Black Mirror – 3ª temporada: os termos da sociedade de ilusão

Black Mirror – 3ª temporada: os termos da sociedade de ilusão

No final de outubro deste ano foi liberada na rede Netflix a terceira temporada de “Black Mirror”. Com seis episódios, a temporada novamente foca na relação entre os seres humanos e a tecnologia, que cada vez mais ganha – ou rouba, diante de certa perspectiva – espaço nas vidas contemporâneas. Os episódios variam entre si e entre o que já foi apresentado, de forma a revelar novas problemáticas ou apenas visões do uso constante da tecnologia. Mas o que estes últimos episódios pretendem demonstrar? Mais do que isto, o que eles possuem em comum?

[NÃO CONTÉM SPOILERS]

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A terceira temporada de “Black Mirror” foca no medo, um medo que se transforma em variados sentimentos e acarreta em diferentes consequências diante de cenários diversificados. A introdução é feita com o medo ao feio e o julgamento de uma sociedade através do episódio “Queda Livre”. A tecnologia permitiu o julgamento instantâneo da vida. O que antes era restrito ao pensamento torna-se real no mesmo momento através de um aplicativo de votos. O sorriso, a maquiagem perfeita, a simulação de uma vida em troca de votos que oferecerão benefícios na sociedade da hipocrisia. Mulheres contra mulheres por padrões estabelecidos por outros. Não importa o passado ou mesmo os sofrimentos. A realidade é ignorada diante da valorização do supérfluo. Introduz-se a uma vida de ilusões.

black-mirror-05A queda é rápida para aqueles que se entregam à ilusão. Qualquer falha é motivo de queda vertiginosa da pontuação, a qual também é utilizada como vingança ou retaliação. Porém, é difícil viver uma vida sem erros. E quando menos se espera, passa-se de uma pontuação 4/5 para uma pontuação 1/5. A ilusão de possuir amigos, influência, casas e amores decai. O que sobra é uma loucura incompreendida por aqueles que permanecem com a lente do julgamento.

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A tecnologia ilude, cria uma realidade que, mesmo irreal, torna-se existente, na medida em que é aceita pelas pessoas. Entra, então, a concordância. Se no primeiro episódio a sociedade concorda em colocar as lentes do julgamento para dar notas ao feio e ao belo, no segundo episódio, intitulado “Versão de Testes”, o ser humano concorda em experimentar uma realidade realmente virtual. Agora ele pode enxergar o que deseja enxergar. E se tal tecnologia fosse inserida no episódio anterior, provavelmente as pessoas escolheriam transformar as outras em mais belas – ou não, pois não haveria superioridade e inferioridade. Mas no segundo episódio vê-se justamente o que não se quer ver. O medo é transformado em realidade. A concordância advém da vontade de viver o que não se vive. Mas o medo enlouquece. Viver sob o medo pode ser perigoso.

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O medo é também o que move o terceiro episódio, “Manda Quem Pode”. Um jovem possui seu notebook hackeado e se vê exposto a uma rede de chantagens. Como outras pessoas, ele concorda em se submeter às exigências por medo de ter um vídeo revelado. A motivação do medo é suposta desde o início. As exigências são extremas e levam os envolvidos à loucura. Questiona-se, então, se não seria mais fácil desistir e conviver com as consequências de seus atos. O problema é que o ser humano aprendeu a viver escondido sob a máscara da tecnologia, a viver na ilusão da impunidade. Em um dado momento, a tecnologia se vira contra ele, registrando o que não se queria ser descoberto. A privacidade é inexistente. E ainda que seja errado invadir os atos privados de cada um, por que o medo é superior à insanidade das medidas exigidas?

black-mirror-07O medo move os seres humanos. Se alguns possuem medo de terem suas vidas reveladas, outros possuem medo de simplesmente perder a vida. “San Junipero”, o mais diverso dos episódios, revela uma possibilidade de criar uma vida aparentemente perfeita e de prolongá-la no tempo. A ilusão pode ser a saída para aqueles que não mais podem viver ou que não viveram suficientemente. É o tempo para libertação e aceitação – como mulher, gay, negro, como ser humano –  e para vivência plena. Ao mesmo tempo em que traz ao espectador uma perspectiva positiva da tecnologia através de uma história de amor, o episódio contrapõe viver eternamente e se enganar eternamente, entregando-se a uma vida sem propósitos, e viver limitadamente, mas viver os frutos da incerteza e dos riscos. A vida que todos desejam pode não ser tão real quanto se pode pensar. Ou a realidade é definida pelo que se sente?

black-mirror-08A definição do real é colocada em dúvida no quinto episódio, “Engenharia Reversa”. Agora a tecnologia é mostrada como arma militar. Da mesma forma que em todos os episódios, exceto o terceiro, implantes fazem com que o ser humano veja algo que não veria antes. O inimigo é criado. A sensação do medo e do ódio é implantada. E talvez não haja libertação para quem viveu tanto tempo em uma guerra virtualizada. O arrependimento do que se viveu na ilusão pode destruir mais do que continuar nela vivendo.

black-mirror-09“Odiados pela nação” finaliza a série. A tecnologia incrementa as armas de julgamento, possibilita trazer o mundo virtual para a realidade, disseca seus medos e seus pecados, oferece uma saída para a sua vida, cria metas, mas cria inimigos, cria vidas e cria mortes. O que muitas vezes se esquece é que a tecnologia não muda por si o pensamento humano, mas é usada como ferramenta da própria loucura humana. E nesta finalização, é usada para trazer a morte. Agora o mundo que começou julgando, julga também quem deve viver ou morrer. A ferramenta criada para auxiliar um mundo em que os seres – não necessariamente os humanos – começam a desaparecer, tem seus objetivos modificados. A internet decide quem será a próxima vítima. Porém, num dia se é o assassino; no outro dia, a vítima odiada.

Como mencionado no último episódio: “há uma visão esquizofrênica do mundo”. A insanidade não advém diretamente do avanço, mas de uma cultura perpetuada pela sociedade, uma cultura que julga, que isola, que cria inimigos entre iguais e que afirma que o irreal é fantástico. O ser humano cria um ideal de vida e se entrega à ilusão, entregando-se também ao domínio de outros – outros que, muitas vezes, constituem um conjunto abstrato de pessoas. A pergunta final é: o que motiva esta sociedade a concordar com os termos da tecnologia e com o controle advindo dela?

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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