de Laurie denunciam que, a despeito do desprezo que nutre por seu passado e por qualquer um que tente emulá-lo nos dias atuais, a ex-vigilante é incapaz de se desfazer totalmente das memórias. Além da coruja de estimação, Blake mantém um quadro em estilo pop-art com os rostos de Coruja II, Ozymandias, Manhattan e de si mesma pendurado no canto da sala. Como veremos, o passado é uma constante na vida da antiga Espectral II, não importa o quanto empurre para debaixo do tapete.

Cena do terceiro episódio de Watchmen da HBO
Cena do terceiro episódio de “Watchmen” da HBO. (Imagem: reprodução)

Ao aterrissar em Tulsa ao lado do agente Dale Petey (Dustin Ingram), Blake não se deixa intimidar por nada e nem por ninguém, cuspindo piadas secas à polícia local e às personagens que conhecemos nas semanas anteriores. Ao interrogar um Espelho (Tim Blake Nelson) bastante desconfortável com sua presença, a agente descobre que o funeral de Crawford ocorrerá em poucas horas, e que sua próxima interrogada, Angela Abar (Regina King), estará lá para fazer o discurso em honra ao falecido amigo.

A interação entre as duas mulheres, aliás, é tensa. Blake analisa a policial mascarada de cima a baixo e solta: “Sabe a diferença entre policiais e vigilantes mascarados? Eu também não”, plenamente ciente da identidade secreta de Abar como Sister Night. A outra, no entanto, não se deixa intimidar: após uma série de insinuações e um ultimato de Laurie caso tentasse obstruir as investigações, Angela retribui com igual desdém ao despejar fora todo o café trazido pela ex-agente como forma de manter a aparência de boas relações. É quase certo que podemos esperar futuras interações ainda mais intrigantes entre ambas nos próximos episódios de “Watchmen“.

Angela Abar (Regina King) em Watchmen
Angela Abar (Regina King) em “Watchmen”. (Imagem: reprodução)

As peripécias de Ozymandias em “Watchmen”

Com o circo quase que completamente armado em Tulsa, conferimos o que Adrian Veidt fará esta semana, esteja onde estiver. Detalhes importantes são revelados acerca de seu exílio: há uma figura, denominada “Guarda Florestal”, que impõe determinadas condições para que Veidt permaneça vivendo ali; caso viole alguma delas, tentando escapar do local em que vive, sofrerá as consequências. Fica subentendido, também, que boa parte dos clones masculinos – como o sr. Phillips morto no episódio anterior, durante a peça de teatro – serve como cobaias de testes para os planos mirabolantes de fuga de Ozymandias.

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Este, aliás, é o primeiro episódio da série em que se reconhece abertamente que a personagem de Jeremy Irons é, efetivamente, Adrian Veidt. Após ser proibido, pelo Guarda Florestal, de ultrapassar certos limites do exílio, Adrian redige uma carta em resposta, assinando com seu nome. Pede, ainda, que prepare seu cavalo, pois repetirá seu feito à meia-noite. Dito e feito: talvez uma das maiores surpresas deste episódio. Veidt aparece completamente vestido em seu traje clássico de vigilante mascarado Ozymandias, antes de cavalgar para longe da mansão.

Adrian Veidt (Jeremy Irons) no terceiro episódio da série. (Imagem: reprodução)

A interpretação de Irons  – que parece estar se divertindo bastante em seu papel – dá um quê caricato à figura estóica do “homem mais inteligente do mundo”, gerando uma reação próxima ao “riso de nervoso” em diversas situações que não deveriam ser tão cômicas assim, mas são. Seja lá o que rodeie a mansão em que vive, seus objetivos de fuga e o Guarda Florestal por trás, é difícil saber quais serão os próximos passos de Veidt e de que forma ele se conectará ao restante da série.

Heróis batendo na porta do céu

Mesmo com uma digressão pontual à vida do magnata, o episódio ainda é inteiramente de Laurie.

Acompanhamos enquanto a ex-vigilante tenta contar piadas a um Manhattan ausente do outro lado da linha, remontando tanto à postura jocosa do Comediante, como à piada de Pagliacci contada por Rorschach em seu diário após o funeral daquele. Sua primeira piadinha é sobre um construtor perfeccionista que deseja projetar uma churrasqueira para sua filha; depois de pronta, contudo, o homem percebe que um tijolo sobrou, e está pronto para destruir a construção e refazer tudo, quando a garotinha diz ter uma ideia, apanha o tijolo e o arremessa para cima. Mas o timing se perde e, aparentemente, a piada não vai a lugar nenhum.

Então Laurie recomeça, entre cenas intercaladas do episódio em si, e conta uma nova história. Três heróis estão de frente para os portões do paraíso, à espera do julgamento de Deus. O primeiro, um cara vestido de coruja, é mole demais, suave demais, e vai para o inferno; o segundo, o cara mais inteligente do mundo, é um monstro que se vangloria de ter matado milhares de pessoas para salvar o dobro, e também vai para o inferno; o terceiro, um cara azul que é praticamente um deus por si só, não vê diferença entre o amontoado de partículas de um ser humano e de um cadáver. É claro que ele vai para o inferno também, e sabe disso.

Watchmen -1×03 (crítica)
Cena de “Watchmen”. (Imagem: reprodução)

Mas há mais uma pessoa, diz Laurie. Uma mulher escondida entre os três, que resolve falar com Deus. Ele pergunta quem ela é. Em um comentário quase que metalinguístico, a mulher responde: “Eu estava bem atrás daqueles outros caras, só que você não me viu”, e revela ser a filha do construtor da primeira piadinha. Enquanto Deus pensa no que fazer com ela, a mulher olha para cima, enquanto o tijolo arremessado na história anterior atinge Deus em cheio, levando-o aos portões do inferno. “Bela piada, todo mundo ri. Desçam as cortinas”, finaliza uma melancólica Laurie Blake, novamente remontando à história de Pagliacci no quadrinho original.

A piada em si revela muito do que a ex-Espectral se tornou, sua visão acerca de seus antigos colegas de vigilantismo, como também é um recado para todos aqueles que a esqueceram para prestar atenção nos heróis masculinos. Acompanhamos os desejos, aspirações e angústias dos três heróis (Coruja, Ozymandias e Dr. Manhattan, ironicamente os mesmos que acompanham a ex-vigilante no quadro em pop-art de seu apartamento) durante toda a graphic novel de Alan Moore – mas eles já foram para o inferno.

Esquecemo-nos de Laurie e de sua juventude roubada pela mãe, de seu sofrimento ao descobrir que Edward Blake era seu pai, tudo porque sua dor serviu muito mais como forma de despertar o fascínio de Manhattan pela humanidade. Sempre a mercê dos interesses dos personagens masculinos na história original, o tijolo arremessado por Laurie em sua piada é um aviso de que ela agora é dona de si, até onde é capaz. A série da HBO não apenas reconhece os débitos da HQ de Moore e Gibbons para com suas personagens femininas, como também se propõe a desafiá-los: diferentemente da Laurie Juspeczyk de 1985, a Laurie Blake de 2019 possui agência sobre a própria vida.

Como nossos pais

A despeito de ter se tornado uma mulher forte e independente, a ex-vigilante não consegue se desfazer do passado. Seja carregando consigo um vibrador azul-turquesa em uma maleta, ou mantendo sexo com um Dale Petey em máscara de super-herói, Laurie repete muitos dos comportamentos dos pais.

Do pai que um dia detestara, tomou para si não apenas o sobrenome, como a identidade secreta que manteve até ser presa pelo FBI (Comedienne). Da mãe, Sally Jupiter (a primeira Espectral), um certo saudosismo não reconhecido pelos dias como vigilante.

Junto da maleta com o brinquedo sexual azul, Laurie leva um antigo exemplar da revista masculina Esquire, na qual ela e Manhattan figuram na capa. A revista, em si, remonta às próprias bugigangas guardadas por Jupiter em sua casa de repouso, no quadrinho: tendo cultivado uma imagem de símbolo sexual a vida inteira, Sally mantém consigo diversos quadrinhos eróticos produzidos na época em que esteve em atividade, muito para o desgosto da própria Laurie. Ainda assim, contudo, ela repete o hábito à sua maneira.

Cena do episódio “She Was Killed by Space Junk”. (Imagem: reprodução)

Tal como a mãe, a agente também demonstra ainda guardar sentimentos pelo ex-companheiro (embora a situação de Sally com Edward seja bem mais complexa e problemática). Laurie comenta, em um dado momento de seu monólogo ao telefone, como aquela não é sua primeira ligação. Telefonar para Manhattan tornou-se um hábito. Embora a entidade tenha abandonado a Terra para viver em Marte há mais de trinta anos, há centenas de cabines telefônicas especialmente projetadas para contatá-lo. Da mesma forma, Laurie frequenta estes locais e se permite ser vulnerável, falando de si e de seus sentimentos, à semelhança de um confessionário.

A coesão dos showrunners no projeto de representação de “Watchmen”

Questionado sobre Laurie em entrevista ao site Decider, o showrunner Damon Lindelof comenta a respeito do cuidado ao retratar este seu lado mais frágil. Há uma preocupação em demonstrar que, ao mesmo tempo em que parece ser a única dos vigilantes originais que sobreviveu sem grandes traumas e com a cabeça no lugar, Blake ainda guarda consigo suas memórias de afeto. É bastante significativo ressaltar, inclusive, que a ideia da inclusão do vibrador veio de uma das roteiristas, Lila Byock (parceira de longa data de Lindelof, tendo colaborado em “The Leftovers”), e logo foi apoiada pelas demais mulheres da equipe da série.

Cena de "Watchmen" da HBO
Cena de “Watchmen” da HBO. (Imagem: reprodução)

São pequenos detalhes como este, na caracterização das personagens femininas, que as aproximam da audiência sem torná-las dependentes emocionalmente de suas contrapartes masculinas ou descaracterizar a independência e agência que possuem –  um ponto negativo da graphic novel que, a despeito de uma excelente crítica às condições humilhantes vivenciadas pelas mulheres vigilantes, não foi capaz de retirá-las completamente da sombra de seus interesses afetivos.

Conforme já demonstrava através de Angela Abar e da trama de Will Reeves como uma representação dos grupos afro-americanos nos EUA, “Watchmen” da HBO tem se revelado extremamente competente ao tratar suas personagens com respeito e cuidado ao longo dos episódios, sem incorrer em reducionismos e prezando pela complexidade. Enquanto a série ainda não termina, podemos nos tranquilizar, afinal, de que as promessas feitas por Lindelof em sua carta aberta estão, pouco a pouco, sendo cumpridas diante dos nossos olhos.


Edição e revisão realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

20 Textos

Estudante de direito cuja identidade (não tão) secreta é a de escritora e resenhista. É autora da coletânea de contos de ficção científica "Valsa para Vênus", e já publicou em antologias e revistas literárias, como a Mafagafo, além de compôr o quadro de colaboradores do SOODA Blog. Nas horas vagas, estuda cartas de tarô, traz a pessoa amada de volta e “aposenta” dragões cibernéticos soltos por aí.
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