[CINEMA] Agnus Dei: Uma análise feminista da violência sexual no cinema

[CINEMA] Agnus Dei: Uma análise feminista da violência sexual no cinema

Em um momento em que o tema da violência sexual toma o noticiário e as conversas diárias – embora isso ocorra sem muita profundidade e, muitas vezes, com irresponsabilidade -, um filme produzido em 2016 e que parece ter sido pouco divulgado no Brasil tem o potencial de gerar uma excelente reflexão sobre essa problemática, como poucas produções têm-no feito atualmente. No Brasil, ele foi intitulado Agnus Dei, embora em alguns países, como na França, local onde foi produzido, ele se intitule “The Innocents/Les Innocents”. 

É importante, aqui, se fazer a ressalva de que a análise do filme não é uma crítica de cinema no sentido técnico, mas uma análise feminista de uma jornalista e estudiosa da cobertura feita pelos meios de comunicação sobre a questão da violência sexual.

[Contém Spoilers]

Agnus Dei
Cena belíssima, em todos os sentidos: a freira sai da clausura em busca de ajuda para suas irmãs

Agnus Dei gira em torno de um episódio real, e que é muito comum, infelizmente, em ambientes de guerra: o estupro de civis, em sua esmagadora maioria mulheres, por tropas militares, seja como arma de guerra (limpeza étnica e humilhação das tropas inimigas) ou simplesmente porque se entende que os soldados precisam “aliviar” suas “necessidades sexuais” e “seguir seus instintos”, o que faz com que passem a estuprar qualquer contingente de mulheres que veem pela frente.

Não por acaso, de acordo com a Organização das Nações Unidas, mulheres e crianças são as que mais sofrem com as guerras e conflitos armados, devido ao aumento dos estupros, tráfico de pessoas para fins de estupro e da prostituição forçada, que nada mais é do que um eufemismo para exploração sexual.

No caso do uso das mulheres para a satisfação dos “instintos sexuais” de soldados, este é na verdade um reflexo do poder dos homens sobre os corpos das mulheres, principalmente quando essas mulheres são consideradas inferiores do ponto de vista étnico; sobre tal tema, vale ler sobre as “mulheres-conforto”, das mais variadas nacionalidades, estupradas por tropas japonesas durante a II Guerra Mundial. Há outros casos, obviamente, que ocorrem hoje, agora.

Agnus Dei
A médica Mathilde Beaulieu

Aqui, as civis violentadas são freiras beneditinas polonesas, que vivem em clausura, e que foram estupradas por soldados soviéticos que invadiram por três vezes o convento em que vivem. A história gira em torno delas e da médica francesa Mathilde Beaulieu, que está em solo polonês trabalhando para a Cruz Vermelha francesa, cuidando dos soldados franceses feridos naquele front.

No início do filme, uma das freiras sai do convento — algo muito raro, já que elas vivem enclausuradas e não podem ter contato com o mundo exterior — e procura a ajuda da médica. Descobre-se que sete freiras engravidaram após a onda de estupros. O filme, que é dirigido por uma mulher, Anne Fontaine, toca em pontos muito delicados e importantes para a discussão de gênero. Vamos falar de alguns que chamam a atenção.

O primeiro é a dificuldade que as mulheres têm de expor seu corpo e compreender como se dão os mecanismos da reprodução. Aqui, um fator que torna a questão ainda mais delicada é o fato de que as mulheres são freiras, moravam em vilarejos muito pobres do interior da Polônia antes de prestarem os votos e de que as mulheres na época possuíam uma parca ou inexistente educação sexual.

A médica era totalmente o oposto disso. Embora viesse de uma família proletária, teve acesso à educação formal e frequentou a universidade, fumava, frequentava festas, fazia sexo casual, era politizada e havia vivido numa cidade cosmopolita como Paris. O choque entre essas realidades é evidente.

Agnus Dei
A médica ganha a confiança das beneditinas após ajudá-las a expulsar soldados que queriam invadir o convento outra vez

Aí entra a questão da importância de se compreender o outro, as crenças que moldam seu mundo e as limitações impostas pela religião, pelos papeis de gênero e pelo local onde se vive. Para além da importância de uma mente aberta por parte do médico e da médica que cuidam das mais diferentes pessoas, isso nos diz muito enquanto feministas: por vezes eu preciso abrir mão das minhas convicções, do que eu acho ser mais correto para uma mulher e do meu ímpeto de “salvar” outras mulheres, para de fato poder ajudá-las.

A médica é ateia, as mulheres vítimas de estupro que ela atende são freiras beneditinas que veem tudo aquilo como um sacrifício e um destino, uma provação que precisa ser aceita e até louvada (daí a expressão “cordeiro de Deus” do título, que traz a ideia de sacrifício e imolação). Como conciliar esses mundos?

Se a médica zombasse, fosse intransigente em suas convicções e tentasse impor suas crenças sobre religião, gênero e ciência, conseguiria chegar àquelas mulheres e ajudá-las, cuidar delas, tratá-las das sequelas do estupro e auxiliá-las no parto? Em uma cena, a médica precisa interromper os procedimentos médicos por três vezes durante o trabalho pré-parto porque a freira parturiente precisa fazer orações. Ela o faz sem reclamar, sob os protestos de um colega que depois se abstém de fazer comentários.

A princípio, algumas freiras se recusam a serem tocadas e examinadas pela médica, mesmo ela sendo mulher, porque fizeram votos de castidade, e isso envolve não mostrar o corpo para ninguém, nem deixar que terceiros as toquem, seja por qual motivo for. É preciso que a médica ganhe aos poucos a confiança das freiras, o que é um símbolo da importância da paciência, do respeito ao tempo da outra mulher e do diálogo para que isso aconteça.

Outro aspecto interessante é que o filme trabalha com vários arquétipos de mulheres. Há aquela que se apaixona pelo filho e abandona o hábito para seguir sua “vocação de mãe”, há a que se suicida ao descobrir que as crianças são deixadas ao relento para morrer e aquela que não se adapta nem ao convento nem à maternidade, preferindo abandonar a clausura e deixar o filho com as freiras para viver a vida. A cena em que esta moça, ex-freira, pede carona na estrada para seguir seu próprio rumo, sem hábito e sem filho, é emblemática. Nem todas as mulheres fazem as mesmas escolhas e seguem os mesmos caminhos, nem todas querem ser mães, nem todas são religiosas.

Agnus Dei
As freiras em comunhão

Agnus Dei também aborda até onde podemos chegar quando estamos oprimidos por medos, gerados por crenças a respeito de conceitos como honra, imagem pública, papeis de gênero e pecado. A madre que dirige o convento, numa tentativa de evitar que o local seja fechado, que as freiras fiquem sem ter para onde ir e que as que engravidaram caiam em desgraça e sejam repudiadas pela comunidade e por suas famílias, comete crimes.

Até que ponto podemos julgá-la? Qual era o destino de uma mulher estuprada e que engravidou do estupro, naquela época, num contexto de fim de guerra e sob um regime totalitário? Ainda mais quando essa mulher é uma freira e, caso decida abandonar o hábito, é convertida em mãe solteira automaticamente? A Igreja, a comunidade, as famílias, elas aceitarão essas mulheres ou as culpabilizarão? De toda forma, é impossível não sentir asco e raiva pela atitude da madre, que sequer ouviu as mulheres sobre o que deveria ser feito em relação às crianças.

Agnus Dei peca, com o perdão do trocadilho, em não discutir de forma mais aberta a questão do trauma vivenciado por alguém que engravida de um estupro. Como já citei acima, não é porque a mulher resolve ser freira e encarar qualquer sacrifício que isso se coloca de forma fácil.

Não há na fala de nenhuma delas o questionamento sobre a violência que uma gravidez indesejada pode gerar, nem sobre a possibilidade de um aborto (no momento, as gravidezes já estão em fase avançada e isso seria praticamente impossível, porém, nada impediria que houvesse essa reflexão). Tudo leva a crer que a gravidez em si foi um trauma mais pelo fato de serem freiras do que por terem sido violentadas, e isso limita as mulheres à sua posição de freiras e apaga o fato de que são mulheres.

É preciso lembrar que elas são freiras e também vítimas de estupro. O parto certamente é algo que gera consequências críticas a um freira, mas além disso, não podemos esquecer que aqui ele é também um ativador de gatilhos a respeito da violência sofrida, como seria para a maioria das mulheres que engravidam de um estupro.

Não é porque aquela pessoa é uma freira que ela deixa de ser mulher e de sofrer tudo o que uma mulher não-freira sofreria numa situação como essa. Faltou discutir isso na fala de alguma das personagens, porque a impressão gerada é de que em relação a isso não houve muitos embates.

Agnus Dei
Uma freira que dá à luz sozinha

Por fim, onde estão os homens nesta conversa? Não imaginamos que tenha sido o objetivo do filme discutir a questão dessa masculinidade tóxica, violenta e assassina, mas é importante haver alguma costura para que as coisas não fiquem muito soltas, e isso é algo que a maioria dos filmes omite.

Há estupros porque há estupradores, e porque criamos homens que acham que podem fazer isso como parte do exercício de sua masculinidade. O estupro não faz parte do homem, ele é apropriado pelos homens numa cultura que banaliza e naturaliza o ato. A dúvida é se os telespectadores conseguirão captar essa questão por meio das cenas que mostram ou mencionam a opressão dos soldados sobre as mulheres — sobre a médica e sobre as freiras — ou se elas parecerão desconectadas do que houve. Esperamos que sim.

Em relação ao filme como um todo, é positivo que este seja um filme sobre estupro que não mostre cenas de estupro. Não há apelos à violência sexual explícita, recurso que banaliza o estupro e não contribui em nada para a reflexão sobre esse fenômeno. É usado, em geral, apenas para “chocar”, um recurso narrativo no mínimo duvidoso, que na verdade ajuda a reproduzir a cultura do estupro. É um filme não sobre o estupro em si, mas sobre o que ocorre depois dele. Afinal, todos e todas nós sabemos como um estupro se parece — já o vimos ser utilizado várias vezes em cenas de séries e filmes que não contribuem em nada para o arco narrativo dos personagens.

Assim, Agnus Dei mostra como ele deixa profundas cicatrizes nas vítimas, de ordem social, psicológica, emocional e física — como o risco de a vítima ser repudiada, ser expulsa da comunidade em que vive, ter pesadelos, crises de choro, engravidar, contrair doenças sexualmente transmissíveis -, e ao mesmo tempo não banaliza o tema nem gera gatilhos emocionais em sobreviventes que tenham interesse em assistir ao filme. Mesmo a cena em que a médica quase é estuprada é calculada para mostrar a violência e ao mesmo tempo não banalizá-la.

Tecnicamente falando, o filme é um primor de fotografia, e a trilha sonora é muito bem pensada, sem apelar para a dramaticidade excessiva. Tem tudo a ver com o ambiente em que a maioria das cenas se passam — um ambiente de quietude e austeridade.

Agnus Dei passa com folga no Teste de Bechdel, uma vez que os personagens masculinos são poucos — neste quesito, o único que possui um tempo maior em tela é um médico cujo personagem tem sua função, como mostrar o paternalismo, a tentativa de controle e o mansplaining a que as mulheres estão submetidas no ambiente de trabalho, ainda mais em ambientes muito masculinos como a guerra. Mas ele tem lá sua simpatia e no fim não atrapalha o trabalho que a médica francesa está realizando. E serve para mostrar que é possível uma mulher se importar mais com outras mulheres do que com seus relacionamentos amorosos.

Pra quem já assistiu a Agnus Dei, ou leu sem assistir por não se importar com spoilers, é importante fazer uma leitura crítica da obra. É possível utilizá-la sem problema algum para a discussão da violência sexual em ambientes como escolas, universidades, redações de jornal, coletivos que fazem o atendimento de vítimas e qualquer outro espaço que se interesse pelo tema. Há aspectos positivos e negativos no que tange a violência sexual, que podem ser aproveitados para fazer uma discussão interessante e relevante sobre o assunto.

Obras que dialogam com o filme:

• A Guerra não tem rosto de mulher — Svetlana Alexievich

Agnus Dei

O livro é costurado em forma de depoimentos de várias mulheres soviéticas que lutaram na Segunda Guerra Mundial. É a face feminina e esquecida deste acontecimento, e como as mulheres o viveram. Alexievich ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 2015 e é considerada umas das maiores jornalistas de não-ficção de seu tempo.

Onde comprar: Amazon

• Ida — Pawel Pawlikowski

Agnus Dei

Antes de prestar seus votos e se tornar freira, por insistência da Madre Superiora, Anna vai visitar a única familiar que lhe resta: sua tia Wanda, que revela segredos sobre o seu passado. O nome real de Anna é Ida, e sua família era judia, capturada e morta pelos nazistas. Após essa revelação, as duas resolvem partir em uma jornada para descobrir o real desfecho da história da família e seu lugar na sociedade. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2015.

Texto publicado originalmente em Medium.

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