Mulheres na História do Cinema: Kinuyo Tanaka

Mulheres na História do Cinema: Kinuyo Tanaka

Embora mais conhecida por seu trabalho como atriz — consagrada como uma das principais estrelas de cinema de sua época, foi personagem em aproximadamente 250 filmes ao longo de 52 anos de carreira — Kinuyo Tanaka (1909-1977) foi também a segunda mulher diretora de cinema atuante no Japão (o pioneirismo fica com Tazuko Sakane por “Hatsu Sugata”, de 1936) e a primeira a dirigir um filme comercial, no país.

Suas obras revelam uma “consciência feminista”, segundo autores como Masaki Yamada e Gwendolyn Audrey Foster, em um período em que mulheres em posições de poder na indústria cinematográfica era algo raro não somente no país asiático, mas em todo o mundo.

Enquanto atriz, Tanaka viveu o período de transição do cinema mudo para o sonoro e do preto e branco para o colorido. Como diretora, operou no período pós-guerra: seus seis filmes foram feitos entre 1953 e 1962. Embora sua obra não seja muito extensa, é bastante variada em questões narrativas, formais e mesmo ideológicas.

Filmes com temas desafiadores para o Japão nas década de 50 e 60

Kinuyo Tanaka como diretora em set de filmagem
Kinuyo Tanaka como diretora em set de filmagem. (Imagem: reprodução)

Como observado por Ashida Mayu e Irene González-López no livro “Tanaka Kinuyo: Nation, Stardom and Female Subjectivity” (“Kinuyo Tanaka: Nação, Estrelato e Subjetividade Feminina”, em tradução livre), a cineasta trabalhava com diferentes cenários geográficos e históricos e, apesar de “sempre operar sob o amplo domínio do melodrama”, experimentou gêneros como o biográfico, o filme de guerra e o jidaigeki (dramas de época, filmes mais comumente ambientados no Período Edo, embora alguns se passem na Era Meiji ou no Período Heian).

No que concerne à temática, questões de gênero são uma constante na obra de Tanaka. Isso fica evidente em seu terceiro filme, “Chibusa yo eien nare” (“The Eternal Breasts” ou “Os Seios Eternos”, em tradução livre do título em inglês), de 1955. A roteirista é também uma mulher, Sumie Tanaka (1908-2000), e o filme conta a história de Fumiko (Yumeji Tsukioka), casada com um homem infiel e mãe de dois filhos, uma mulher de baixa autoestima que, entretanto, tem vocação como poetisa. Ela se divorcia e decide buscar uma carreira literária.

Cena de “The Eternal Breasts” (1955)
Cena de “The Eternal Breasts” (1955). (Imagem: reprodução)

Fumiko alcança sucesso profissional, mas também lhe ocorre uma tragédia: ela descobre um câncer de mama, que a leva a perder os seios. Mais adiante, conhece um jovem jornalista de Tokyo, admirador de seu trabalho e interessado em escrever uma história sobre sua vida, com quem engata um romance.

O roteiro foi inspirado na história real da poetisa Fumiko Nakajō e em sua batalha contra o câncer de mama. Além do protagonismo feminino e do tratamento de uma doença que estritamente aflige mulheres — e embora a doença permaneça como foco central —, o filme acaba por abordar, ainda, a questão da rejeição ao papel de dona de casa, visto que Fumiko abandona a tradicional estrutura familiar em que estava inserida e alcança independência profissional, e confere à personagem certa liberdade sexual, um avanço na representação feminina no cinema japonês.

Leia também >> Mulheres na História do Cinema: Lois Weber

“The Eternal Breasts” consagrou Tanaka como proeminente diretora “por seu próprio mérito”. Seus dois filmes anteriores, “Koibumi” (“Love Letter” ou “Carta de Amor”, 1953) e “Tsuki wa noborinu” (“The Moon Has Risen” ou “A Lua Nasceu”, em tradução livre do título em inglês, 1955), ao mesmo tempo em que foram promovidos como o trabalho de uma “mulher diretora”, por muitos foram desconsiderados devido à contribuição de cineastas renomados, homens, durante o processo de produção e direção.

O primeiro, “Love Letter”, acompanha um veterano de guerra que agora trabalha escrevendo cartas de amor a mulheres que foram separadas de seus amantes estrangeiros após eventos da Segunda Guerra Mundial. Ele reconecta-se com sua ex-namorada, que havia passado por um casamento indesejado, forçado, que lhe tornou viúva após a perda do marido na guerra, e posteriormente por um aborto — engravidara de um soldado americano, que eventualmente partira do país.

Cena de “Love Letter” (1953)
Cena de “Love Letter” (1953). (Imagem: reprodução)

The Moon Has Risen”, por sua vez, é uma alegoria sobre as mudanças nas configurações sociais e familiares que aconteciam no Japão, na época; um filme leve e cômico sobre os complicados romances de três irmãs que vivem com o pai em um local próximo ao complexo do templo Todaiji, em Nara, após a guerra.

Após seus dois primeiros lançamentos, além da relativização da relevância de Tanaka, debatia-se se sua estreia como diretora não passava de um “capricho de uma grande estrela”, se mulheres teriam a capacidade de dirigir e que tipo de filme deveriam fazer. Apesar de absurda, tal resistência não surpreende quando se considera o modelo patriarcal e extremamente machista que ainda imperava sobre o Japão, naqueles tempos. Movimentos feministas viviam seu início, bem como mudanças políticas e sociais em prol das mulheres.

Desse modo, compreender o contexto histórico do Japão do início do século XX e, mais adiante, do período pós-guerra, é de fundamental importância para se pensar a trajetória de Kinuyo Tanaka, sua transição de atriz para diretora e a relevância de seus filmes.

Modelo patriarcal, privação de direitos e o início da trajetória de Kinuyo Tanaka

A atriz e diretora Kinuyo Tanaka.
A atriz e diretora Kinuyo Tanaka. (Imagem: reprodução)

Em 1896, apenas treze anos antes do nascimento de Kinuyo Tanaka, foi promulgado o Meiji Civil Code, no Japão, para atender às necessidades de um país que passava pelo processo de dissolução de propriedades feudais. Teoricamente, objetivando a construção de uma nação modernizada, o Código teve efeito como uma centralização de poderes e privação de uma série de direitos básicos às mulheres.

Elas não mais podiam assumir a liderança de suas famílias, herdar propriedades, divorciar-se de seus maridos, além de terem sido completamente excluídas de quaisquer atividades políticas. O direito ao voto já havia sido negado alguns anos antes. Ao fim da Era Meiji (1868-1912, referente ao reinado do Imperador Meiji no Japão), tais noções regressivas sobre gênero já haviam sido naturalizadas.

Em 1911, dois anos após o nascimento de Kinuyo Tanaka, a jornalista e ativista anarco-feminista Kanno Suga foi executada por um suposto envolvimento em um complô que planejava o assassinato do imperador. O episódio passou a ser usado para justificador maior controle e repressão sobre atividades consideradas potencialmente subversivas.

A jornalista e ativista anarco-feminista Kanno Suga.
A jornalista e ativista anarco-feminista Kanno Suga.

A mãe de Tanaka vinha de uma família abastada, ligada ao Clã Taira, típica representante dos costumes e valores tradicionais das mais altas classes sociais. Seu pai, por outro lado, segundo a própria cineasta, era um homem “moderno e liberal”, entusiasta de tudo que era novo. Ele faleceu quando ela tinha apenas um ano e meio. Criada pela mãe e a mais nova dentre oito irmãos e irmãs, biógrafos dão conta de que a jovem Tanaka tinha personalidade forte.

Leia também >> Monstros da Universal: história e tradição no Horror

Em 1919, aos 10 anos de idade, ela abandonou o ensino formal após um incidente em que fora castigada por consultar seus exercícios de biwa (um instrumento musical japonês), durante a aula. Este fato é tido por alguns autores como algo que possivelmente influenciou sua individualidade e consciência sobre a opressão de gênero em seu país, já que ela não seguiu no sistema educacional convencional, que era monitorado pelo Estado e reforçava a socialização patriarcal.

Kinuyo Tanaka concentrou-se na prática de biwa, estudando música em um moderno distrito de Osaka, local marcado pelo entretenimento. Foi onde conheceu o cinema, não tardando até que decidisse se tornar atriz. Apesar da relutância da mãe, a jovem teve o apoio de um tio e do irmão mais velho, que trabalhava em uma companhia do Estúdio Shochiku e ajudou em seu processo de contratação. Tanaka assinou com o estúdio em 1924, aos 15 anos.

Kinuyo Tanaka em 1926, prestes a completar 17 anos.
Kinuyo Tanaka em 1926, prestes a completar 17 anos.

Apesar das restrições trazidas pelo Código, a mudança para o modelo econômico industrial, no Japão, gerou mudanças significativas. Em 1920, mais de um terço da população já vivia nas cidades. As mulheres começaram a trabalhar fora de casa, em fábricas ou como secretárias e datilógrafas em escritórios diversos. O modelo familiar reduzido, constituído apenas por marido e esposa, tornou-se mais comum, em detrimento do opressor e mais extenso modelo tradicional feudal.

A decisão de se tornar diretora

Em fins da década de 1940 e início da década de 1950, Kinuyo Tanaka, ainda como atriz, passou a ser ridicularizada por interpretar papéis de mulheres solteiras, formar par romântico com atores consideravelmente mais novos e usar muita maquiagem para disfarçar a idade (ela chegava aos 40 anos). Ao mesmo tempo, o fato de ainda ser escalada como protagonista evidenciava o quanto continuava a se destacar, já que o sistema de estúdio reservava papéis centrais quase que exclusivamente às jovens atrizes.

Em 1949, Tanaka excursionou pelos Estados Unidos como Embaixadora da Boa Vontade pelo Japão, conhecendo políticos, outras estrelas de cinema e comunidades japonesas no Ocidente. Em seu retorno ao país natal, ela usava óculos escuros, um casaco de pele e sapatos vermelhos de salto alto, cumprimentando a multidão com “hello” (“olá”, em inglês).

Kinuyo Tanaka atuando em "Hijôsen no onna" ou "Dragnet Girl" (1933), de Yasujirō Ozu
Kinuyo Tanaka atuando em “Hijôsen no onna” ou “Dragnet Girl” (1933), de Yasujirō Ozu.

Embora a viagem tenha sido bem sucedida, a “americanização” foi um escândalo, já que o próprio motivo de sua escolha como embaixadora parecia pautado na ideia de que ela incorporava certa “identidade nacional japonesa”. Sua postura e vestimentas, assim, foram interpretadas como uma espécie de traição. Duramente criticada, Tanaka isolou-se em casa por meses. Quando anunciou sua estreia como diretora, em 1953, alguns críticos julgaram não passar de uma decisão imprudente de uma atriz em crise.

Em suas memórias, ela afirma ter ficado impressionada ao ver tantas mulheres no mercado de trabalho durante sua visita aos Estados Unidos, e isso teria desencadeado seu desejo de fazer filmes. Mas assume, também, que percebeu, durante aqueles tempos difíceis, que o “tempo de vida” de atrizes protagonistas era curto, o que a incentivou a buscar nova maneiras de se engajar na indústria cinematográfica.

Leia também >> Agora e Sempre: um clássico que destaca a amizade feminina

Quando tomou a decisão, porém, ela parecia ter superado sua fase em crise. Era internacionalmente aclamada, marcando presença no Festival Internacional de Veneza, e fora proclamada melhor atriz pelo crítico Eito Toshio, por suas performances em três filmes lançados no ano anterior: “Saikaku Ichidai Onna” (“Oharu – A Vida de Uma Cortesã”, no título nacional), “Okaasan” (“Mamãe”) e “Atakake no Hitobito” (“A Família Ataka”, em tradução do título em inglês).

Kinuyo Tanaka em “Oharu - A Vida de Uma Cortesã” (1952)
Kinuyo Tanaka em “Oharu – A Vida de Uma Cortesã” (1952). (Imagem: reprodução)

As inúmeras transformações que aconteceram no Japão após o fim da Guerra do Pacífico, em 1945, são comumente pontuadas como algo que muito provavelmente impulsionou sua estreia como diretora. Apesar do caos político e econômico que o país vivia no pós-guerra, às mulheres foi concedido o direito ao voto, em 1946.

A nova constituição (1946) e a revisão do Código Civil em 1948 determinavam igualdade de direitos em questões relativas à família, educação e trabalho. “Agora que mulheres são membros da Diet também no Japão, acho que seria bom se houvesse ao menos uma diretora de cinema mulher”, afirmou Tanaka em uma entrevista de 1953 (“Diet” refere-se ao poder legislativo bicameral do país).

De volta à filmografia, seis anos após o lançamento de “The Eternal Breasts” estreava “Onna bakari no yoru” (“Girls of Dark”/”Girls of the Night” ou, em tradução livre de um dos títulos em inglês, “Garotas da Noite”, 1961). Produzido cinco anos após a criminalização da prostituição no Japão, o filme segue a reabilitação de uma ex-prostituta e os desafios enfrentados pela personagem em sua tentativa de construir uma nova vida e ser socialmente legitimada. Naquela época, era essa a realidade de milhares de mulheres japonesas que saíam da prostituição.

Leia também >> Mulheres na História do Cinema: Lois Weber

Os dois filmes restantes de Kinuyo Tanaka são também marcados pelo protagonismo feminino: “Ruten no ouhi” (“The Wandering Princess” ou “A Princesa Errante”, em tradução livre, 1960) acompanha Ryuko (Machiko Kyô), filha de uma família aristocrática que, por interesses de governantes japoneses, casa-se com o irmão mais novo do Imperador de Manchukuo, uma forma de legitimar a relação entre o Japão e o estado fantoche. Quando o Japão perde a guerra, porém, Manchukuo é dissolvida e, junto à corte imperial, Ryuko torna-se alvo de perseguição e se vê obrigada a fugir sozinha com a filha.

“The Wandering Princess” (1960)
Cena de “The Wandering Princess” (1960). (Imagem: reprodução)

“Ogin-sama” (“Love Under the Crucifix” ou “Amor Sob o Crucifixo”, em tradução livre, 1962), último filme da cineasta, conta a história do amor ilícito entre uma garota e um príncipe feudal casado, ambos cristãos, durante o Período Sengoku, época em que houve a criminalização do cristianismo pelo Shogun (o comandante do exército japonês, nomeado pelo Imperador, que detinha poderes políticos no país) e consequente perseguição aos cristãos.

“Love Under the Crucifix” (1962), último filme de Kinuyo Tanaka
Cena de “Love Under the Crucifix” (1962), último filme de Kinuyo Tanaka. (Imagem: reprodução)

Percebe-se, assim, que Kinuyo Tanaka destaca-se não somente por seu gênero, mas por suas temáticas — raramente vistas em produções de outros cineastas, seus contemporâneos. Além de colocar mulheres em papéis centrais na narrativa, seus filmes tratam de uma realidade material e cultural, com abordagem alinhada ao período histórico de transição e aquisição de direitos há muito negados.

Mais que uma mulher em posição de poder em uma indústria majoritariamente controlada por homens, Tanaka pautou questões de gênero e conferiu visibilidade àquelas tantas que tão longe estavam de compartilhar seus privilégios

FONTES:
  • BERRA, John. Directory of World Cinema: Japan 2. Intellect Books, 2012.

  • GONZÁLEZ-LÓPEZ, Irene; SMITH, Michael. Tanaka Kinuyo: Nation, Stardom and Female Subjectivity. Edinburgh University Press, 2018.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

11 Textos

Laysa Leal é bacharel em Cinema e Audiovisual com foco em roteiro, direção de arte e crítica especializada. Apaixonada por artes visuais, tem formação profissionalizante em fotografia e atua também como fotógrafa. Não dispensa uma boa música e está sempre pelo circuito de shows e festivais, uma das poucas ocasiões em que prefere o frenesi à quietude de museus e galerias de arte ou ao conforto de salas de cinema.
Veja todos os textos
Follow Me :