Delia Derbyshire: Doctor Who, música eletrônica e luta por igualdade

Delia Derbyshire: Doctor Who, música eletrônica e luta por igualdade

Cultuada pelos fãs de Doctor Who por sua interpretação da música tema da série, Delia Derbyshire foi muito mais do que uma pioneira da música eletrônica: sua recusa em ser limitada pelo sexismo e pelo classicismo que tentavam lhe impor na música se tornou inspiração de vida e de luta para muitos.

Os primeiros anos de Delia Derbyshire

Delia Ann Derbyshire nasceu em Coventry, na Inglaterra, em 1937. Em 1940, aos três anos de idade, precisou mudar-se com sua família para Preston por segurança, logo após a Blitz de Coventry. Com pais de posses modestas e trabalhadores, seu interesse na música aflorou desde cedo: Delia era fascinada pelos sons produzidos por objetos do dia a dia – e como estes objetos poderiam ser transformados em músicas e criações.

Mesmo destacando-se na escola em matérias populares como leitura e escrita, Delia começou a dizer desde muito cedo que sua educação, na verdade, “era o Rádio”, e, aos oito, seus pais lhe compraram seu primeiro piano, onde a musicista iniciou suas primeiras experimentações entre a música e a matemática – inspirada por Mozart e Bach.

Delia Derbyshire
Delia Derbyshire no departamento radiofônico da BBC | Imagem: reprodução

Após terminar os estudos escolares, Delia foi aceita tanto em Oxford quanto em Cambridge para estudar Matemática – considerado um feito para a época, onde apenas uma em cada dez estudantes eram mulheres, muito menos mulheres de classes modestas. No entanto, alegando que não se saía bem na teoria matemática, após um ano de estudo em Cambridge, Delia muda o curso para sua verdadeira paixão: a música.

Em 1959, Delia conclui a universidade com graduação dupla em matemática e música, também se especializando em música medieval e história da música moderna. A musicista, então, se candidata a uma vaga na Decca Records, apenas para ouvir de resposta que a gravadora “não empregava mulheres em seus estúdios de gravação”. Após isso, ela acaba com uma posição de professora na sede das Nações Unidas em Geneva – ensinando piano para as crianças do consulado britânico e matemática para filhos de diplomatas canadenses e sul-americanos.

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Por quase um ano depois disso, Delia transita entre um trabalho de assistente para o chefe da International Telecommunications Union, breve estadia como professora de diversas matérias em Coventry e assistente de promoções na editora musical Boosey & Hawkes. Somente em novembro de 1960 ela inicia um dos trabalhos mais importantes de sua carreira, o departamento radiofônico da BBC.

Delia Derbyshire - pioneira da música eletrônica
Delia Derbyshire | Imagem: reprodução

A chegada na BBC e o Radiophonic Workshop

Inicialmente assistente do diretor de estúdio, Delia trabalhou no Record Review, um programa estilo revista radiofônica em que críticos resenhavam e discutiam gravações de música clássica. Apesar de reconhecida por ter quase uma “segunda visão” no manejo musical do programa, Derbyshire ouve sobre o trabalho da Radiophonic Workshop – uma unidade de efeitos sonoros considerada restrita e “de elite” dentro do departamento de áudio da BBC – e decide que é ali onde quer aplicar sua energia. No entanto, sua demonstração de interesse na Radiophonic só é ouvida em 1962, quando é designada para o departamento.

A chegada na BBC e o Radiophonic Workshop
A chegada na BBC e o Radiophonic Workshop | Imagem: reprodução

Ali ela iniciou cerca de onze anos de trabalho, com quase 200 programas de TV e rádio do conglomerado de comunicação. Trabalhando juntamente com o compositor Luciano Berio, Delia trabalhou durante um curso de verão no Dartington Hall – sede de um programa beneficente especializado em artes, justiça social e sustentabilidade – com diversos equipamentos emprestados da BBC.

Poucos meses depois, ainda em seus primeiros anos se estabelecendo como uma musicista e experimentalista musical profissional, Delia leva ao mundo o seu mais conhecido trabalho: sua interpretação da trilha sonora de Ron Grainer para o que se tornaria a música tema de Doctor Who.

A faixa trabalhada por Derbyshire foi uma das pioneiras na televisão a ser criada, produzida e pensada unicamente pelo recém-surgido seguimento da música eletrônica. Grainer ficou tão satisfeito e fascinado com a música apresentada por Derbyshire que propôs que os dois dividissem os créditos como co-compositores da música – mas a burocracia da BBC barrou que o nome de Delia estivesse nos créditos.

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Seu trabalho original da música-tema serviu como trilha principal oficial da série ao longo das primeiras dezessete temporadas de Doctor Who, de 1963 a 1980, e a musicista também assinou outras músicas históricas da série, como Blue Veils and Golden Sands e The Delian Mode. Mas o reconhecimento por seu trabalho nos créditos oficiais da série vistos na tela só viria em 2013, no episódio especial de 50 anos de Doctor Who, “The Day Of The Doctor”.

Doctor Who
Imagem da série britânica “Doctor Who” | reprodução

O trabalho de Delia em “Inventions for Radio”

Outro trabalho de destaque na carreira de Delia Derbyshire durante sua estada na BBC é sua participação e contribuição para os quatro álbuns da sessão “Inventions for Radio”, junto ao dramaturgo Barry Bermange. Mesclando a música eletrônica com poesias sonoras que construíam paisagens musicais, o trabalho de Delia nas Inventions era comumente referenciado como sua “mais elegante forma”, construindo um novo gênero distinto dentro do próprio consumo do rádio.

Delia Derbyshire

O primeiro copilado, “The Dreams” (1964) trouxe forte presença de sons metálicos e ressonantes em sua trilha, gravado por Delia a partir de um abajur metálico. Já o álbum seguinte, “Amor Dei” (1964), trouxe uma experiência mais etérea, trabalhada em cima da gravação de um coro de meninos.

Para além do pioneirismo ao trabalhar com a música, os temas abordados pela iniciativa também traziam questões inovadoras e elementares, como as dúvidas sobre a vida após a morte, a experiência de envelhecer e desdobramentos filosóficos que comumente não se aplicava a este tipo de trabalho. 

O trabalho além da BBC na década de 1960

Ainda durante os anos 1960, junto ao trabalho na BBC, Delia ajudou na fundação e criação de pelo menos mais duas organizações voltadas para a música eletrônica. A primeira, a Unit Delta Plus, foi uma iniciativa criada em 1966 junto a Brian Hodgson e Peter Zinovieff para a difusão da música eletrônica, exibindo parte de seus trabalhos experimentais em festivais e concertos específicos. No entanto, após dificuldades em uma performance no Royal College of Art, a Unit Delta se desfaz em 1967.

A segunda iniciativa é o estúdio Kaleidophon, fundado junto ao também pioneiro da música eletrônica David Vorhaus e Hodgson. Inicialmente produzindo músicas e peças musicais para diversos teatros londrinos, é a partir do estúdio que os três produzem e lançam, como a banda White Noise, o álbum “An Electric Storm” em 1969, considerado um dos álbuns mais importantes e influenciadores da música eletrônica moderna.

An Electric Storm, da banda White Noise

Pouco após o lançamento do álbum, Delia e Hodgson deixam o grupo – mas Vorgaus mantém a White Noise. No entanto, antes do fim, os três contribuem sob pseudônimos para a Standard Music Library. Algumas peças da Delia, que usava o anagrama Li De la Russe, ironicamente acabaram sendo usados na trilha sonora de “The Tomorrow People” e “Timeslip“, consideradas rivais de audiência de Doctor Who.

A saída da BBC e o fim da carreira musical

Em 1973, Delia deixa a BBC e trabalha brevemente no estúdio de Brian Hodgson, Electrophon, onde contribuiu com a produção da trilha sonora para o filme “A Casa de Noite Eterna” (1974), de John Hough. Parando de produzir músicas após isso, Derbyshire faz seus últimos trabalhos com trilhas sonoras para os curtas-metragens “One Of These Days” (1973) e “About Bridges” (1975), das artistas Madelon Hooykas e Elsa Stansfield.

O legado imensurável de Delia Derbyshire

Com o “fim” de sua carreira na música, Delia Derbyshire trabalhou como operadora de rádio para a empresa de gasoduto britânica, em uma galeria de arte e em uma livraria. Em 1974, ela casa-se brevemente com David Hunter em Northumberland, mas o casamento tem um fim desastroso – embora eles nunca tenham se divorciado oficialmente.

Ao voltar para Londres, em 1978, ela conhece Clive Blackburn, que se torna seu companheiro de vida pelo resto de seus anos. É de Blackburn, inclusive, a fala que nos mostra que, na vida privada, Delia nunca parou de escrever músicas e experimentar novas formas de produzir musicalmente, mas era tomada por um desejo de perfeição que a cansava e consumia.

O retorno de Delia à música só nos chega em 2001, quando ela apresenta os materiais de estudo musicais para que Peter Kember, conhecido pelo seu nome artístico Sonic Boom, trabalhe na compilação “Synchrondipity Machine”. Infelizmente, Delia falece meses antes do lançamento da faixa, em julho de 2001, devido a complicações de uma falha renal.

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Após sua morte, 267 fitas de bobina – fitas específicas de gravação de música eletrônica – e uma caixa com milhares de ensaios e escritos foram achados em seus pertences. O material foi confiado à Mark Ayres e, em 2007, doado à Universidade de Manchester permanentemente – sendo completados como uma coleção em 2010, junto escritos e artefatos da infância de Delia Derbyshire.

O legado imensurável de Delia Derbyshire

Delia foi representada em inúmeros documentários sobre sua histórica e legado. Os mais conhecidos são “Blue Veils and Golden Sands”, uma peça teatral-documental de radio transmitida pela BBC em 2002, com Sophie Thompson interpretando a musicista, e o docudrama “An Adventure in Space and Time” de 2013, que reconta os primeiros anos de Doctor Who, onde Delia é interpretada por Sarah Winter.

Sarah Winter interpretando Delia Derbyshire
Sarah Winter interpretando Delia Derbyshire no documentário “An Adventure in Space and Time” | Imagem: reprodução

A artista também construiu um legado, para além da música, sempre próximo de trabalhos beneficentes e iniciativas de caridade que unissem a música como forma de educação e inclusão social. Hoje a instituição beneficente que leva seu nome, Delia Derbyshire Day, leva a educação em tecnologia musical e música eletrônica britânica, através dos arquivos e trabalhos de Delia, para eventos e programas educacionais.

Ao pensar a música como muito mais do que pedaços de sons postos juntos, Delia Derbyshire, desde seus primeiros anos, construiu sua história não somente de uma musicista brilhante e incansável, mas também com um símbolo pela igualdade de gênero e em busca da justiça social, galgando seu espaço ao ser recusada como musicista unicamente por ser mulher e transformando a sua arte em forma de inclusão e educação.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Jornalista, fotógrafa, feminista e lésbica cearense. Ariana torta e viciada em qualquer série, filme ou livro que tenha mulheres amando mulheres, tem voltado sua atuação à defesa dos direitos humanos e à luta por visibilidade e representatividade lésbica. Não dispensa uma pizza ou uma balinha de gengibre das que vendem no ônibus. Nas horas vagas se atreve a escrever ficção científica.
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