Nenhum outro período da história humana é tão presente na cultura pop quanto a Idade Média. Desde os romances do século XIX, que retratam cavaleiros corajosos salvando donzelas em suas armaduras brilhantes, até Star Wars, com seu código de cavalaria adaptado para as guerras espaciais, a Idade Média ganhou um lugar de destaque no imaginário popular e junto com ela veio a falácia da fidelidade histórica.
O argumento da fidelidade histórica normalmente é usado para tentar desmerecer qualquer crítica voltada à falta de representatividade feminina ou ao abuso às personagens mulheres nessas obras. Em 2014, Mark Lawrence, autor da “Trilogia dos Espinhos”, respondeu aos críticos dizendo que a falta de personagens femininas em seus livros se dava pelo contexto e pelo gênero literário em que eles se encontravam. Parece que na visão de Lawrence, a presença de uma mulher em um mundo medieval bélico só pode ser justificada nos casos em que essas mulheres sofram violência pelas mãos de seu protagonista, porque na Idade Média era justamente assim que acontecia.
Argumento semelhante já foi ouvido por qualquer pessoa que ousou questionar a razão dos estupros e do racismo no seriado “Game of Thrones”, porque é uma obra obviamente baseada na Idade Média inglesa, portanto, tinha que ser assim mesmo. Será?
O que as pessoas que usam esse argumento falham em perceber é que como toda obra ficcional (baseada ou não em um período histórico real) todos os elementos ali presentes são frutos de uma escolha pessoal do criador dessa obra. A falta de mulheres relevantes para a história (ou a falta de mulheres em geral na história) na “Trilogia dos Espinhos” foi uma escolha de Mark Lawrence, assim como também foi colocar um garoto que mal atingiu a puberdade como protagonista e o líder de um bando de mercenários.
Representar pessoas negras como escravos em “Game of Thrones” foi uma escolha da produção da série, mesmo quando nos livros George Martin claramente descreve muitos desses personagens como sendo brancos de olhos claros. Transformar cenas de sexo consentido em estupro, ou diminuir o papel das mulheres para dar mais força aos homens da série, também foram escolhas muito bem pensadas por parte dos roteiristas e produtores da série, nada está ali por acaso e muito menos para ser fiel ao período histórico no qual foi inspirado, afinal, dragões não existem, elfos não existem e garotos de catorze anos não tomam castelos impenetráveis.
Nós somos condicionados a aceitar esses acontecimentos em histórias de Fantasia Medieval pelo bem da trama, mas não a aceitar um negro como um deus nórdico ou uma mulher em papel de destaque, porque isso seria deturpar a “ordem natural das coisas”.
Evocar a fidelidade histórica em nome dessas escolhas só prova que o público nerd ainda não entende completamente como funciona a criação de um universo fictício, da mesma forma que não entende o que realmente foi a Idade Média.
Logo na introdução de seu livro “Idade Média”, Umberto Eco nos mostra justamente o que esse período NÃO foi. A Idade Média não foi um período exclusivo da civilização européia, e envolveu pelo menos dois outros continentes; não foi um período de guerras ininterruptas, pois dava tempo de fazer muita arte e música; e não foi sempre misógina.
Mulheres vêm fazendo coisas incríveis e desafiando o status quo de suas épocas desde sempre. Para ficarmos em apenas um exemplo, uma das primeiras auto biografias em língua inglesa foi escrita por uma mulher. Em “The book of Margery Kempe”, a autora registrou, entre outras coisas, suas peregrinações a lugares sagrados em pleno século XIV, viagens que muitas vezes ela fez desacompanhada do marido.
Nós temos registros de mulheres que desafiaram a autoridade masculina de várias formas, seja liderando exércitos, ou apenas questionando seu papel social. Isso somente para citar acontecimentos do eixo Inglaterra-França, que inspira a maior parte das obras ficcionais que chegam até nós, mas mesmo dentro da Europa a Idade Média foi plural.
Portanto, mesmo que o período medieval tenha inspirado a criação dessas obras, usar apenas homens brancos como protagonistas e relegar às mulheres papéis secundários de vítimas de violência, ou interesse romântico do herói, mostra muito mais uma tendência a agradar o público masculino dos dias de hoje, do que se manter fiel ao retratar o período. Precisamos entender que autores de ficção não são obrigados a ser fiéis à realidade, afinal, quando foi a última vez que você leu sobre a falta de banho e dentes em uma princesa? Ou a morte prematura de um herói devido à sífilis? Tudo é uma questão de escolhas.
Que tal conhecer mais mulheres que desafiaram os costumes de épocas passadas? Visite o site Rejected Princess e se divirta com as histórias ilustradas dessas formidáveis personagens, algumas delas eram até princesas e rainhas de verdade.