Mulheres do Século XX: a importância de uma educação feminista

Mulheres do Século XX: a importância de uma educação feminista

O filme de Mike Mills, lançado em 2017, concorreu ao Oscar como Melhor Roteiro Original, assim como ao Globo de Ouro de Melhor Filme Musical ou Comédia e Melhor Atriz para Annette Bening. O estilo do diretor e roteirista é reunir histórias que ele vivenciou ao longo da vida ao invés de apenas inventá-las, portanto, seus filmes têm grande cunho autobiográfico. Dessa forma, “Mulheres do Século XX” é uma homenagem de Mills às mulheres que o criaram e sua mãe, além de suas irmãs e paixonites representadas nessa comédia dramática.

Dorothea (Annette Bening) é uma mulher de meia idade que tem um filho adolescente. Nascida na década de 1930, vivenciou a Grande Depressão e almejava ser pilota de avião na Segunda Guerra Mundial. Foi a primeira mulher a trabalhar na sala de projetos da Continental Can Company (fábrica norte americana de containers e latas fundada em 1904) e está sempre fumando e fazendo piadas. A construção da personagem teve muito auxílio de Annette, afinal, Mills é um homem falando sobre maternidade e sabia que não poderia fazer isso sozinho. Assim, o diretor estudou diversos filmes dos anos 30 e 40 para escrever Dorothea e observou que as mulheres tinham um ótimo senso de humor e eram retratadas como mais independentes dos homens, utilizando dessa subversão na personagem.

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Dorothea e Lucas em cena de "Mulheres do Século XX".
Dorothea e Lucas em cena de “Mulheres do Século XX”. (Foto: reprodução)

O filho de Dorothea, Jamie (Lucas Jade Zumann), é um garoto que está entrando em uma das fases mais complicadas da vida: a adolescência. O ator conseguiu transmitir muito bem a ideia de que Jamie estava numa fase pré-sexual, mas que a qualquer momento poderia ter sua primeira vez. É interessante notar que o personagem seja construído nessa faixa etária, porque é quando os meninos acabam se tornando mais agressivos com as garotas, interessados principalmente em sexo, e quando começam a consumir pornografia e a expressar a tal virilidade com os amigos, expondo suas intimidades e deixando as meninas desconfortáveis.

Dorothea, que cria Jamie sozinha, tem medo de não dar conta de transmitir a ele tudo o que é necessário para que seu filho explore o mundo sem se machucar e ou machucar os outros ao seu redor. Ela pensa em como atingir o filho e torná-lo um bom homem, porém, ela o conhece cada vez menos. Por isso, ela pede auxílio às duas jovens que têm uma boa relação com Jamie: sua melhor amiga Julie (Elle Fanning) e Abbie (Greta Gerwig), punk novaiorquina que aluga um quarto em sua casa.

Dorothea pedindo ajuda à Julie e Abbie.
Dorothea pedindo ajuda à Julie e Abbie. (Foto: reprodução)

Devido à época que a história se passa (1979), o movimento punk também é retratado no longa. A música está muito presente, o que pode ser atribuído ao fato de Mills ser baixista da banda R.E.M., mas além disso, é usada como marcador e difusor das épocas: as cenas de Dorothea são acompanhadas com um jazz e blues típicos dos anos 50 enquanto as cenas das jovens e Jamie são carregadas de punk.

A representação das mulheres do século XX

O desenvolvimento do enredo de “Mulheres do Século XX” se dá, sobretudo, com o desenvolvimento dos personagens e com a abertura aos conflitos que Jamie vivencia. Dessa maneira, cada personagem nos é apresentado de forma completa, principalmente as mulheres, que são o foco do longa. Mesmo que o filme se passe em 1979 e estejamos vivendo no século XXI, as semelhanças são enormes, o que pode nos fazer refletir: o que, afinal, mudou para as mulheres nesse período?

Abbie fotografando Julie em cena de "Mulheres do Século XX".
Abbie fotografando Julie em cena de “Mulheres do Século XX”. (Foto: Reprodução)

Dorothea é o que o diretor chama de proto feminista, uma figura meio andrógina que ocupou posições tidas como masculinas ao longo de sua vida, onde acredita que não precisa de uma figura masculina para educar um homem. É uma mulher com ideias muito bem definidas, forte, mas ao mesmo tempo tempo representada como solitária. Ela retrata, de certa forma, todas as mulheres e mães que precisam se mostrar fortes para os outros, mas nunca deixaram de ser sensíveis e sofrerem pelas opressões que passam, mesmo que sozinhas. A atuação de grandiosa de Annette Bening expressa perfeitamente essa sensação de dicotomia entre força e solidão feminina.

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Já Abbie é uma figura reluzente no filme, uma jovem artista punk que busca transformar seus objetos e cotidiano em arte, o que incluí suas roupas íntimas e pílula anticoncepcional. A personagem está enfrentando câncer no colo do útero, ocasionado por uma medicação que sua mãe tomou anteriormente para manter as gestações anteriores, o que faz com que a mãe não suporte conviver com a filha doente. Abbie, então, sai de casa, aluga um quarto na casa de Dorothea e é responsável por falar de feminismo e punk com Jamie, emprestando seus livros e mostrando seus LPs.

Dorothea em cena de "Mulheres do Século XX".
Dorothea em cena de “Mulheres do Século XX”. (Foto: Reprodução)

Julie, porém, é uma adolescente fervilhando hormônios e dúvidas. Complexa e autoconfiante, ela enfrenta diversos conflitos referentes à sexualidade. Além disso, sua mãe é psicóloga e a obriga a ir em suas sessões de terapia em grupo com outras garotas. Já sua relação com Jamie é muito sensível, uma espécie de amor platônico refletido em um laço forte de amizade.

A vulnerabilidade que envolve a personagem é relatada por ela como o extremo oposto. Julie acredita que a característica mais importante de alguém é sua força. Portanto, trata-se de um retrato que mostra como mulheres como Dorothea influenciam as mais novas, revelando a importância que a força feminina tem, mesmo diante tanta dúvida interna. Inclusive, a própria Elle Fanning disse que nunca fez uma personagem tão complexa, principalmente porque ela mesma estava vivendo os conflitos de Julie: não é nada fácil crescer e ter tanta coisa pra lidar.

Jamie e Julie em cena de "Mulheres do Século XX".
Jamie e Julie em cena de “Mulheres do Século XX”.
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A maternidade em “Mulheres do Século XX”

Ponto chave da narrativa, a maternidade é representada de forma muito sensível. Dorothea é uma mãe preocupada e solteira, que busca entender como fazer com que Jamie não se torne um machista. Portanto, o conflito abordado pela criação de Jamie é o mesmo de muitas mulheres que educam seus filhos homens: como fazer com que Lucas seja consciente e não perpetue ideias machistas? É claro que o filme não tenta sanar esse questionamento, pois mostra que o contato com as mulheres e o feminismo é mais importante do que o contato com uma figura masculina.

Além de Dorothea, é importante refletir sobre Abbie e sua mãe (Thea Gill). A relação das duas é pouco retratada, no entanto, parece conturbada devido à doença de Abbie.  Durante as gestações anteriores, a mãe de Abbie passou por dois abortos, portanto, quando estava grávida da filha tomou DES, um remédio anti-abortivo para fazer com que o corpo fosse capaz de manter a gravidez e que, infelizmente, trouxe consequências para Abbie mais tarde. Outras filhas das mulheres da época também foram vítimas dos efeitos colaterais do remédio e desenvolveram câncer.

A maternidade em "Mulheres do Século XX"
Dorothea e Jamie em cena de “Mulheres do Século XX”. (Foto: Reprodução)

De alguma forma, o ideal de maternidade também perpassa a trama, uma vez que Abbie pode não conseguir ter filhos em decorrência do câncer, abordando o sofrimento diante da notícia e o questionamento de Dorothea se Jamie foi a melhor coisa que lhe aconteceu, recebendo um sim como resposta.

Sexualidade feminina

As protagonistas de “Mulheres do Século XX” são essenciais para transmitir a ideia da naturalidade ao falar sobre sexualidade feminina, não só entre as mulheres, mas entre os homens também. Alguns elementos que refletem as conquistas de direitos sexuais femininos são retratados, como a pílula anticoncepcional e o teste de gravidez. Bem como, Julie e Abbie tomam as rédeas nesse assunto ao falarem sobre suas experiências sexuais, orgasmo feminino e menstruação. Ou seja, Jamie tem muito a processar, mas ao ter contato com tais assuntos através dessas mulheres, o garoto compreende que transar não é apenas penetração e que muitas mulheres fingem orgasmo.

Em uma cena, Dorothea é chamada pra sair por um dos colegas de trabalho e este a questiona se era lésbica. O estereótipo de que uma mulher imponente e forte é necessariamente lésbica, reflete o preconceito e o despreparo masculino para lidar com mulheres que ameaçam sua posição de superioridade. Imagine como seria se homens como ele tivessem tido o contato que Jamie teve em sua adolescência com feminismo.

“Mulheres do Século XX” é um filme cheio de reflexões sobre a vida, que nos faz pensar sobre a nossa própria realidade e das mulheres que nos antecederam, além de refletirmos quantos direitos nos foram garantidos devido à suas lutas e quanto ainda precisamos batalhar pelas mesmas causas de décadas atrás.

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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