As vozes que ecoam a importância das vidas negras na música

As vozes que ecoam a importância das vidas negras na música

De Billie Holiday a Beyoncé, artistas negros cantam sobre a negritude e denunciam a violência sofrida por pessoas negras na América e no mundo.

Dos lamentos do blues ao hip hop atual, a experiência da existência negra num mundo extremamente inóspito para nós, foi traduzida em canções e arte por artistas de diversas épocas.

Os hinos da década de 1960

Billie Holiday cantou Strange Fruit pela primeira vez no Cafe Society, em 1939, onde colocou sua carreira em risco em nome do que acreditava, mesmo temendo retaliações. Holiday dizia que a canção a fazia lembrar de seu pai e por isso continuava cantando.

“Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees(…)”

Árvores do sul dão uma fruta estranha/ Sangue nas folhas e sangue na raiz/ Corpos negros balançando na brisa do sul/ Frutas estranhas penduradas nas árvores de álamo (…)

– Trecho de Strange Fruit

A canção, na verdade, era um poema escrito por Abel Meeropol sobre o linchamento de dois homens negros. Billie transformou o poema em um lamento pela morte de pessoas negras que eram enforcadas e linchadas na América daquela época, mas que ainda trata os cidadãos de pela escura da mesma forma.

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Em Mississippi Goddam, Nina Simone também cantou sobre a situação do povo negro em seu país. Nina teve uma longa história no ativismo e também sofreu retaliações quando resolveu cantar sobre a desigualdade e a luta pelos direitos civis. A canção é um desabafo raivoso sobre o assassinato de quatro crianças negras numa igreja de Birmingham, no estado do Alabama, em 1963.

“(…) They try to say it’s a communist plot
All I want is equality
For my sister my brother my people and me…

“Eles tentam dizer que é uma conspiração comunista/ Tudo o que eu quero é igualdade/ Para minha irmã, meu irmão, meu povo e eu…”

– Trecho de Mississippi Goddam

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Também na década de 1960, período em que o movimento pelos direitos civis teve como líder Martin Luther King, o jovem cantor Bob Dylan, que estava começando a sua carreira, se destacou com o que foi chamado na época de música de protesto. Suas canções se tornaram hinos da luta pelos direitos civis americanos.

“Yes, ‘n’ how many years can some people exist
Before they’re allowed to be free?
Yes, ‘n’ how many times can a man turn his head
And pretend that he just doesn’t see?”

Sim, e quantos anos podem algumas pessoas existirem/ Antes que elas possam ser livres?/ Sim, e quantas vezes um homem pode virar a cabeça/ E fingir que ele simplesmente não vê?

– Trecho de Blowing in the wind

Blowing in The Wind foi regravada por diversos cantores da época, mas foi na voz da cantora de folk Odetta, considerada a trilha sonora do movimento pelos direitos civis, que a canção tomou a forma e o peso de uma mulher negra cantando sobre as dores de um povo que ainda não era livre, nem considerado humano, e ainda lutava pelos direitos mais básicos da condição humana.

Mavis Staples também foi uma voz ativa a serviço dos direitos civis do povo negro, e teve uma amizade com próxima com Marthin Luther King Jr. Ao contrário da imagem que foi construída pela mídia branca sobre Luther King, ele não era um líder passivo e sim um radical pela causa negra, disposto a derrubar as estruturas que os mantinham submissos ao domínio da supremacia branca. O princípio básico era a desobediência civil, usando a não violência como estratégia.

Staples começou a sua carreira cantando música gospel, e sua voz ressoou hinos de resistência e covers de canções de Bob Dylan, como A Hard Rain’s a-Gonna Fall. Em 2007, ela lançou o álbum “We’ll never turn back” que traz canções como We Shall Not Be Moved e Down in Mississippi.

Na década de 1960 a luta pelos direitos civis teve na música poderosos aliados e mostrou como a arte pode se posicionar e ser usada a favor da causa antirracista. Para além da denúncia e protesto pela dor sofrida, ela também serve para celebrar a vida negra.

Álbuns conceituais e a música como instrumento de mudança

No final da década de 1980, Janet Jackson fez história com o seu quarto álbum de estúdio Rhythm Nation 1814, onde a cantora se aprofundava em questões raciais.

Seu álbum conceitual foi aclamado pela crítica e mostrou que a música pop também pode servir de ferramenta para questionar a sociedade e ser uma ferramenta de mudança. A intenção de Janet era iniciar uma mudança na sociedade e mostrar ao público jovem que eles deveriam questionar o sistema e a nação em que viviam, ainda extremamente racista e desigual.

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Ainda nos anos 80, o ícone do pop, Grace Jones, falou de escravidão para as grandes massas com o seu hit Slave to The Rhythm, uma canção que discute trabalho e repetição em uma vida sem sentido.

Grace Jones sempre foi perspicaz em esconder mensagens em suas músicas. Além de um hino pop, Slave to The Rhythm usa o afrofuturismo em seu vídeo para questionar a sociedade e a liberdade do indivíduo, fazendo diversas alusões a imagens racistas na cultura pop.

Cena do vídeo Slave to The Rhythm, da Grace Jones.
Cena do vídeo Slave to The Rhythm. Imagem: reprodução

Na década de 80, o surgimento do rap e da cultura hip hop abriu espaço para novas narrativas e celebrações das vidas negras. O estilo que surgiu nas comunidades negras e latinas de Nova Iorque entre as décadas de 1970 e 1980, encontrou no ritmo e na poesia uma forma de denunciar a violência policial que o povo negro sofria, num país ainda extremamente racista e conservador, mesmo após as conquistas dos direitos civis.

Em The Message, Grandmaster Flash & The Furious Five narram a situação da população negra em um período em que o governo conservador do presidente Ronald Reagan piorou consideravelmente a vida da comunidade negras nos EUA. O vídeo da canção, que se tornou um clássico do rap, mostra a Nova Iorque da década de 1980 e a violência policial contra as populações negras, como ainda ocorre hoje em dia.

“(…) Don’t push me, cause I’m close to the edge
I’m trying not to lose my head
It’s like a jungle sometimes, it makes me wonder
How I keep from going under…”

Não me pressione, pois já tô no meu limite/ Tô tentando não perder a cabeça/ Isso é como uma selva, as vezes, isso me faz pensar/ Como é que consigo aturar

– Trecho de The Message

Já na década de 1990, o Public Enemy fez história com o hino Fight The Power. Lançado no final de década de 1980 como parte da trilha sonora de “Faça a Coisa Certa”, filme de Spike Lee, a música marcou uma nova era para o rap.

Chuck D. e cia chamavam o povo para as ruas para lutarem pelo poder enquanto rimam ao lado dos panteras negras e desconstroem ícones da cultura branca americana, como Elvis e John Wayne.

A celebração da negritude no cenário musical 

Atualmente, artistas como Solange, Beyoncé, Kendrick Lamar e Childish Gambino usam a sua arte e o seu trabalho para questionar e celebrar o que é ser negro. Kendrick Lamar venceu um Prêmio Pulitzer, em 2018, com o seu álbum “DAMN.”, lançado em 2017. O rapper fez história ao vencer na categoria música sem estar ligado ao jazz e música clássica.

Em “DAMN” Lamar critica a violência policial e o racismo em suas rimas. Segundo os juízes do prêmio, o disco “captura a complexidade da vida afro-americana moderna nos Estados Unidos”.

Em 2016, Beyoncé deu o seu passo mais profundo ao falar de negritude em seu álbum “Lemonade” e a icônica apresentação no Super Bowl, fazendo uma alusão aos Panteras Negras enquanto cantava Formation. A canção é uma resposta aos ataques racistas que a sua filha mais velha recebeu na internet, assim como uma afirmação sobre a identidade da cantora e o poder da cultura negra, enquanto ela critica a violência policial.

“I like my baby hair, with baby hair and afros
I like my negro nose with Jackson Five nostrils”

“Eu gosto do cabelo da minha bebê, com baby hair e afros/ Eu gosto do meu nariz negro com narinas de Jackson Five”

– Trecho de Formation

Na última década, os artistas negros estão na vanguarda quando o assunto é usar o audiovisual como ferramenta de crítica social e criação estética.

Nomes como Beyoncé e The Carters, duo com o seu marido Jay-Z, Childish Gambino, Solange e o já citado Kendrick Lamar, usam o poder da imagem em favor de seus versos e crítica social sagaz e acertada, ao mesmo tempo em que celebram a cultura negra em suas melhor forma. Ser negro não é apenas sofrer racismo e violência. Temos uma cultura milenar e diversa que é celebrada por esses e outros artistas.

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Capa do álbum "A Seat at The Table", de Solange.
Capa do álbum “A Seat at The Table”, de Solange. Imagem: reprodução.

Em “A Seat at The Table”, Solange criou uma das obras mais potentes sobre as experiências do que é ser negro na sociedade atual, da raiva aos limites ultrapassados, seguindo pela importância da comunidade, o questionamento da supremacia branca e as microagressões racistas sofridas por mulheres negras, como ela canta em Don’t Touch My Hair.

O álbum é um desabafo e uma obra prima da cantora, que a cada nova trabalho consegue desenvolver ainda mais a noção de orgulho e poder da comunidade negra. Em seu trabalho seguinte, “When I Get Home”, a artista não teve medo de explorar a negritude de uma forma mais artística e subjetiva, com pinceladas de afrofuturismo.

“Black skin, black braids
Black waves, black days
Black baes, black days
These are black-owned things”

“Pele negra, tranças negras/ Ondas negras, dias negros/ Amores negros, dias negros/ São coisas de propriedade dos negros.”

– Trecho de Almeda

Os novos nomes que estão transformando a música

Se na década passada os artistas negros dominaram o audiovisual enquanto mostravam o quanto a cultura negra tem o poder de questionar e transformar através da arte, essa nova geração de artistas assume uma postura ainda mais altiva.

Nomes vindos do continente africano, como a rapper Sampa The Great, da Zâmbia, Moses Sumney, o rapper de D-Smoke e o cantor Shamir, dão voz a uma geração de músicos que celebram as vidas negras em suas peculiaridades e diferenças.

A discussão vai para além do racismo e violência, e toma forma com assuntos que antes não eram associados a população negra, considerada forte e sobre humana. Shamir canta sobre ataques de pânico e depressão enquanto discute o que é ser um homem negro e gay.

Em I Can’t Breathe, canção de seu álbum “Resolution” de 2018, Shamir narra os nomes e as mortes de diversos homens negros pela polícia americana. Portanto, é impossível não associar essas violências diárias que a população negra sofre, com uma saúde mental fragilizada. Artistas como Shamir colocam o dedo na ferida de um assunto que ainda é pouco discutido e enfrentado.

“I can’t breathe
Somebody help me please
I see the light
I think I’m gonna die”

“Não consigo respirar/ Alguém me ajude por favor/ Eu vejo a luz /Acho que vou morrer”

– Trecho da canção I Can’t Breathe

Mas para além de todas as dores sofridas e compartilhadas pelo povo negro da diáspora, da denúncia do racismo, microagressões diárias e violência policial, o que deve ser mostrado e celebrado é que ser negro não é só sobre violência e luta por direitos. Isso é um problema dos brancos e todos que se dizem aliados na causa antirrascista.

A supremacia branca faz com que as pessoas negras só sejam percebidas em suas dores e não seu triunfo e poder. Celebrar isso é mostrar que somos muito mais do que a violência que sofremos.

Não nos chamem só para falar sobre racismo, não nos exaltem só quando somos torturados, não cantem só nossas músicas de lamento. Como a rima de D-Smoke em Black Habits: “Black pride, black lives, everything…”. (Orgulho negro, vidas negras, tudo…”)

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Formada em artes visuais e apaixonada por arte, música, livros e HQs. Atualmente pesquisa sobre mulheres negras no rock. Seu site é o Sopa Alternativa.
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