Carolina: literatura, classe, gênero e raça

Carolina: literatura, classe, gênero e raça

Carolina é uma obra lírica, densa e necessária. Principalmente para quem não conhece uma das escritoras mais originais da Literatura nacional. Literatura sim e assim, com L maiúsculo.

A HQ começa contando a história antes de Carolina publicar seu primeiro livro, Quarto de Despejo, quando ainda era catadora de lixo e morava em um minúsculo barraco na favela de Canindé com seus três filhos e vai até alguns anos após a ascensão, reconhecimento e fama. O texto é repleto de lirismo (durante toda a obra) e a arte em tinta preta reforça o realismo de maneira cru e sem floreios.

“Sou poetisa”, Carolina repete de si para si, como um mantra.


Podemos dizer que a literatura salvou Carolina. E não falamos de quando ela foi descoberta por acaso, pelo jornalista Audálio Dantas. A literatura estava já em sua vida desde quando aprendeu a ler. Aqui, um parêntese: Carolina lia de tudo e lia o tempo todo. Tanto que sentia fortes dores de cabeça. A mãe chegou a levá-la a um conhecido médico espírita da cidadezinha onde moravam, no interior de MG. O médico, após examiná-la, teve logo o diagnóstico: “Sua filha não tem nenhum problema na cabeça. Ela apenas tem muitas ideias e vai ter de aprender a lidar com isso. A menina vai ser poetisa!”

Carolina era leitora ávida: como catadora, encontrava livros no lixo e os levava para casa, onde lia durante todo o seu tempo livre. Leu clássicos da literatura e também autores brasileiros. E era escritora. Uma escritora com consciência disso. Sabia que era diferente do restante dos moradores da favela, que segundo ela, eram ignorantes.


“A mulher da favela tem que mendiga e ainda apanha, parece tambor. De noite, enquanto elas pede socorro, eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.”

Carolina anotava suas ideias e passagens de sua vida em diários – em cadernos e folhas que também achava no lixo. Sua escrita não obedece às normas cultas. Isso, aliado ao fato de Carolina ser negra, pobre, mãe solteira e sem instrução acadêmica, gerou e, infelizmente, ainda gera certa polêmica em relação à qualidade de sua produção – sempre vinda de homens brancos e de classe alta. Mas falaremos disso mais à frente.


A HQ tem prefácio de Rafaella Fernandez e, ao fim, um artigo acadêmico sobre sua vida e obra que, por si só, já valeria a aquisição. Quanto a arte de João Pinheiro (Kerouac, Burroughs), foi difícil selecionar alguma página para ilustrar essa resenha. A história é contada de forma direta e enxuta, portanto, cada página é um verdadeiro deleite e uma experiência incrível – principalmente as páginas tomadas por uma única ilustração. Isso, aliado ao texto de Sirlene Barbosa (Doutora em Educação), faz com que a obra seja altamente poética e contundente.

Além de plena consciência de ser escritora, Carolina também sabia que era mulher, negra e o isso significava. De temperamento sério e opiniões próprias, nunca se deixou levar por nenhum homem, namorou, mas recusou pedidos de casamento. Era dona de si. Sabia que sua pele negra e o cabelo crespo eram coisas bonitas e das quais deveria se orgulhar, como também sabia o que pessoas brancas pensavam disto.


Denunciava o racismo e suas consequências, como a morte de jovens negros da periferia. Também mostrava que, ao contrário de um estereótipo que prega que moradores de comunidades carentes são unidos e se ajudam sempre, também há racismo e machismo na favela. Como Sirlene diz no artigo, apesar das ambiguidades (inerentes a todo ser humano), Carolina era “uma grande feminista na prática”.

“Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito”

Após ter sido descoberta e publicada, sua vida mudou. Seu livro, Quarto de Despejo (nome dado ao local que morava, que era um terreno onde moradores foram despejados, como objetos) fez sucesso imediato. Carolina apareceu em jornais e revistas, foi entrevistada e compareceu a cerimônias de lançamento. Conseguiu, com o dinheiro da obra, sair da favela e mudar para um bairro de classe média, onde também sofreu preconceito por parte dos moradores, que não aceitavam dividir a rua com uma negra favelada. Sentindo-se assim, sempre deslocada e indesejada, mudou então com os filhos para um sítio, onde pôde viver em paz até seus últimos dias.


Carolina, a HQ, dá um belíssimo sopro de vida na autora e em sua produção. Em uma realidade onde são pouco celebradas as autoras femininas, ainda menos autoras negras, ler e conhecer Carolina se torna um dever, uma obrigação. E essa HQ é uma ótima porta de entrada para toda a obra dela, que infelizmente encontra-se, em parte, fora de catálogo no país – mais um exemplo de como são tratadas as autoras.

Carolina escreveu e se dizia escritora, mas… Era mesmo Literatura?

Já na época de lançamento do livro Quarto de Despejo, muita gente torceu o nariz e menosprezou a obra. Recentemente, dois acontecimentos voltaram a colocar a qualidade e o status de Literatura da produção de Carolina em xeque. Nos dois casos, nenhuma surpresa: a contestação veio de homens brancos, héteros, “cultos” e ricos. 

Primeiro, o absurdo parte do autor da biografia de Clarice Lispector, Bejamin Moser. Ao descrever um encontro entre as duas, ele é extremamente racista:

”Numa foto, ela aparece em pé, ao lado de Carolina Maria de Jesus, negra que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de despejo, uma das revelações literárias de 1960. Ao lado da proverbialmente linda Clarice, com a roupa sob medida e os grandes óculos escuros que a faziam parecer uma estrela de cinema, Carolina parece tensa e fora do lugar, como se alguém tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para dentro do quadro”.

E, mais recentemente, o absurdo veio de um “aclamado professor”, Ivan Cavalcanti Proença, e pior ainda: durante um evento que era para ser uma homenagem da Academia Carioca de Letras à autora. Sobre Carolina e sua obra, ele disse: “É o relato natural e espontâneo de uma pessoa que não tinha condições de existir por completo[…] “Ouvi de muitos intelectuais paulistas: ‘Se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever’”. Afirmou ainda que a escrita de Carolina era um diário, e por isso, não tinha o que era preciso para ter status de Literatura.

Como dissemos antes, a escrita de Carolina não se enquadra na norma culta. E ela nunca teve educação formal – estudou apenas os anos iniciais. Mas isso pouco importa. Ela era também mulher pobre e negra – portanto, ao olhos de homens e pessoas de classe média, ela foi e ainda é sempre tida como alguém inferior, sem mérito. É a empregada, a favelada que escreveu um diário sem nenhum valor literário, em português errado. Valor mesmo tem um “imortal” como José Sarney, com seu clássico absoluto e incontestável “Marimbondos de Fogo”, não é mesmo?


Mas, além de toda a merda patriarcal, além de todo o racismo e de toda tentativa de invizibilização, qual é, afinal, a qualidade Literária da obra de Carolina?  Podemos usar, como exemplo comparativo, a obra de um outro mineiro: Guimarães Rosa – médico, diplomata, poliglota, etc etc etc. Rosa também não se limitava às regras linguísticas. A diferença? A obra de Carolina é bem mais visceral e orgânica. E merece lugar de destaque ao lado das principais obras Literárias feitas no Brasil e no mundo (sim, no mundo, pois suas obras foram traduzidas para diversas línguas). Leiam a HQ. Se encantem com a resiliência de Carolina, testemunhem sua jornada. E depois, corram atrás dos livros. Reforçamos: é a nossa obrigação – como leitoras e como mulheres.

Bônus: Não deixem de ver esse ótimo documentário sobre a vida e obra de Carolina, com entrevistas com sua filha e também com Conceição Evaristo, entre outros.


Carolina

Carolina

Editora Veneta

Roteirista: Sirlene Barbosa

Arte: João Pinheiro

Onde comprar: Amazon

Essa HQ foi cedida pela editora para resenha.

Escrito por:

260 Textos

Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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