“A Despedida” e as muitas faces do luto

“A Despedida” e as muitas faces do luto

A morte não é um assunto agradável. Inevitável e indigesta, ela é um combustível e tanto para histórias que buscam provocar a catarse do espectador, evocando sentimentos de dor, desespero e tristeza. Mais raro, no entanto, é uma narrativa que usa da morte para discutir questões de identidade e pertencimento, buscando não apenas as lágrimas, mas o riso. É o caso de “A Despedida“, filme de Lulu Wang.

“The Farewell” é um filme de comédia dramática norte-americano de 2019, dirigido e roteirizado por Lulu Wang. A história acompanha a aspirante à escritora Billi (Awkwafina), imigrante chinesa que mora em Nova York com seus pais. Billi sofre um severo baque quando descobre que sua avó (Zhao Shuzhen) está com câncer em um estado avançado e não viverá mais de três meses. E o baque vem seguido de uma surpresa ainda maior: A família decidiu não contar para Nai Nai (“avó paterna” em chinês) sobre seu diagnóstico. Ao invés disso, eles planejam um casamento entre o primo de Billi e sua namorada japonesa, que servirá como desculpa para que toda a família possa ver Nai Nai e se despedir dela. Billi, que a princípio não está convidada – os pais temem que ela não será capaz de reprimir as emoções o bastante para manter a farsa – decide ir com eles, mesmo tendo objeções à escolha da família.

A Despedida é um filme de comédia dramática norte-americano de 2019, dirigido e roteirizado por Lulu Wang.
“A Despedida” é um filme de comédia dramática norte-americano de 2019, dirigido e roteirizado por Lulu Wang. (Imagem: reprodução)

A premissa que, aos olhos ocidentais, pode parecer absurda e revoltante, na verdade está de acordo com a cultura e os costumes chineses. “A Despedida” é baseado nas experiências reais da diretora, e o filme não perde tempo para informar isso ao espectador, abrindo com a frase “baseado em uma mentira real”. A história, narrada pela primeira vez por Wang em 2016, em um episódio do podcast This American Life, acompanha tanto o esforço da família para evitar que Nai Nai descubra a verdade como a dor que cada parente sente ao encarar a ideia de se despedir da amada matriarca.

No meio disso tudo está Billi, que guia o espectador através do choque cultural que o enredo do filme provoca. Em uma performance sutil e dolorosa, Awkwafina transmite perfeitamente a confusão e o luto da jovem, bem como seu conflito diante da ideia de mentir para Nai Nai sobre o seu diagnóstico.

Criada em Nova York desde criança, Billi não consegue evitar ter uma perspectiva sobre o assunto moldada pelos valores individualistas do mundo ocidental, sentindo-se extremamente desconfortável com a posição em que se encontra. Nos Estados Unidos, ela aponta em determinado momento, a ideia de esconder o diagnóstico terminal de um parente não poderia nem ser considerada. Seria ilegal. O choque cultural é inevitável, e o conflito de Billi cumpre a função de fazer o expectador se identificar com a personagem, efetivamente garantindo que passaremos por essa jornada junto com ela.

Humanidade em todos os cantos

Embora Billi, como protagonista, seja o veículo que transporta o espectador para a história, nada em “A Despedida” poderia funcionar sem a precisão do roteiro de Wang, que tem o cuidado de fornecer dimensão para cada um dos membros da família. Através de pequenos momentos, pontuais mas impactantes, podemos perceber que cada um daqueles indivíduos está, à sua maneira, vivendo o mesmo conflito de Billi – se não sobre a mentira, definitivamente sobre a despedida. Embora o filme não acompanhe todos em suas trajetórias, ele fornece relances constantes da humanidade dessas pessoas, deixando a impressão de que diversos filmes poderiam ser feitos sobre a história desse mesmo evento, cada um seguindo um parente diferente.

A Despedida (2019) crítica
Embora Billi, como protagonista, seja o veículo que transporta o espectador para a história, nada em “The Farewell” poderia funcionar sem a precisão do roteiro de Wang, que tem o cuidado de fornecer dimensão para cada um dos membros da família. (Imagem: reprodução)

Apesar de despontarem como indivíduos, no entanto, o roteiro não se esquece que os membros da família estão unidos por conexões profundas, e são, de acordo com a cultura chinesa, “partes de um todo”. Essa noção é reforçada pela competente direção de Wang, que com frequência enquadra todos os membros da família ao mesmo tempo em um frame, criando uma impressão inicial de lotação que se dilui conforme assistimos o filme e vamos nos familiarizando com aquelas figuras. Aos poucos podemos, então, entender como cada uma daquelas peças singulares se junta para compor uma unidade.

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Como cabeça dessa unidade, Zhao Shuzhen brilha, criando, em Nai Nai, uma fonte constante de riso. Sua postura ao mesmo tempo amorosa e autoritária, marcada por uma constante teimosia, a leva a tomar as rédeas da organização do casamento com mão de ferro. Shuzhen e Wang compõem uma personagem que despertará a afeição dos espectadores, que, muito provavelmente, serão lembrados de outras figuras queridas de suas próprias famílias. Nai Nai é uma presença forte mas doce, e a química de Shuzhen e Awkwafina ajuda a estabelecer a intimidade entre Billi e sua avó, bem como o amor que nutrem uma pela outra.

Entre verdades e mentiras

Se à primeira vista a resposta para o dilema de contar ou não para Nai Nai sobre o seu diagnóstico pode parecer muito clara, “A Despedida” passa a maior parte do seu decorrer se dispondo a desconstruir essa certeza, sem jamais oferecer uma resposta igualmente simples para substitui-la. Ao invés disso, o filme deixa o expectador marinar no desconforto, tal como a própria Billi, enquanto apresenta argumentos para ambos os lados da questão.

Shuzhen e Awkwafina em "A Despedida" (2019)
Nai Nai é uma presença forte mas doce, e a química de Shuzhen e Awkwafina ajuda a estabelecer a intimidade entre Billi e sua avó, bem como o amor que nutrem uma pela outra. (Imagem: reprodução)

No fim das contas, o que acaba saltando aos olhos não é a moralidade por trás da decisão, e sim os sentimentos que a cercam. Com a mentira emergem uma série de pequenas verdades que se relacionam a questões de identidade, da experiência do imigrante e até da dor de crescer e ver lugares e pessoas amados desaparecendo ao seu redor.

“A Despedida” não fala só sobre a perspectiva da morte terrena, mas sobre diversos tipos de morte que encaramos durante a vida – a morte da infância, a morte de uma casa que um dia pareceu eterna. E talvez o grande trunfo do filme seja abraçar a ausência de uma solução fácil para essas dores, escolhendo, ao invés disso, permitir que seus personagens as sintam por completo. Acima de tudo, está o amor, e, o filme sugere, talvez seja essa apenas a possibilidade que persevera, e que mantém um laço entre Nai Nai e Billi que ultrapassa qualquer limite cultural ou físico.

O particular em “A Despedida” que proporciona o universal

Falar sobre “A Despedida”, em um momento dominado por discussões a respeito dos indicados ao Oscar de 2020, significa ter que reconhecer o elefante branco (muito, muito branco) na sala: apesar do filme não ter investido em uma campanha para os Oscars, Awkwafina era um dos nomes mais citados entre os palpites de indicações para Melhor Atriz, principalmente após sua vitória no Globo de Ouro, e sua ausência entre as indicadas, bem como a de Lupita Nyong’o, reacendeu o velho debate sobre a falta de diversidade entre as histórias reconhecidas pela Academia. É a clássica situação que desaponta sem surpreender, e que levanta novamente a discussão do valor de uma premiação que parece, a cada ano mais, ter ficado parada no tempo. Mesmo os avanços parecem vir em um esquema de “um passo para frente, dois para trás” – em um ano com “Parasita“, um filme sul-coreano, entre os mais cotados para o prêmio principal da noite, por exemplo, a brancura que prevalece nas indicações de atuação fica ainda mais evidente, deixando um gosto amargo na boca.

A Despedida (2019) crítica
No caso de “The Farewell”, o que fica claro é a oportunidade perdida. (Imagem: reprodução)

No caso de “A Despedida”, porém, o que fica mais claro é a oportunidade perdida de reconhecer as possibilidades que uma história tem não apenas de canalizar o universal através do particular, mas de usar o universal para colocar o particular em foco, e, com isso, gerar empatia para com situações que muitos de nós nunca viverão. O que fica no fim do filme é o sentimento maravilhado diante da capacidade das histórias de nos fazer viver muitas vidas, e o lamento pela insistência de um foco incessante nas mesmas narrativas, de novo e de novo.

Ainda não há previsão para a estréia de “A Despedida” no Brasil.


Edição por Isabelle Simões e revisão por Jessica Bandeira.

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Formada em História, Fernanda é escritora e trabalha com tradução, legendagem e produção de conteúdo. Gosta de games, quadrinhos e filmes. Passa a maior parte do tempo falando do seu cachorro ou do MCU.
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