Corra! (Get Out, EUA, 2017) é o primeiro filme do ator e comediante Jordan Peele. Com uma mescla de terror, suspense e crítica ao racismo, o longa se mostra uma sátira social eficaz ao mesmo tempo em que mantém a capacidade de entreter um público diverso. Isso levou Peele – que dirigiu e roteirizou a obra – ao posto de primeiro cineasta negro a alcançar a marca dos US$ 100 milhões com um filme de estreia.
O gasto da produção – que atualmente já ultrapassou os US$ 200 milhões no faturamento – foi de US$ 4,5 milhões, quantia considerada módica para os padrões de Hollywood. Com a boa recepção do público e da crítica, foi anunciado um contrato de dois anos entre a Universal Pictures e a Monkeypaw Productions, companhia de Peele, o que estimula a expectativa geral para produções futuras.
Atenção: O texto contém spoilers!
A história de Corra! gira ao redor de Chris Washington (Daniel Kaluuya), um jovem fotógrafo que é intimado pela namorada, Rose Armitage (Allison Williams), a não apenas conhecer os pais dela, mas a passar uns dias na casa deles – você já pode ter visto ele antes em Skins ou Black Mirror, enquanto ela é a Marnie, de Girls. Essa situação, para muitos, é considerada chata ou embaraçosa por si só. Porém, no caso de Chris, existe um agravante: ele é negro e os pais da namorada branca não sabem disso.
A moça afirma que, embora ele seja o primeiro namorado negro que ela tem, isso não será um problema, pois seus familiares não são racistas – e talvez até forcem a barra para mostrar isso dizendo que votariam no Obama pela terceira vez (algo dentro da velha lógica branca de “não sou racista, tenho até um amigo negro”). Após risadinhas e brincadeirinhas de casal, o rapaz aceita realizar a visita, ainda que um tanto quanto contrariado.
Eles partem em uma viagem de carro e, no caminho, várias coisas acontecem. Chris recebe uma ligação do amigo Rod (LilRel Howery), que aponta a cilada que essa visita aos pais da namorada pode ser, um cervo é atropelado por Rose e uma parada policial acaba em uma abordagem invasiva para o fotógrafo. Sem motivo algum, Chris é tratado com descaso e intimado a mostrar os próprios documentos – “procedimento padrão” é o que dizem por aí, mas esquecem de mencionar que é restrito a pessoas negras – e é preciso que a namorada intervenha e questione a situação para que a polícia o deixe em paz. Isso passa a ideia de que Rose, apesar de aparentar ser uma garota branca de classe alta, talvez possua alguma consciência das modalidades de racismo presentes na sociedade.
Finalmente ambos chegam ao destino final: uma grande e bela casa em um local ermo e com ares de mistério – um clássico das obras de terror e suspense. À medida em que os pais de Rose vão sendo introduzidos, a psiquiatra Missy e o neurocirurgião Dean Armitage (respectivamente Catherine Keener e Bradley Whitford), a tensão entre os personagens vai ficando mais intensa.
No entanto, ainda é difícil decifrar exatamente o porquê. Não se sabe se é por conta dos sorrisos amarelos, silêncios constrangedores e esforço excessivo em não parecer racista por parte de todos ao redor de Chris ou se realmente existe algo de sinistro por trás de algo ou alguém daquele lugar, que é lindo, mas muito estranho.
O esforço em não parecerem racistas, aliás, ao mesmo tempo em que deixam escapar comentários duvidosos e não conseguem se conectar realmente com o jovem negro, é um retrato de como funciona o modus operandi branco que se importa mais com a própria imagem do que com a eliminação do racismo em si.
A escolha de uma família abastada e culta foi acertada: a falta de empatia não caminha apenas ao lado de quem não possui informação, como o senso comum tenta disseminar – com o intuito de isolar a questão – e o racismo é também uma força mantenedora de privilégios. Portanto, não se dizer racista não é o suficiente para que tal violência deixe de acontecer. E opressores podem facilmente dissimular suas verdadeiras opiniões em discursos minimamente “aceitáveis”.
Os funcionários da casa, Georgina (Betty Gabriel) e Walter (Marcus Henderson), são os outros únicos negros presentes naquele ambiente até então. Ambos possuem uma forma robotizada de se comunicar e agir, o que deixa Chris bastante confuso. Porém, Georgina chega a mencionar que é considerada “parte da família”, um clichê utilizado para nublar as relações de trabalho entre empregadores e empregadas domésticas, mas que no filme acaba se mostrando real em um outro sentido.
Durante a estadia com os Armitage, Chris – que é fumante – é hipnotizado de modo não requisitado e antiético por Missy, com a desculpa de que isso irá ajudá-lo a largar o vício. Em outro momento, durante um jantar, o estudante de medicina Jeremy Armitage (Calen Landry Jones), irmão de Rose, aparece, bebe todas e age de modo agressivo e abertamente racista, sem o verniz polido de sua família. Chega a mencionar que Chris, por conta de sua “genética” e tudo mais, poderia ter se tornado uma “besta” caso tivesse se dedicado a exercícios físicos, demonstração explícita da redução do subjetivo do homem negro ao corpo. Para piorar, uma festa acontece na mansão e o fotógrafo é apalpado, questionado e invadido pelos convidados feito um animal em exposição no zoológico.
No evento, Chris encontra um rapaz negro entre os convidados, mas que age da mesma forma estranha que Georgina e Walter, e ele começa a se questionar ainda mais sobre tudo o que está acontecendo ali naquele ambiente. Rose diz acolher as dores do namorado, mas não faz muita coisa a respeito, além de estar sempre menosprezando a gravidade das inquietações que ele carrega. O fotógrafo se encontra sozinho e emaranhado em um ciclo de medo e incertezas ao mesmo tempo em que se mantém paralisado por duvidar de si mesmo, e por acreditar na chantagem emocional travestida de amor que Rose faz o tempo inteiro.
Um comerciante de arte chamado Jim Hudson (Stephen Root) se mostra menos sem noção que o restante dos convidados, e conversa com Chris sobre o trabalho dele como fotógrafo. Por um momento, Jim, que ironicamente é cego, parece ser um dos poucos a conseguir enxergar o rapaz um pouco além da cor de pele, ainda que de modo meio condescendente.
Só que durante um bingo assustador e sem a presença do jovem – mas com uma foto dele bizarramente exposta –, o comerciante é o vencedor. A partir daí, as reais intenções de todas aquelas pessoas vão sendo evidenciadas. Ao ouvir os relatos de Chris por telefone, Rod levanta a hipótese de a família utilizar pessoas negras para fins de exploração sexual, o que chega a soar risível e paranoico.
Mas o fotógrafo vai percebendo que algo realmente grave acontece por ali, principalmente após lembrar que o rapaz negro que estava entre os convidados da festa é um cara que, há tempos, estava desaparecido – e após encontrar uma caixa com fotos em que Rose posa ao lado de vários ex-namorados negros, incluindo os funcionários da casa.
Descobre-se então que os Armitage utilizam a filha de isca para sequestrar pessoas negras e usar a “superioridade corporal” delas, segundo eles afirmam, em prol do bem-estar de pessoas brancas que estão envelhecendo ou possuem outros problemas e questões – e que tal prática está sendo passada de geração em geração dentro da família. Por isso a hipnose: para que Missy possa controlar as vítimas e impedir que elas fujam.
Por meio de um transplante de cérebro realizado por Dean e Jeremy, a mente de uma pessoa é colocada no corpo escolhido, o que acaba “apagando” a personalidade da vítima. Georgina e Walter, por exemplo, são os avós de Rose. E Chris é quem Jim passará a habitar, se o procedimento for realizado com sucesso, o que exemplifica de forma quase desenhada como uma pessoa pode se beneficiar de um sistema racista, que é estrutural, mesmo quando diz não ligar para a cor de pele de alguém – e como a “comoditização” de corpos negros soa natural inclusive para quem afirma não ser racista (mas é).
O racismo, aliás, é abordado pelo filme a partir de um olhar negro, e não do olhar branco que rotineiramente rege as grandes produções audiovisuais norte-americanas. Portanto, não há espaço para explicar o be-a-bá das questões raciais. A obra parte de um ponto pacífico: o racismo existe em diversas situações históricas e cotidianas, e pronto. As agressões – das micro às macro – que pessoas negras sofrem é que são pormenorizadas, e não se racismo existe ou não em determinada situação, que é onde o olhar branco geralmente se debruça por horas e horas.
Talvez seja por isso que a resolução do conflito principal ocorra de forma mais acelerada do que o restante da obra: os conflitos em si, dos pequenos aos grandes, não deixam de ser histórias de terror que precedem o horror que acontece mais escancaradamente. Logo, o que vale a pena ser visto é toda a questão psicológica que permeia a violência física que acontece depois, observando como ambas as coisas formam um manto de fios fortemente entrelaçados. Baldes de sangue são jorrados aos montes em diversos produtos audiovisuais o tempo todo, e se prolongar na violência pela mera violência não traria nenhuma novidade.
Em uma espécie de maniqueísmo invertido, se comparado ao que é usual no cinema, Chris consegue encontrar meios para escapar, e todas as pessoas más morrem, inclusive a mocinha branca que sempre é resgatada no final. Porém, enquanto Rose está agonizante e um carro de polícia se aproxima, ela começa a pedir socorro como se tivesse sido uma vítima do fotógrafo, confiando no sistema de “procedimento padrão”, e Chris já coloca as mãos para o alto, em resignação.
Felizmente, quem está dentro do carro é Rod, que resgata o jovem. Eles não estavam loucos: o horror circundante, que se anunciava o tempo inteiro e se fazia presente de forma verbal, psicológica ou simbólica, era real. Qualquer semelhança com a vida fora das telas talvez não seja mera coincidência: da escravidão a experimentos médicos, passando por cooptação de saberes e animalização de seres humanos, o racismo tem uma longa trajetória e diferentes roupagens.
Final alternativo de “Corra!”
Recentemente, “vazou” um final alternativo que torna Corra! ainda mais deprimente. Na cena, prevista para constar nos extras do longa em DVD e Blu-Ray, a polícia encontra Chris matando Rose e o leva como culpado, fazendo com que ele acabe na prisão. Segundo Peele contou ao podcast Another Round, do Buzzfeed, era preciso um escape que deixasse a audiência “respirar” após o filme e, por isso, ele criou o final atual, que permite com que as pessoas saiam da sala com uma sensação positiva.
O final alternativo era a opção inicial, e busca denunciar que a sociedade pós-racismo pregada por muitos realmente não existe ainda. Porém, ele acaba gerando um sentimento pessimista. Os assassinatos de jovens como Trayvon Martin e Michael Brown nos Estados Unidos, mortos injustamente pela polícia (um segurança, no caso de Trayvon) por meio da tácita política de “atirar primeiro, perguntar depois” – que vem da crença de que pessoas negras são automaticamente suspeitas em qualquer situação adversa –, motivaram o diretor a fazer um desfecho em que os personagens negros fossem representados como heróis.