Mulher do Pai é o primeiro longa-metragem dirigido por Cristiane Oliveira. Neste filme, visitamos uma vila no interior do Rio Grande do Sul, onde conhecemos a família de Nalu (Maria Galant) que vive com a avó e o pai cego (Marat Descartes).
A família se sustenta trabalhando com tecelagem. Quando a avó morre, uma difícil relação entre pai e filha começa a ser tecida. Onde antes havia apenas incomunicabilidade, agora é preciso um adensamento das relações, para que a convivência seja possível. Numa bela narrativa que se apoia na jornada da heroína, acompanhamos as desventuras de uma menina que está se descobrindo mulher num universo de fronteira entre o público e o privado, os de dentro e os fora, aqui representados na figura dos estrangeiros.
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A sexualidade latente de uma menina de 16 anos aflora quando a escuridão das relações familiares parece dominar a casa em que vive. Escuridão experimentada sensorialmente por Ruben (pai de Nalu), que não nasceu cego, mas que precisa aprender a conviver sem esse sentido já adulto, o que o torna uma pessoa amarga e sem grandes aspirações. Tudo muda quando um elemento aparece para desestabilizar essa difícil relação: a professora de artes Rosário (Verónica Perrotta).
Mas nem tudo é sombrio no filme que conta com direção de fotografia de Heloisa Passos. Aliás, cabe ressaltar aqui que Heloisa acaba de ser convidada para compor o quadro de votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Oscar). A fotografia do filme está a serviço da narrativa, na medida em que é quase uma personagem. O clima da região dita o tom do roteiro de acordo com a sensação das personagens em cena. Chuva, nevoeiro, pôr do sol, amanhecer, uma manada que atravessa uma rua de terra batida, todos esses elementos estão atravessados pela história contada sob o ponto de vista de Nalu.
A câmera subjetiva acompanha a menina em suas descobertas e em seus desencantamentos com o mundo. Mundo este cercado por homens que cuidam do gado, já que se trata de uma região pecuarista. Apesar de passar ao largo do tema principal do filme, percebe-se um cuidado do roteiro em abordar alguns padrões de masculinidade que ainda emperram e/ou dificultam a convivência de pai e filha, seja no meio rural ou urbano.
Não à toa o pai da protagonista é um homem cego que precisa reaprender a ler o mundo por outras chaves. Afetos e uma sensibilidade tátil precisam ser despertadas para que aquele homem que vivia fechado em si mesmo, quase como um autômato, possa se comunicar com a realidade que o cerca.
Mulher do Pai um filme ousado do ponto de vista narrativo, pois a todo momento a diretora, que assina o roteiro junto com Michele Frantz, provoca no espectador quebra de expectativas, já que elipses são a mola mestra da trama. Some-se a este elemento o fato das roteiristas construírem personagens verossímeis numa história aparentemente banal.
De acordo com Maureen Murdock, a “Jornada da Heroína” propõe um modelo paralelo de narrativa que leva em conta as necessidades, dilemas e angústias da mulher arquetípica contemporânea, que leva em conta as necessidades, dilemas e angústias da mulher moderna. Para a autora, a jornada da heroína é a busca da mulher por propósito num contexto e sociedade em que ela é constantemente comparada e definida por valores e padrões masculinos.
Para exemplificar essa jornada, ela traça oito momentos sucessivos que ocorrem na seguinte sequência: 1) troca do feminino pelo masculino; 2) a estrada das provações; 3) a ilusão do sucesso; 4) a descida; 5) encontro com a deusa; 6) reconciliação com o feminino; 7) (re)incorporação do masculino; e 8) a união.
Para saber mais sobre a jornada da heroína leia o artigo de Ana Freitas no Jornal Nexo. Muitos destes elementos são enfrentados por Nalu em sua bicicleta que ocupa o lugar do famoso cavalo branco dos contos de fadas. Para auxiliar nessa reconexão com o mundo, apoia-se na amiga interpretada pela atriz Fabiana Amorim, que de certa forma acaba por lhe abrir novas portas e janelas, antes enevoadas.
Não à toa, em sua estreia no Festival do Rio 2016, o filme saiu da competição levando os prêmios de direção, fotografia e atriz coadjuvante para a uruguaia Verónica Perrotta, além de alcançar o prêmio da crítica na Mostra de São Paulo (Abraccine) e no Festival Uruguaio (Fipresci).
Mulher do Pai é um filme feito por uma equipe cujas principais funções são dominadas por mulheres talentosíssimas e que parte de uma questão particular para falar de temas universais como adolescência, descoberta da sexualidade, relações familiares e tomadas de decisões.