[CINEMA] “The Fits”: metamorfose feminina (Mostra SP)

[CINEMA] “The Fits”: metamorfose feminina (Mostra SP)

O primeiro longa-metragem de ficção da americana Anna Rose Holmer é um primor não somente em termos estilísticos como também em matéria de roteiro. Com o objetivo de falar de uma certa histeria coletiva que se transmitiria com a ideia de contágio, a diretora flerta com o gênero de horror para abarcar as transformações que uma menina pré-adolescente vivencia. Para além do tema relativo ao rito de passagem, o filme fala sobre descobrir-se mulher e, mais importante ainda, sobre sororidade.

Nesse sentido, o termo sororidade extrapola o que se vê na tela, pois o roteiro foi escrito coletivamente por Anna Rose Holmer, Saela Davis e Lisa Kjerulff. É interessante destacar que o fato de ter sido escrito a 3 mãos torna o filme ainda mais rico em matéria de experiências vividas e sentidas por cada uma das roteiristas, exprimindo um amálgama de sensações. Cabe ressaltar que o projeto foi premiado com o incentivo Biennale do Festival de Veneza que ajuda roteiros ainda em formação a se materializarem em filmes.

A história é toda narrada através do olhar de Toni, interpretada pela excelente dançarina Royalty Hightower, que na época das filmagens tinha apenas 9 anos de idade. Toni é uma menina moleca que foi socializada em meio a meninos e que ajuda o irmão mais velho no ginásio em que trabalha e pratica boxe. Tendo apenas referências masculinas, Toni, inspirada pelo irmão, também pratica aquele esporte. Mas, no mesmo ginásio, encontra um grupo de garotas, das mais diversas idades, treinando para uma competição de dança. Encantada com aquele novo horizonte de possibilidades, Toni desabrocha e se ressignifica, deixando os meninos cada vez mais de lado.

A opção em escrever poucos diálogos e privilegiar as imagens, demonstra a preocupação da diretora em não colocar na boca das jovens personagens falas que não lhes seriam próprias da idade. O eficiente uso das imagens como elemento narrativo é muito evidente e vem da experiência de Anna Rose na direção de fotografia. Nesse sentido, a atriz Royalty foi fundamental para ajudar a consolidar o roteiro, pois com sua ótima atuação e expressões corporais, traduzia em gestos e movimentos as palavras que se pretendia dizer no texto. Ademais, o isolamento que é mostrado no começo do filme vai dando lugar à coletividade, na medida em que Toni vai se integrando e se conectando ao grupo de meninas.

Para realçar a ideia de sororidade tão forte na trama, a diretora e as roteiristas inspiraram-se no grupo de dança “Q-Kidz”, que encontraram através de buscas no youtube, absorvendo as meninas deste coletivo para formar o elenco do filme. O trabalho na direção de não atores é bem marcado e um dos pontos fortes neste filme de estreia de Anna Rose Holmer.

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A trilha sonora e o desenho de som excelentes são operados a fim de gerar um incômodo, um certo desconforto no espectador, para transmitir todos os sentimentos que Toni está passando durante essa transformação, não apenas química, mas social, que culmina no rito de passagem da protagonista. Com poucos diálogos, Toni fala através de seu corpo. Em vários momentos a câmera fica fixa no rosto da menina enquanto o expectador escuta tudo que se passa no extracampo.

Em uma cena belíssima, Toni experimenta uma das primeiras violências que é imposta às mulheres para firmarem uma identidade feminina. O ato de furar a orelha para colocar brincos (muitas vezes ainda na maternidade) é uma das muitas formas que a sociedade tem para demarcar corpos e distinguir as meninas dos meninos. E é um pouco sobre essa experiência de tornar-se mulher, no encontro de seus pares, que o belíssimo filme de Anna Rose Holmer vai tratar.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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