“Café Society”, de Woody Allen e a perda de uma chance

Café Society (2016), nova obra de Woody Allen, foi o filme de abertura do Festival de Cannes desse ano. Toda pompa e glória para a recepção e estreia da película veio num momento em que o diretor novamente se via envolvido com acusações de abuso sexual no ambiente familiar e com isso, percebe-se a perda de uma chance por parte deste que foi colocado no panteão de gênios da sétima arte, em desenhar modelos de mulheres que não corroborem com essa ideologia de dominação masculina patriarcal que assola a humanidade e que vemos refletidas em muitas de suas obras. Essa aqui não foge a regra. Infelizmente.

cafe-society-woody-allen-kirsten-stewart-jesse-eisenberg

Desde Blue Jasmine (2013), filme no qual acompanhamos a história de uma rica dona de casa nova-iorquina, que entra em crise de meia idade e começa a repensar sua vida, não vemos um filme do diretor em que as mulheres sirvam ao único propósito de conferir densidade ao arco narrativo do personagem principal, encarnado por um homem.

Embora Cate Blachett (que interpreta a protagonista em Blue Jasmine) cumpra todas as exigências de beleza que o mundo ocidental delimitou como desejáveis (branca, magra, loira e elegante), um fator a diferencia das demais mulheres comumente escolhidas para trabalharem nas obras do diretor: a idade. Blanchett, nascida em 1969, filmou do alto de seus 44 anos.

A juventude das mulheres é sempre uma marca nas obras de Woody Allen. Porém, é preciso estar atento, pois muitas vezes um filme que aparenta mero entretenimento pode soar como um problema estrutural se revisitarmos a completude da obra do diretor e compreendermos que para os homens há um tratamento diferenciado.

cafe-society-trailer-youtube_u0obla

John Berger em seu livro Modos de ver (1972) mostra que é através do ato de ver que estabelecemos nosso lugar no mundo e esse lugar no mundo se dá através de uma interação relacional extremamente mutante (visto que nos relacionamos das mais diversas formas nos diferentes espaços públicos/relações de poder). Tendo isto em mente, é possível afirmar que “aquilo que vemos” e “aquilo que sabemos”, ou seja, nossas pré-noções se dão numa relação instável e difusa que nunca se estabiliza ou se resolve.

Berger evidencia ainda o contexto de poder ao qual uma produção e a disseminação de uma imagem pertencem. O autor aponta para a continuidade entre formas antigas de expressão artística, como por exemplo, na pintura a óleo, acerca da construção de um olhar masculino sobre a mulher ou sobre a idealização de um “ethos” feminino que se perpetua até o discurso publicitário pós-moderno que conduz a uma leitura da mulher como um não sujeito.

Em contrapartida, a antropóloga Ruth Sabat em seu artigo Imagens de gêneros e produção de cultura (2005) evidencia que “ler imagens pode ser um outro caminho para questionar as representações de gênero e sexualidade que continuam operando em favor da produção da desigualdade”. É, portanto, a leitura dessas imagens produzidas no filme Café Society sob uma perspectiva feminista que se pretende nesta resenha.

cafesociety_2016_09-h_2016

Em Café Society tem-se uma reafirmação dessa premissa da mulher como não sujeito ou como diria Laura Mulvey apenas como “portadora de significado e não produtora de significado”.

As três principais figuras femininas que são trabalhadas no contexto do filme só existem e só circulam para preencher de significado a vida dos homens (seja do protagonista Bobby, interpretado por Jesse Eisenberg, que claramente encarna os tiques neuróticos e inseguranças que o próprio Woody Allen gosta de retratar de si mesmo, sendo seu personagem-espelho, seja de Phill (Steve Carell), tio do protagonista no auge de sua crise de meia idade).

A câmera nunca acompanha a perspectiva das mulheres no filme, nem mesmo quando estamos diante dos personagens periféricos com suas tramas secundárias. Aliás, o excesso de sub-tramas com que o diretor constrói o seu roteiro o faz perder o ritmo, dando pouca profundidade ao contexto principal do filme que pretende retratar para além do romance e as angústias de um jovem rapaz experimentando a vida, a problemática Hollywood em seus tempos áureos, com suas idiossincrasias sociais. O plano de fundo de um universo mafioso é dispensável, uma vez que é tratado de forma rasa e serve apenas para alívio cômico na trama.

AR-AN396_CAFESO_P_20160706111753

Para reproduzir tal figura de mulher idealizada não só pelo diretor, mas pelos dois homens que a disputam no filme (e, provavelmente, para os espectadores que consomem a obra), temos Kristen Stewart encarnando Vonnie, que é retratada sempre com um jogo de luz e câmeras que a pinta com uma certa sensualidade casta evocando as madonas e as musas da era dourada de Hollywood, num saudosismo quase pueril. Inegável, porém que o apuro estético da obra é seu ponto alto.

Se em Café society vemos um Woody Allen menos rigoroso e preocupado com o roteiro do filme que é cheio de pontas soltas, em contrapartida temos que ressaltar o grande mérito do fotógrafo Vittorio Storaro e da figurinista Suzy Benzinger que conseguem, de forma muito eficiente, transpor a trama para o contexto de tempo e lugar de uma América da década de 1930.

a5e13adce897c590c4a2e875585579ee828325b4.png.cf

Somada a figura da mulher ideal e inalcançável interpretada por Kristen Stewart estão presentes outras duas figuras femininas e que povoam o imaginário masculino: a prostituta e a “mulher para casar”. A prostituta Candy, interpretada por Anna Camp, tem uma aparição rápida no começo da trama num embate com Bobby sobre ter ou não uma relação sexual paga e ali o diretor já mostra seu total desprezo pelas mulheres que vendem seu sexo (aliás, isso é bastante recorrente em suas obras) em uma cena com diálogos de piadas constrangedoras.

cafe_society_h_2016

Por último, mas nem por isso menos problemática, tem-se a figura da mulher ideal para casar, Veronica (interpretada por Blake Lively), aquela que é linda, branca, jovem e que abandona carreira, família e amigos para se dedicar ao marido e para procriar. Esta personagem é abandonada pelo diretor na medida em que cumpre a sua finalidade de conferir sucesso emocional ao jovem protagonista perante a sociedade, num desperdício enorme de talento da ótima atriz que apenas orna o set de filmagens voltando a aparecer em rápidos flashes sem qualquer densidade narrativa.

Desta forma, conclui-se que o conceito de feminilidade vendida nesta obra nada mais é do que a reprodução de imagens que identifica a mulher perante o desejo masculino através de uma sedução não apenas sexual, mas também quanto a sua disponibilidade de servir e, portanto, a sua passividade.

Escrito por:

120 Textos

Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
Veja todos os textos
Follow Me :