Quem foi criança em meados dos anos 1980, ou 1990 com certeza vai se lembrar de uma série de filmes da sessão da tarde sobre a passagem da infância para a vida adulta. Hoje, esses filmes que romancearam de forma tão divertida esse importante momento da vida são tratados como clássicos: “Conta Comigo” (1986), de Rob Reiner, “E.T – O Extraterrestre” (1982), de Steve Spielberg, “Os Goonies” (1985), de Richard Donner, “De Volta para o Futuro (1985), de Robert Zemeckis e “Monster Squad” (1987), de Fred Dekker. Esses filmes sempre tinham uma mensagem positiva sobre o crescimento e mostravam a importância da amizade nesse momento de formação da própria identidade, mas além disso, todos esses filmes tinham outra característica em comum: todos eles eram protagonizados por meninos.
É claro que em muitas situações, meninos e meninas podem se identificar com os mesmos elementos nos filmes, as amizades, o fim da infância, o medo do futuro, mas mesmo que sem querer, os filmes acabavam perpetuando a ideia de que as aventuras estavam reservadas apenas aos garotos.
A geração que cresceu com essas obras passou a ser financeiramente ativa e foi visando esse mercado que os estúdios de cinema investem cada vez mais em obras nostálgicas que nos levam de volta à nossa infância quando tudo era mais simples. Dessa ideia saíram os vários remakes da última década, além de obras originais que remetem a esses clássicos, como “Super 8” (2011), de J.J. Abrams e, claro, “Stranger Things” (2016), da Netflix, que unem todo o poder da tecnologia cinematográfica do século XXI às histórias nostálgicas que fizeram a cabeça da molecada duas décadas atrás.
Mas por mais que essas novas histórias se digam inovadoras, elas tendem a repetir fórmulas do passado, comunicado-se apenas com adultos trintões e falhando em criar novas mitologias para as gerações de hoje, que não podem se identificar com uma Mix Tape, ou uma câmera caseira em Super 8. Além disso, temos o fato de que as histórias continuam sendo contadas apenas por garotos. Então, onde está a novidade? Nada mudou nos últimos 20, 30 anos?
É por isso que obras como “Paper Girls” (Ganhadora do Eisner de Melhor Série Nova) de Brian K. Vaughan e Cliff Chiang são tão importantes.
NÃO CONTÉM SPOILERS
A história começa na madrugada do dia após o Halloween de 1988. Em uma pequena cidade americana, a jovem Erin acorda assustada após um pesadelo e confere se está tudo bem com a irmã, antes de começar sua rotina de entregadora de jornal (Paper Girl). Ao sair de casa, Erin encontra com alguns adolescentes ainda fantasiados da noite passada, eles começam a provocá-la até que são abordados por Mac, Tiff e KJ, as outras entregadoras do bairro. Elas contam para Erin que costumam se reunir na noite após o Halloween para evitar o tipo de situação que Erin acabou de vivenciar, e então decidem adotar a novata ao time de entregadoras. É durante a rota que elas encontram dois estranhos vestidos de forma esquisita e falando uma língua desconhecida. Ao tentar segui-los, elas acabam descobrindo uma máquina de aparência alienígena, que libera um raio de energia e muda a realidade que as garotas conheciam, e a única pista que elas possuem é um pequeno aparelho com o desenho de uma maçã mordida.
Daí pra frente temos uma invasão de guerreiros do futuro voando em pterodáctilos, os vilões chamado de old-timers, viagens no tempo e as 4 protagonistas tentando entender o que aconteceu e evitar o apocalipse.
Brian K. Vaughan é um mestre em escrever diálogos inteligentes, que ajudam a construir a personalidade das personagens. Mac é a líder do grupo, desbocada e rebelde, ela tem sempre uma resposta para tudo na ponta da língua. Ela possui um vocabulário extenso de xingamentos homofóbicos que incomodam bastante, principalmente por virem de uma criança.
Erin é a garota sonhadora e doce, ela planejou todo o seu futuro e vai aprender que a vida não pode ser inteiramente planejada e sem riscos. Tiff é uma garota negra, geek fascinada por tecnologia, ciência e videogames, está sempre pronta para ajudar e confortar as amigas com seu bom senso. E KJ é uma garota judia que adora esportes e nunca foge da briga. Mas apesar disso, a ação interrupta no primeiro volume (que comporta os 5 primeiros números da história) não dá muito espaço para o crescimento individual de cada uma das garotas. Acabamos recebendo uma dica aqui e outra ali, mas nada que entre verdadeiramente na história de cada uma, e os mistérios crescem mais a cada revista.
A arte de Cliff Chiang enche os olhos e casa muito bem com a narrativa de Vaughan e seu lado nonsense com cores vibrantes e um traço estilizado.
A obra traz muitas referências à cultura pop dos anos 1980, assim como a todos os filmes citados no começo desse texto, e vai agradar os saudosistas, mas também tem muitas discussões sobre religião e ética, ao mostrar o que as pessoas podem fazer ao se sentirem abandonadas por deus, já que com a mudança provocada pela máquina alien, muitas pessoas simplesmente desapareceram instantaneamente como em um arrebatamento divino.
Assim como a homofobia de Mac provoca um gosto amargo na boca de quem lê, embora a mentalidade da época não seja uma justificativa plausível para esse tipo de atitude em uma garotinha de 12 anos, podemos entender que a culpa é do ambiente em que ela cresceu, e por isso repete as atitudes dos mais velhos. Por ser um Young Adult, a história também busca retratar algumas dúvidas e medos típicos da adolescência.
Acompanhando a onda de Graphic Novels inovadoras, que buscam trazer outros pontos de vista para suas histórias, Paper Girls vale a pena ser lida por sua história única e por suas personagens cativantes. Atualmente estão disponíveis na Amazon o volume 1, com histórias de 1 a 5; o volume 2, que comporta os números 6 a 10; e o volume 3, que comporta os números 11 a 15.
Paper Girls Vol. 1
Brian K. Vaughan e Cliff Chiang
Devir
144 páginas
Paper Girls Vol. 2
Brian K. Vaughan e Cliff Chiang
Devir
128 páginas
Paper Girls Vol. 3
Brian K. Vaughan e Cliff Chiang
Devir
128 páginas