Quase toda mulher sabe a dificuldade que é, estando sozinha, ter que colocar um vestido extremamente justo com zipper nas costas. Podemos ainda reformular a frase: quase toda pessoa que precisa usar um vestido muito justo com fecho nas costas sabe da dificuldade em fazê-lo sem ajuda de outra pessoa. Afinal, vestido não deveria ser um traje exclusivo de mulheres. Mas é. Se não das mulheres, da construção social que determina o feminino. Afinal, feminino e/ou masculino, ser mulher e/ou ser homem, no sentido empregado por Judith Butler é performatizar o gênero através da repetição de gestos e comportamentos social e culturalmente estabelecidos.
“Essa repetição”, esclarece Butler em seu livro Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade (2008, p. 200), “é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação”.
Enfim, isso quer dizer que o efeito substantivo do gênero é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência de gênero em cada contexto social. E qual a relação do conceito de gênero de Butler com Toni Erdmann (2016), filme dirigido pela alemã Maren Ade, que vem arrebatando público e crítica em todos os Festivais e Cinemas em que é exibido ao redor do mundo?
Aparentemente nada, mas fundamentalmente tudo. Voltemos à cena do vestido ilustrada na imagem acima. Nesta cena, que pode sintetizar todo o filme, Ines Conradi (interpretada de forma visceral por Sandra Hüller), está prestes a receber, em seu apartamento, os colegas de trabalho para a festa de seu aniversário. Por ocupar um cargo importante na empresa, acompanhamos ao longo das quase três horas de projeção as desventuras do cotidiano dessa mulher que precisa se impor, se afirmar e se reinventar a cada reunião pelo simples fato de ser mulher. Ser mulher coloca a prova toda a sua capacidade intelectual e cognitiva para realizar as funções do chamado “mundo dos negócios” – universo classificado e marcado historicamente como eminentemente masculino.
Esse constante desencaixe da personagem, num deslocamento contínuo de sentimentos, vai permear toda a narrativa. Não é à toa que em alguns outros momentos do filme, os incômodos vivenciados pela protagonista sejam metaforizados em seu corpo e na forma de se vestir.
Seja na já citada cena do vestido que desemboca numa das cenas mais catárticas do filme e que, desde já, integra o panteão da história do cinema: na qual despir-se das máscaras sociais é uma das tarefas mais difíceis para todo e qualquer ser humano; seja na cena em que a protagonista tira o salto alto para arrancar uma unha do pé machucada antes de entrar numa importante reunião de negócios; seja na cena em que Ines está prestes a receber uma massagem no SPA e precisa sair correndo para cumprir o compromisso protocolar de ajudar a esposa do rico empresário com quem está fechando um negócio a comprar roupas num shopping.
Os conflitos internos da protagonista estão sempre amalgamados com os conflitos externos do extracampo. Nesse sentido, o roteiro de Maren Ade é brilhante, pois está a todo o momento partindo do micro para falar do macro de forma fluída e integrada à narrativa.
Se o filme explora tão bem as idiossincrasias referentes ao universo das mulheres, por que seu título é Toni Erdmann? E aí vem a cereja do bolo. Some-se a tudo que já foi dito, um pai que aparece nos momentos mais inoportunos na vida da protagonista.
Toni Erdmann é um personagem inventado por Winfried (Peter Simonicshek), pai de Ines, a fim de tentar se reaproximar e se reconectar com a filha, que imbuída de ideais extremamente capitalistas, abandona o mundo dos sentimentos, dos afetos, das relações íntimas, para com toda a frieza que lhe é peculiar mercantilizar também as relações pessoais.
E é nesse resgate de um pai que tenta se reaproximar da filha que Maren Ade traça uma das mais belas metáforas para falar da Alemanha atual, pós-queda do muro de Berlim, em pleno mundo globalizado, expandindo para o resto da Europa, já que parte da trama se passa na Romênia.
Vemos poucos filmes em que o fio condutor da trama é focado na relação instável de um pai com sua filha. Outro que aborda esse binômio de forma muito eficiente para também abarcar as questões de fundo de uma Europa em crise é 35 doses de rum (2008), da diretora francesa Claire Denis.
É, portanto, na performatividade dos gêneros e das relações interpessoais, aliada à constante reinvenção de si que a ligação entre Winfried/Toni Erdmann e Ines se faz, se desmancha, se refaz e se atualiza dentro do filme. As inúmeras personas que temos que assumir ao longo do dia para cumprir papéis sociais são colocadas por Maren Ade em perspectiva e em suspenso de forma irônica, incômoda, às vezes até um pouco perversa, mas ao mesmo tempo com um toque de lirismo e um tom esperançoso, que nos faz lembrar que é possível driblar as adversidades com algumas concessões.
Concessões como a que Ines faz ao cantar “The greatest love of all” junto com o pai travestido de Toni Erdmann numa festa de pessoas desconhecidas, rendendo um dos momentos mais emocionantes do filme. Vencedor de inúmeros prêmios nas categorias melhor filme, direção e atuação, Toni Erdmann saiu do Festival de Cannes (2016) com o prêmio de melhor filme da competição segundo a FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema), além de levar o prêmio de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro (2017), no BAFTA (2017) e no Independent Film Spirit Award (2017).