Harriet: uma rasa narrativa abolicionista

Harriet: uma rasa narrativa abolicionista

Harriet“, o filme responsável pela única indicação de uma pessoa não negra a um Oscar de atuação, na edição desse ano da premiação, trata-se do retrato adaptado da história da grande ativista abolicionista norte-americana, Harriet Tubman. Em seu quinto filme como diretora, Kasi Lemmons se propõe a contar a história da famosa ativista dos primórdios do movimento negro, a qual dedicou a maior parte de sua vida à libertação dos corpos escravizados, de 1850 até a sua morte, em 1913.

A proposta, por si só, de realizar uma cinebiografia de uma personalidade tão importante para o movimento negro mundial – e para o movimento pró direitos humanos como um todo – é incrível e digna de expectativa, sendo a escolha da atriz Cynthia Erivo (conhecida por dar vida à Celie Johnson, na versão musical de “A Cor Púrpura”, na Broadway) uma aposta inteligente. A trama é contada de maneira poética e artística, seja pelos momentos musicais ou pela bela fotografia, sendo a duração diminuta de duas horas e cinco minutos, incrivelmente, insuficiente.

“Harriet”- o filme e não a personagem – inicia-se com um conjunto dramático de cenas do passado e do futuro – visto que a protagonista tem visões resultantes de um traumatismo no crânio quando ainda criança – as quais misturam momentos de traumas escravistas, como a venda das irmãs de Harriet, com símbolos premonitórios. Nesse momento, a lenda Harriet Tubman, nascida no condado de Dochester, em Maryland, Estados Unidos, por volta de março de 1822, ainda era conhecida como Araminta “Misty” Ross Tubman. E conforme o filme mostrará mais tarde, a ativista abandonou seu nome de batismo ao alcançar a liberdade na Filadélfia. Portanto, “Harriet” é o nome que marca a sua liberdade, em 1849, quando escapa. 

Canções como ferramentas de fuga e a utilização divina em “Harriet”

Harriet Tubman (esquerda) e a atriz Cynthia Erivo.
Harriet Tubman (esquerda) e a atriz Cynthia Erivo.

Sabe-se que o canto era um elemento importante aos negros escravizados, especialmente nos Estados Unidos, e este se mostra logo no início do filme. Quando segue para sua fuga, Misty (Cynthia Erivo) se utiliza do canto para avisar aos seus familiares que está partindo sozinha, sendo a canção uma forma de codificação entre os negros acerca de planos de fuga e de efetivas execuções de tais planos. Contudo, em nenhum momento do filme o uso do canto para tal fim é explicado; parece, na verdade, que as músicas foram jogadas em meio à trama como um recurso narrativo mal colocado, o qual não aparenta ter nenhum sentido lógico a não ser para mostrar o talento de Erivo.

Em relação à Misty, particularmente, o canto se conecta com sua devoção absoluta à Deus. Devoção esta que é intensamente explorada na trama, sendo lembrada e evocada de maneira que chega a ser cansativa. As visões da protagonista são reconhecidas como sinais divinos por ela, criando-se uma fé praticamente inabalável. Ocorre que, apesar da crença de as visões serem sinais divinos, como pessoa não religiosa que escreve em um site que se propõe laico, é com estranheza e descrença que absorvi tal escolha narrativa de Kasi Lemmons.

Em um filme, mesmo que biográfico, é necessário, por vezes, “embelezar” fatos para torná-los dignos da cinematografia. Mas a fantasia narrativa de “Harriet”, criada para responsabilizar as fugas dos proprietários e dos caçadores de escravos a, unicamente, uma força divina extracorpórea, é desnecessária, para dizer o mínimo. A religiosidade da protagonista, visto que foi uma parte importante de sua vida e criação, tem um papel importante no filme, porém sua utilização foi levada ao extremo e quase levou a trama a desviar-se de sua verdadeira protagonista, Misty.

Cynthia Erivo & Janelle Monae em Harriet
Cynthia Erivo e Janelle Monae em “Harriet”. (Foto: reprodução)

Nesse momento, todavia, após fugas e salvamentos bem sucedidos, o nome Misty havia sido abandonado de vez pelo nome Harriet. A figura tornava-se aquilo que conhecemos hoje: uma ativista e abolicionista negra que dedicou a sua vida à libertação de outros negros escravizados e à garantia do fim do regime escravocrata no sul dos Estados Unidos. Sozinha, fez 13 missões de resgate e libertou 70 escravos. Em meio a Guerra Civil norte-americana, guiou o ataque a uma balsa no rio Combahee, o qual libertou, aproximadamente, 700 escravos.

Diz-se que a verdadeira Harriet bradou “Liberdade ou morte; se eu não posso ter uma, eu terei a outra“, e é esse espírito que moveu a ativista na luta à libertação de negros escravizados por anos, até a sua morte. A Harriet retratada no filme, e este relato não foi encontrado em fontes externas, até ameaça seus companheiros negros com sua pistola para à fuga, o que reforça o imediatismo de liberdade buscado pela protagonista. É curioso ver o desespero armado de Harriet, e com certeza surpreendente, mas não nos cabe ignorar a urgência enfrentada pela personagem nos momentos de fuga, nos quais a morte era a única opção de liberdade mental caso a corpórea falhasse. Harriet estava em uma posição de liderança, ainda vista com maus olhos e estranheza quando ocupada por uma mulher negra, na qual necessitava demostrar força, controle e certeza extremas, não cabendo nenhuma hesitação.

Há forma certa para se fazer um filme histórico?

Elenco e diretora Kasi Lemmons nos bastidores da gravação de "Harriet".
Elenco e diretora Kasi Lemmons nos bastidores da gravação de “Harriet”. (Foto: reprodução)

Foi impossível, ao longo do filme, não compará-lo com o mais recente exemplo de “filem escravocrata”, o vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2014, “12 Anos de Escravidão”. Ambos os filmes se passam, em parte, mais ou menos na mesma época, isto é, no período de 1840 a 1850. 

No filme de Steve McQueen, também uma cinebiografia, a contação da história de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) é feita de maneira mais dramática, carregada e silenciosa. O peso do trauma vivido pelo protagonista – de livre para escravo – e dos demais escravos retratados é construído de forma cadencial e zelosa para garantir que a telespectadora sinta, na medida do possível, as emoções de cada personagem. Nesse caso, não é uma história de esperança e superação, mas de dor profunda e latente desespero por não sabermos o fim real das personagens.

No caso de “Harriet”, apesar do contexto histórico ser igualmente pesado quando consumido, ele parece, de certa forma, mais leve. As grandes cenas de confronto entre Harriet e o mundo, a musicalidade deslocada e a obsessiva e estranha caçada de Harriet pelo filho de seu proprietário legal falecido – parece que só fizeram um papel qualquer para pôr o namorado da Taylor Swift – fazem com que o filme perca, pela forma com que tais elementos foram dispostos na trama, a sua merecida seriedade. Como já fez “A Cor Púrpura”, por exemplo, é possível mesclar a narração de uma história série com leveza e até partes humorísticas sem perder o rumo, mas não foi o caso visto em “Harriet”.

Cena de "A Cor Púrpura" (1985)
Cena de “A Cor Púrpura” (1985). Foto: divulgação

Ao fim do filme, embora as atuações, em particular, não devam ser responsabilizadas, parece mais que assistimos à um vídeo clipe, com o contexto jogado sem muitas explicações e às pressas. O longa é carregado nas costas por Cynthia Erivo; ela, em meio a um elenco diverso e talentoso, foi a única que conseguiu se destacar e se livrar da proposta narrativa fraca trazida por Lemmons. Ao depender de momentos narrativos, e não da trama inteira, o filme parece mais uma série longa demais. Portanto, com uma diretora e roteirista negra, falando de uma heroína negra, é triste ver como a trama parece incompleta e deficiente. 

Os trabalhos primorosos em iluminação, fotografia e sonoplastia passam despercebidos em meio à correria narrativa da trama. Nem mesmo a voz radiante e simbólica de Nina Simone, cantando sobre características presentes nas fugas de escravos, consegue nos trazer de volta ao envolvimento pleno na trama. 

#Oscarsowhite 2020 (mais do mesmo da Academia)

Como dito no início, “Harriet” é o responsável pela única indicação de uma pessoa não branca – já que Antonio Banderas é, sim, branco e europeu – a edição do Oscar de 2020. Não se questiona, por certo, o merecimento da atriz à indicação, mas sim o fato dela ser a única mulher não branca indicada em um ano no qual a diversidade cinematográfica falou mais alto em qualquer sala de cinema.

O ano de 2019, apesar de seus inúmeros desapontamentos, foi o responsável pelo aparecimento de muitas e diversas histórias disponíveis ao grande público. “As Golpistas”, “Parasita“, “Us“, “A Despedida”, “Atlantique“, “Adoráveis Mulheres“, só para citar muitos alguns. Impressiona – ou, na verdade, não – que ainda tenhamos que apontar a falta de diversidade alarmante de grandes premiações norte-americanas e europeias, como o BAFTA. No ano, apenas à “Parasita” foi permitido suprir, apesar de não expressamente falada, a “cota diversidade” das premiações ocidentais, ignorando-se os demais excelentes trabalhos de pessoas não-brancas.

Cena de "Harriet"
Cena de “Harriet”, longa de Kasi Lemmons. (Foto: reprodução)
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À Cynthia Erivo, denunciamos, foi permitida a indicação por estar representando algo confortável aos olhos incolores e conservadores da Academia, isto é, a escravidão de corpos negros. Mesmo que represente uma personagem tão emblemática quanto Harriet Tubman, a trama de “Harriet” ainda se trata de uma narrativa escravocrata que reflete o poderio legal de brancos sobre negros, mas não a vitória propriamente dita destes.

Ora, é mostrado no filme como a fuga e a libertação dos negros só é possível com a ajuda de aliados brancos; isto não é um problema por si só, mas somando-se a dependência religiosa dos feitos de Harriet, vê-se como a autonomia das personagens negras não é respeitada nem plenamente explorada. A indicação foi, repetindo-se os exemplos dos anos anteriores (como a indicação e a vitória de Lupita Nyong’o), uma aposta segura para a Academia de prezar pela unidade étnica em histórias de significado expressivo. Quanto a nós, permanecemos com o mesmo disco arranhado em 2020.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

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