Parando para contabilizar as protagonistas femininas presentes em uma infância regada a livros, pode-se contar poucas ou quase nenhuma. Imediatamente vêm à mente Píppi Meialonga, personagem do livro de mesmo nome, da sueca Astrid Lindgren; a Mônica, de Maurício de Sousa; Emília, d’O Sítio do Picapau Amarelo; Violet Baudelaire, de Desventuras em Série; Coraline, de Gaiman, e só.
Um número ínfimo, se comparado a um bocado de “Pequenos Príncipes” e “Harry Potters” que tanto se encontram por aí (sem mencionar a infinidade de super-heróis – todos eles, meninos). Mas, voltando às personagens: o que todas elas possuem em comum além do próprio sexo? A força (seja ela de postura ou física, como é o caso de Píppi). A disposição para encarar o mundo e lutar pelos seus ideais. A curiosidade para desbravar locais pouco explorados e descobrir coisas mágicas ao redor, nem que seja de sua própria casa. A imaginação para criar coisas e colocá-las em prática. E tais características, se aplicadas à vida real, são tidas como incabíveis por muitas pessoas, já que meninas “têm de ser apenas princesas-cor-de-rosa-esperando-um-príncipe-num-cavalo-branco”.
A Bela e a Adormecida é um manifesto para que todos deixem as meninas livres para escolherem o que querem ser e para que a literatura forneça continuamente esta base que tantas mulheres não tiveram na infância.
Basta uma busca rápida em bibliotecas de escolas de Ensino Fundamental e Médio para encontrar diversas histórias em que garotos são protagonistas e, quando uma garota toma a frente do enredo, é para morrer envenenada pela ira de uma outra personagem feminina e ser salva por quem? Isso mesmo, o bonitão do reino. Não que contos de fada ou qualquer outra história em que mulheres são salvas por homens não sejam importantes, longe disso. Tais histórias têm o poder de estimular o senso crítico e formar o caráter de uma pessoa, fora que o gênero fantástico abre inúmeras portas para a criatividade em diversas artes.
Mas, claramente, em pleno século XXI ainda ter de encontrar pilhas e pilhas de livros com personagens femininas submissas, principalmente se tratando de literatura infantil, é no mínimo indignante. Quando se fala que representatividade importa e MUITO, não é só da boca para fora. Se uma mulher adulta torce e se emociona vendo Rey, Jyn Erso e Kamala Khan arrebentando com tudo, imaginem essa força de presença na cabeça de uma criança ou adolescente!
E, na contramão do que o senso comum prega, existem pessoas, como Neil Gaiman, que se preocupam em colocar no papel a realidade dos fatos: se tem uma coisa que mulher pode, essa coisa é poder ser o que ela bem entender. Ao passo que ainda existem muitos estereótipos de “belas, recatadas e do lar” dentro da Literatura, nota-se uma crescente preocupação em exaltar o poder feminino de ir, vir e vencer batalhas, sejam elas internas ou externas, tomando conta das livrarias. E é nessa jornada pelo protagonismo que o leitor embarca em A Bela e a Adormecida, de Gaiman.
“Ela ficou se perguntando como se sentiria na condição de esposa. Seria o fim de sua vida, concluiu, se a vida fosse um tempo de escolhas. Em uma semana não teria mais o que escolher. Reinaria sobre seu povo. Teria filhos. Talvez morresse durante o parto, talvez de velhice, ou em batalha. Mas o caminho para a sua morte, a cada batida de seu coração, seria inevitável.”
Pai da Morte, de Coraline, das Hempstock, de Door e tantas outras mulheres fortes dentro de suas tramas, Gaiman resgata dois contos clássicos, “A Bela Adormecida” e “Branca de Neve”, e dá a eles uma roupagem completamente nova, mas com o velho encanto dos contos de fada. A rainha de um reino, cujo o nome não é mencionado, mas que detecta-se ser Branca de Neve pelas características físicas e por ter anões como ajudantes, anda preocupada e indecisa quanto ao seu casamento com um príncipe.
Nota-se aqui tanto a inversão de papéis no que concerne à hierarquia – já que a princesa da história original se transformou em rainha e desposará alguém que está em um nível de realeza abaixo do seu – quanto ao desejo irrefreável que as princesas possuíam de querer encontrar seu amor verdadeiro a qualquer custo, casar e ter filhos: a personagem de Gaiman claramente pouco se importa com isso e, ao descobrir que os habitantes de um reino vizinho estão adormecendo por conta da maldição de uma bruxa, vê na resolução do problema uma escapatória para uma vida caseira que ela não estava procurando para si.
“Ela mandou buscar o noivo, pediu-lhe que não fizesse cena; disse que ainda se casariam, mesmo ele sendo apenas um príncipe, e ela, uma rainha, e fez cócegas no belo queixo dele, e beijou-o até que ele abrisse um sorriso.
Ela mandou buscar a cota de malha.
Ela mandou buscar a espada. Ela mandou buscar mantimentos e o cavalo, e em seguida cavalgou palácio afora, em direção ao leste.”
O príncipe é mencionado apenas neste parágrafo, mas a ideia do casamento indesejado vive rondando a moça e sendo colocada como metáfora em diversos momentos, como quando ela precisa ultrapassar a vegetação muito fechada do castelo onde se encontra a Adormecida, simbolizando o emaranhado de seus anseios e dúvidas. Outro momento muito marcante se dá quando, ao ouvir os carpinteiros do reino martelando a madeira que serviria para os bancos de seu casamento, ela sente que cada martelada soava como a batida de seu próprio coração.
Após percorrer uma incrível distância, ter de dormir ao relento e enfrentar perigos diversos, a rainha finalmente encontra a princesa adormecida e a beija, a fim de que acorde consigo os habitantes do castelo e de suas redondezas. Uma repercussão negativa rondou a cena do beijo, pelo simples fato de acontecer entre duas mulheres. Pais e mães acharam um absurdo uma imagem (belíssima, diga-se de passagem) que, no fim das contas, serve apenas de motivador para o clímax da história e não possui nenhum cunho sexual. A mensagem, por trás da cena, deixa claro o poder que mulheres têm de se salvarem e salvarem umas às outras.
O desenrolar do enredo após essa cena é surpreendente. Assim como em João e Maria, do mesmo autor, o leitor é apresentado a personagens que são tidas como vilãs, mas que na verdade foram vítimas de uma sociedade injusta. A história também versa sobre julgar pelas aparências e passa um sermão sutil sem ao menos dizer uma palavra. Tais fatores, dentro dos princípios da literatura infantil e infantojuvenil contemporâneas são importantíssimos, uma vez que aproximam a criança do mundo real em que vive e a tiram de uma bolha cor-de-rosa onde existem finais felizes estereotipados, por meio de metáforas, mas, ainda assim, real.
As ilustrações desta edição ficaram por conta de Chris Riddell e são minimalistas e muito cheias de vida, apesar de se apresentarem predominantemente em preto e branco. Alguns realces em dourado reforçam pontos muito particulares aos personagens, como nesta cena em que a rainha faz prova do vestido de noiva, mas se sente sufocada pela ideia do casamento e tem isso evidenciado pelo aperto da corda na cintura:
O final da história é gratificante, pois o autor deixa claro que, além de ser forte e empoderada, a rainha tem poder de escolha, apesar do que lhe estava sendo imposto. Quantas mulheres já deixaram de fazer várias coisas por medo das consequências ou por pensar demais nos outros e esquecerem de si mesmas?
As mensagens passadas em A Bela e a Adormecida se aproximam do dia a dia do leitor e fazem com que se reconheçam na rainha, na bruxa e na Adormecida. Essa representatividade na vida de diversas meninas é importantíssima, para que cresçam combatendo seus próprios monstros, corram atrás de suas próprias jornadas e não esperem pela boa vontade de alguém tomar partido por elas.
A Bela e a Adormecida
Ano: 2015
66 páginas