Antes do cinema se tornar rentável o suficiente para atrair a atenção de homens e bancos, muitas mulheres ocuparam a cadeia de produção cinematográfica nas mais diversas funções: roteiro, realização, produção, montagem, edição. Entre 1912 e 1919, contabiliza-se cerca de 11 diretoras mulheres na folha de pagamento da Universal Studios, somando aproximadamente 170 filmes realizados no período. Um dos nomes de destaque da época é Lois Weber, a maior diretora dos estúdios Universal e a primeira mulher induzida ao Motion Picture Directors Association (Associação de Diretores de Filmes, em tradução livre).
Mas a partir da segunda metade dos anos 1920, o cinema se provou ser uma indústria das mais rentáveis. Começa assim o processo de demissões em massa das mulheres que ocupavam cargos de poder, abrindo espaço para que os homens assumissem os créditos. Com homens roteirizando e dirigindo, as narrativas hiperssexualizadas e objetificadas despontaram e os cargos tidos como femininos (figurino e maquiagem, por exemplo) eram os “prêmios de consolação” para as mulheres remanescentes. Nesse cenário adverso existe e resiste a figura de Dorothy Arzner.
A jovem, que foi motorista de ambulância durante a Primeira Guerra Mundial e estudante de medicina, abandonou o curso nos últimos períodos para se dedicar à sétima arte, após visitar um estúdio cinematográfico. Sabendo que Hollywood era onde queria trabalhar, candidatou-se em 1919 ao cargo de datilógrafa e de revisora de roteiros. Dorothy conseguiu o emprego na The Famous Players-Lasky Film Company, posteriormente chamada Paramount Pictures.
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Arzner seguiu se desenvolvendo dentro do estúdio, primeiro como revisora e roteirista e, depois, como editora, cargo em que se destacou com “Blood and Sand” (1922), de Fred Niblo. No filme, protagonizado por Rudolph Valentino, Dorothy teve a criativa ideia de misturar cenas de touros que já existiam nos arquivos às gravações, feito que rendeu uma economia milionária à Paramount.
Apesar da competência comprovada ainda tão jovem, o estúdio se recusava a autorizar a realização de um filme assinado exclusivamente por Dorothy Arzner. Somente com uma ameaça da editora de deixar a Paramount, pela Columbia Pictures, que a empresa se rendeu e, assim, Arzner pôde assinar em 1927 sua estreia oficial na indústria cinematográfica com “Fashions for Women”, filme também editado por ela em sua versão sem som.
Dorothy Arzner e o pioneirismo do cinema sonoro
Após a estreia de sucesso, Arzner dirige mais três filmes da era do cinema mudo: “Ten Modern Commandments”, “Get Your Man” e “Manhattan Cocktail”, os dois primeiros de 1927 e o último de 1928, já com indícios do surgimento do cinema falado. Em 1929, Dorothy marca seu nome na história ao dirigir o primeiro filme sonoro da Paramount Pictures: “The Wild Party”, estrelado por Clara Bow. No entanto, a produção cinematográfica contou com mais um marco. Para que Bow pudesse atuar com mais liberdade de movimentação no set, Arzner inventou o que hoje conhecemos como boom mic. O protótipo era formado por um microfone acoplado a uma vara de pescaria que ficava suspenso durante as cenas.
O ano de 1929 também traz o que se tornaria o Hays Code, no primeiro instante uma lista de temas “tabus” e, posteriormente, um código de conduta ética e moral regulador do sistema audiovisual. Entre 1930 e 1968 cenas contendo nudez, perversão sexual — como homossexualidade e menção às doenças venéreas —, crimes violentos, miscigenação, “pecados” e temas relacionados seriam proibidas. Como mulher lésbica e que quebrava estereótipos ao utilizar roupas enquadradas no vestuário masculino, Dorothy driblava o Código em suas produções ao criar personagens femininas que fogem do esperado.
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Logo em sua estreia no cinema sonoro com “Wild Party”, a diretora cria uma narrativa com mensagens subliminares feministas e personagens que tomam as rédeas de seus objetivos e desejos, passando ainda por questões do universo lésbico. Essas características, mesmo com a pressão do Código Hays se aproximando, reaparecem em outras produções de Arzner, que negava à mulher o estereótipo do cinema hollywoodiano dos anos 1920.
A (única) diretora da Golden Era
Após “Wild Party”, Arzner dirigiu para a Paramount mais 11 produções, incluindo “Sarah and Son” (1930), “Anybody’s Woman” (1930), “Honor Among Lovers” (1931), “Working Girls” (1931) e “Merrily We Go To Hell” (1932), este último bastante polêmico para a sociedade moralista da época. Dorothy mostra nas telas um casamento abalado pelo reencontro do marido com um antigo amor, o que desencadeia o alcoolismo do homem e leva a esposa, incomodada com a situação, a propor um relacionamento aberto.
A diretora deixa o estúdio em 1932 para trabalhar de maneira independente, incluindo para a Columbia Pictures. Neste período ela realiza “Christopher Strong” (1933) com Katherine Hepburn, “Craig’s Wife” (1936) com Rosalind Russell e “The Bride Wore Red” (1937) com Joan Crawford.
Com “Sarah and Son”, Dorothy Arzner se tornou a primeira mulher a dirigir uma produção indicada ao Oscar, com Ruth Chatterton na categoria de Melhor Atriz. Já com “Christopher Strong”, às vésperas da imposição do Código Hays, impulsionou a carreira de Katherine Hepburn que retratou uma mulher completamente fora dos padrões do cinema pré-código. Arzner derruba o melodrama feminino ao criar personagens como Lady Darrington (Katherine Hepburn), uma aviadora independente e obstinada que vai além dos papéis sociais. A esta altura a diretora era a única atuante na era de ouro hollywoodiana.
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Mesmo como diretora solitária na era dourada e produzindo na vigência do código de conduta ética e moral, Arzner subverte até os títulos etiquetados como “filmes para mulheres”. “Craig’s Wife” (1936), a princípio mais um melodrama protagonizado por uma dona de casa, é transformado tanto pela diretora, como pela atriz Rosalind Russell, conhecida por interpretar personagens independentes e fortes. Na produção, Russel é uma esposa completamente desinteressada das questões domésticas e familiares, mas sedenta por dinheiro e poder — espaços tidos como tradicionalmente masculinos no período — tanto que assume ter se casado com Craig por “liberdade” e não por amor.
O legado de Dorothy Arzner
Nos anos 1940, reta final da produção de Dorothy Arzner para a indústria cinematográfica, a diretora encabeça “Dance, Girl, Dance” (1940) e “First Comes Courage” (1943). O primeiro, uma mistura de musical com crítica aos bastidores e à dificuldade das mulheres se posicionarem no mundo além dos espaços pré-determinados, coloca as bailarinas interpretadas por Lucille Ball e Maureen O’Hara na disputa pelo mesmo homem.
Porém, mais uma vez, o que parece um “melodrama para mulheres” se transforma em mensagem de independência feminina quando as protagonistas percebem que o amor pela dança é maior que o desejo por um homem. O longa foi adicionado ao National Film Registry da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 2007, uma seleção anual de filmes escolhidos para preservação com base em sua importância e impacto na indústria e no público.
O último longa de Dorothy Arzner, “First Comes Courage” (1943), mais uma vez retrata a figura da mulher independente, agora na pele de uma guerrilheira da resistência norueguesa que prefere lutar contra o nazismo a fugir com o homem que ama. Arzner deixou a direção do longa após um ataque de pleurisia e foi substituída por Charles Vidor, sob ordem de Harry Cohn, um dos fundadores da Columbia Pictures reconhecido não só pelo poder, mas pelas práticas machistas, como a instituição do “teste do sofá” para as atrizes iniciantes. Arzner foi demitida e Vidor não foi creditado na produção.
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Mesmo afastada de Hollywood, Dorothy não deixou de produzir. Filmou curtas educacionais para mulheres no exército, gravou comerciais para a Pepsi a pedido de Joan Crawford, com quem trabalhou em “The Bride Wore Red” (1937) e lecionou entre 1959 e 1963 na UCLA, sendo uma das mentoras de Francis Ford Coppola. Arzner foi a primeira cineasta mulher a fazer parte do Directors Guild of America e a ter uma estrela como diretora na Calçada da Fama de Hollywood.
Mostrar competência, sendo uma das poucas mulheres em uma indústria que passou a ser dominada por homens, não deixa espaço para a criatividade. Apesar da estética convencional, Dorothy Arzner foi bastante profissional ao dedicar boa parte da vida às produções de grande estúdios, com narrativas que driblavam o moralismo da época através de suas personagens femininas fortes, decididas e donas do próprio roteiro. Dorothy faleceu em 1979, aos 82 anos.
Fontes:
- This Tinseltown Tyrant Used Sexual Exploitation to Build a Hollywood Empire
- What Women Want: The Complex World of Dorothy Arzner and Her Cinematic Women
- Dorothy Arzner. Oxford Bibliographies
- Women’s cinema as counter-cinema
- Produção fílmica com nome de mulher: Visões e projeções de gênero
- Uma Outra História: a “esquecida” nação do Cinema das Mulheres
- COOPER, Mark. Universal Women: Filmmaking and Institutional Change in Early Hollywood. University of Illinois Press. Champaign, Illinois, 2010
Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.