“Bulldogma”, esse calhamacinho brasileiro criado por Wagner Willian, é uma graphic novel que traz como protagonista a ilustradora Deisy Mantovani, recém mudada com seu bulldog, Lino, para um bairro supostamente alvo de abduções alienígenas. Embora isso indique um pé na ficção científica, o quadrinho é mais uma catarse do autor, um fluxo de pensamento sem muito filtro, trazendo questões filosóficas e outras muito práticas de uma vida instável. Tudo parece figura de linguagem nessa HQ, e, ao mesmo tempo, um diário real de uma pessoa.
Deisy Mantovani trabalha fazendo ilustrações para embalagens e outros freelances. É muito fácil gostar dela e se identificar, pois é uma personagem muito real. Desde que nos é apresentada, todo o contexto em que ela vive é tomado de referências, embora não tão fáceis. Muitas estão ali nas notas de rodapé do autor, embora sejam quase autoexplicativas, mas a narrativa também empresta muita referência da nouvelle vague, videogame, música, cinema, escolas artísticas, simbolismos… E tudo isso está muito intimamente inserido em todo o contexto. Claro, a leitura não é prejudicada se você não entender todos esses “links”, até porque, a menos que você leia com o Google aberto e vá buscando entrelinhas em tudo da HQ, é possível que nem com uma segunda ou terceira leitura todas as referências sejam entendidas. Além disso, um olhar mais atento vai perceber as participações de personagens de filmes, alguns quadrinistas e editores passeando pelas ruas.
Não é preciso ficar tão presa às referências, porque Deisy é uma personagem muito interessante, cheia de opinião e desilusões. Existem muitas situações reais e racionais na história, como lidar com decepções no trabalho, fazer escolhas difíceis na carreira, encontrar a ex-namorada na rua, começar novos relacionamentos, não saber o que fazer no meio de uma festa chatíssima, fora as muitas conversas maravilhosas que ela tem com amigos.
A narrativa gráfica de “Bulldogma” é toda fragmentada e a HQ é tomada de cortes abruptos, com sequências que ora são da vida de Deisy, ora de seus pensamentos, sonhos, metáforas das situações que vive ou do quadrinho que está produzindo. Parece confuso, mas funciona lindamente nessa HQ. É uma experiência de leitura bem particular, que demora um pouquinho pra engatar. Mesmo os balões são posicionados de uma forma que não vai ser logo de cara que você vai entender a ordem certa pra ler, mas com o andamento da narrativa você acostuma e entende para onde olhar a seguir.
A arte é muito livre, como se os desenhos já existissem desde sempre e Wagner Willian apenas se deu ao trabalho de contornar tudo sem muita preocupação ou preciosismo. Psicografado alienígena? Algumas vezes os balões se sobrepõe, outras as falas saem dos balões e viram uma espécie de tabelas ou conversas no whatsapp. É um diário visual mesmo.
“Bulldogma” é maravilhoso, por ser uma abdução filosófica ao universo particular de Deisy Mantovani, tanto no seu contexto pessoal quanto em suas opiniões e formas de tratar a vida no contexto social. E é um pouco difícil de saber pra quem indicar, também pelo mesmo motivo. É aquela obra que está ali na classificação de não-é-pra-todo-mundo, possivelmente.
Flerte da Mulher Barbada
Deisy Mantovani não é só uma mulher maravilhosa por sua vida retratada em “Bulldogma”, mas também faz entrevistas ótimas com quadrinistas e outra galera envolvida com produção de quadrinhos, publicando tudo no blog “Flerte da Mulher Barbada“. A edição da Editora Veneta traz muitas delas, mas você pode ler todas no blog.
Depois de desistir do YouTube, Deisy faz o blog e convida “a nata dos quadrinhos” para a Cafeteria Belmore, onde os entrevista. As perguntas seguem um roteiro, mas o jeito de Deisy conduzir as entrevistas é muito guiado pelo entrevistado. E ela entrevista ídolos dela, fica nervosona com Laerte, leva Lobo Wolf a um motel, se empolga e quase fala mais que Mazô. Deisy consegue ficar ainda mais real nessas entrevistas.
Embora as entrevistas sejam curtas, é muito bom ler as respostas dos quadrinistas, suas formas de ver a própria arte. E uma das perguntas do roteiro de Deisy é “Uma quadrinista foda, e por quê?”. Além de todos os nomes incríveis que responderam as perguntas, ainda tem outra lista maravilhosa de mulheres que são fervorosamente admiradas por eles. Dá pra conhecer mais sobre o quadrinho e anotar uns nomes pra procurar depois. São mais de 80 entrevistas, vale a pena ler todas!
Tanto “Bulldogma” quanto “Flerte da Mulher Barbada” foram publicados pela editora Veneta em edições bem bonitas, papel offset branco, capa cartonada, orelha (alô, clube dos amantes de orelha de livro!), contracapas toda preenchida com arte do autor e sem margem. Em quase toda a HQ, Wagner Willian usou os limites dos seus quadros, mas muitas vezes a arte sangra na página, o que foi totalmente respeitado na edição. Porém há um pequeno vacilo na revisão. Existem vários errinhos de português, tanto no quadrinho, quanto no livro de entrevistas. Na leitura dinâmica você corrige automaticamente, não é o caso de interromper a leitura pra entender, mas são detalhes perceptíveis. Fora isso, edição impecável!
Recomendamos fortemente “Bulldogma” pra quem curte uma viagem filosófica na vida real e o “Flerte da Mulher Barbada” pra todo mundo que tem qualquer nível de interesse em quadrinhos.
Blog Bulldogma – Blog Flerte da Mulher Barbada
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Esses quadrinhos foram cedidos pela editora para resenha.
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