Las Lindas: como os papéis de gênero moldam nossas vidas desde cedo

Las Lindas: como os papéis de gênero moldam nossas vidas desde cedo

Em plano fechado, um rosto de frente para a câmera fala ao telefone. Vê-se só do nariz para baixo, a voz não é feminina nem masculina, não se sabe se é homem ou mulher, pode ser um ou outro, pode ser os dois. É assim que começa “Las Lindas“, documentário de 2016, dirigido pela argentina Melisa Liebenthal.

Sendo o rosto da própria cineasta que abre e fecha o filme, é também ela quem filma e entrevista suas melhores amigas da infância e da adolescência, numa proposta de fazer uma análise sobre como as mulheres reproduzem papéis de gênero desde cedo.

No decorrer do documentário, Liebenthal fala das amizades constituídas na infância. Nunca eram grupos grandes, era sempre ela e uma ou duas amigas que brincavam dentro de casa ou num campo vazio próximo. Vestiam o máximo de roupas possível, inventavam fantasias e personagens, faziam danças e movimentos esquisitos, passavam batom e usavam muitos colares. Muito disso está registrado em vídeos e fotos. Agora, já com seus vinte e poucos anos, a cineasta encontra-se novamente com essas amigas e, a partir desses registros, relembram como eram aqueles tempos, dentro de uma perspectiva de construção de gênero.

Apesar de Melisa ter sido mais reservada na infância e adolescência, sem se relacionar muito com outras pessoas além de suas amigas mais próximas, e não ter feito parte das dinâmicas heteronormativas entre meninos e meninas, é esse um dos assuntos de maior interesse dela. Portanto, ao conversar com as amigas, a cineasta deixa clara a proposta de perceber como desde cedo as pressões estéticas e de comportamento já estão presentes na vida das meninas, moldadas para serem femininas, alegres e disponíveis.

Olhar para o passado para refletir sobre o presente

Las Lindas - Melisa Liebenthal (crítica)
Cena de “Las Lindas”, onde a cineasta relembra sua infância nas fotografias exibidas. (Imagem: divulgação)

Por ser a fase da infância e adolescência geralmente bastante volátil, em termos de construção de identidade, um dos aspectos mais interessantes de “Las Lindas” é a facilidade de quem assiste se reconhecer nas diferentes amigas da cineasta e em diversas fases em que viveram. Como aquela fase da vida em que só se quer existir na presença da melhor amiga, e de repente tudo muda após uma viagem de ônibus com a turma da escola; ou então em outro momento onde a partir do interesse pelo menino bonito do colégio, passa-se a agir e se vestir de outra forma; e ainda aquela fase de querer fazer parte do grupo de meninas populares num dia e no outro rejeitá-las fortemente.

Essas dinâmicas, vivenciadas por boa parte das meninas, são o interesse da cineasta, que para além disso, investiga sobretudo os comportamentos que permeavam essas relações e faz o exercício de olhar para isso tudo anos mais tarde. Observar as amigas de Liebenthal refletirem sobre quem eram e quem são agora, quais as dinâmicas que reproduziam e quais as que reproduzem hoje em dia, incentiva o público a fazer o mesmo.

E então, quem, afinal, se lembra da primeira vez que se percebeu diferente dos meninos? Já que essa é uma diferença que está imposta há séculos, meninas e meninos são moldados para atender diferentes padrões de comportamento: meninos jogam bola na rua, meninas brincam de boneca em casa; meninos podem ser barulhentos e agressivos, meninas devem ser quietas e sorridentes; meninos ganham espadas, meninas ganham panelas; meninos vestem azul, meninas vestem rosa, etc. Isso já se sabe. Mas e quando esses padrões se cruzam?

Melisa Liebenthal reflete em “Las Lindas” sobre si mesma entre os depoimentos das amigas. Ela parece ser o ponto fora da curva. Entre as amigas, é a que mais transita entre o masculino e o feminino. Conta que quando entrou na adolescência parou de sorrir para as fotos, não porque não estava feliz, simplesmente porque não queria, e por causa desta quebra de expectativa, ouvia sempre comentários de que estava feia e de que uma menina não deveria sair assim nas fotos, então passou a fazer um sorriso forçado para adaptar-se à essas convenções.

Além do sorriso, a cineasta também não se maquiava nem usava saia ou outras roupas consideradas femininas; pelo contrário, por desde pequena ser muito grande e não gostar de chamar a atenção, passou a usar roupas de cores neutras, largas e mais masculinas. 

Las Lindas
Melisa Liebenthal na adolescência. (Imagem: divulgação)

Por outro lado, suas amigas cumprem as regras. A amiga que tinha lábios grossos, usava aparelho e se sentia um ratinho de tão magricela, tinha uma baixa auto-estima e ciúmes da mãe – que era uma mulher jovem e chamava a atenção entre os meninos do colégio. Hoje em dia a amiga é modelo fotográfica, super feminina, e se encaixa perfeitamente no padrão que desde adolescente almejava. No entanto, é notável o quão supérflua e preconceituosa fica quando fala de estética, rechaçando até mesmo uma desproporção física dela ou das amigas.

Quantas amigas temos que são assim? Que reproduzem comportamentos que excluem e oprimem não só elas mesmas quanto outras que estão a sua volta? E antes que pensem que a responsabilidade é individual, a pergunta também vale para pensar no quanto a estrutura da sociedade não é construída para aceitar a existência do diferente, do corpo fora dos padrões estéticos e físicos. E mais, deve-se pensar também no quanto estes padrões impostos (magra, alta, modelo) oprimem mulheres negras, que têm seus corpos objetificados e sexualizados enquanto mulheres brancas idealizam o corpo da mulher europeia, séria e respeitada. 

As dinâmicas dos papéis de gênero em Las Lindas

papéis de gênero
Cena de “Las Lindas”, uma das amigas de Melisa que aparece no documentário. (Imagem: divulgação)

E todo este comportamento começa a ser imposto quando? A partir de que idade inicia a pressão para as meninas serem femininas e sorrirem nas fotos, para pararem de correr, pular e dar cambalhotas, porque estão de saia e agora devem fechar as pernas e ficar calmas? A partir de que idade são moldadas para falarem baixo e agradarem os homens? Se já na infância é comum ver isso acontecer, na adolescência tudo se intensifica, pois o padrão heteronormativo se materializa em um jogo de sedução entre meninos e meninas, no qual o homem seduz e a mulher é seduzida. Em que ela deve ser conquistada mesmo que não queira, além de aceitar o homem só porque ele se interessou por ela.

Las Lindas“, além do nome do filme, é também o nome do grupo no qual uma outra amiga de Liebenthal fazia parte na adolescência. Elas eram as mais bonitas, e claro, as populares, e todos os meninos as desejavam. Elas usavam maquiagem, roupa justa, salto alto, eram a atração principal nas festinhas, brincavam de “pêra, uva, maçã, salada-mista” e sempre tinham que aceitar salada-mista: era uma regra velada que as faziam ser as populares que eram. Por esse tipo de comportamento favorecer os meninos, acabavam trazendo má fama às meninas, fazendo com que fossem reprimidas por outros colegas e também pelos pais. E como estão essas meninas hoje?

A amiga da cineasta está muito bem. Ela lembra dessa época enquanto se maquia no espelho. Diz que prefere maquiagem mais natural, tem um discurso consciente sobre o seu lugar enquanto mulher e talvez até seja feminista. Mas e as outras meninas? Aquelas que, anos mais tarde, ganharam fama de “puta” porque ficaram com dois meninos na festa, usavam saia bem curta, além do boato de que uma delas não era mais virgem. Como elas estão hoje em dia? Elas estudavam no seu colégio? Alguma delas era sua amiga? Era você? 

Revisitar para desconstruir

Las Lindas - documentário
Cena de “Las Lindas”, outra amiga de infância da cineasta. (Imagem: divulgação)

Las Lindas” instiga quem está do outro lado da tela a revisitar o seu próprio passado e lembrar como funcionava as dinâmicas entre você e suas amigas – e também entre as meninas e outros meninos. Instiga também a trazer essas reflexões para o presente e questionar se as atitudes do passado, de modo geral, ainda se baseiam nos mesmos valores, ou se mudaram, e de que forma.

As amigas que eram populares continuam tão liberais quanto eram ou tornaram-se conservadoras em defesa da família e dos bons costumes? As que queriam se sentir lindas, tornaram-se escravas da maquiagem, do passo-a-passo da rotina de beleza, ou fizeram as pazes com quem são? As que não se enquadravam no que era suposto, encontraram sua turma ou continuam deslocadas?

O documentário, por fim, questiona a quantidade de comportamentos que as mulheres incorporam, e, por mais opressor que sejam, muitas vezes reproduzem sem se darem conta, já que muitas dessas opressões são naturalizadas há muito tempo e, sem que haja um confronto constante, continuarão existindo ainda por muito tempo. E talvez um bom começo para se quebrar essa construção de gênero seja refletindo sobre ela, sobre nós. Nós enquanto parte integrante de um coletivo, que enquanto grupo é oprimido pelo gênero mas que também pode projetar essa opressão em outros grupos minoritários.

E você, que tipo de menina você foi? E que tipo de mulher você se tornou?


Edição e revisão por Isabelle Simões.

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