O ciclo de violência marca a história de diversas regiões fronteiriças brasileiras. Afinal, é por todos sabido que o Brasil não foi descoberto, como informavam os livros didáticos escolares, mas sim tomado, saqueado e violentamente expropriado por portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses que por aqui estiveram. Ainda hoje, há notícias de um genocídio em curso dos povos indígenas realizado por garimpeiros e grandes latifundiários. Um roteiro que emula uma fabula usando essa violência como pano de fundo de forma romanceada não parece uma boa opção em pleno 2017.
“Não devore meu coração!” passou pelos festivais de Sundance e Berlim e chega finalmente ao Brasil ao ser o escolhido para abrir a 50° edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. É numa região de fronteira entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai que se situa o primeiro longa-metragem solo de Felipe Bragança, que já havia codirigido “A fuga da mulher Gorila” (2009) e “A alegria” (2010) ao lado de Marina Meliande, que aqui apenas faz a produção.
Baseado em dois contos do livro “Curva de Rio Sujo” de Joca Reiners Terron, o filme vai se desenhando como um western em que motoqueiros travam uma batalha: de um lado temos brasileiros e de outro paraguaios de origem guarani. O conflito é tido como um dado histórico do qual o roteiro acaba refém, já que não o problematiza de forma satisfatória. Não há qualquer razão ou desenvolvimento de personagens que justifique as duas gangues rivais que disputam por território dentro da narrativa. Só o contexto histórico de guerra entre os dois países justificaria esse embate? Parece-me uma solução superficial e ingênua.
Em contrapartida, Joca (Eduardo Macedo), seu irmão mais novo, compreende a mãe e questiona as atitudes de Fernando. Por estar apaixonado por Basano (Adeli Benitez), uma menina de etnia guarani pela qual diz estar enfeitiçado, Joca acredita que seu coração teria sido capturado pela jovem moça, numa bela cena que abre o longa em que escutamos vividamente o pulsar do coração do rapaz nas mãos da menina. É deste jogo lúdico que vem o título do filme.
Porém, apesar de querer abordar uma questão histórica e estrutural das sociedades latino-americanas (disputas territoriais), Bragança acaba por vilanizar as mulheres, sejam aquelas que se separam de maridos por experimentarem um relacionamento abusivo, seja no velho mito das mulheres indígenas calcado numa espécie de misticismo idealizado sobre rapto de corações de pobres meninos indefesos e devoradoras de homens, tudo isso para falar sobre padrões de masculinidade em conflito.
No entanto, tanto Fernando como Joca emulam um sofrimento que remete a forma como cada um lida com o mundo, tendo como ponto de partida a crença num “abandono,” seja da mãe ou do primeiro amor.
A fábula e alguns elementos de cinema fantástico utilizados de forma interessante em termos de linguagem narrativa, infelizmente não dão conta de um roteiro extremamente frágil e pueril, que se apoia em estereótipos abundantemente maniqueístas sejam sobre “vilões” ou “mocinhos”. Ao tentar lidar com muitos temas ao mesmo tempo, o filme acaba se perdendo e se esvaziando de forma a não dar soluções interessantes para o desfecho dos personagens que vão perdendo suas cargas dramáticas na medida em que o roteiro avança.
O embate final entre o menino Joca e a jovem paraguaia que era para ser lírico, já que emula a figura de super-heróis no clímax de suas batalhas, soa apenas forçado e deslocado diante de toda a brutalidade que aquelas relações já não conseguem dar conta. Neste sentido, o filme “Twaaga” de Burkina Faso, dirigido por Cedric Ido, que esteve recentemente no 10° Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, foi muito mais feliz em demonstrar de forma lúdica e quadrinesca a opressão que perpassa e aflige aquela sociedade, também apoiando-se na imagem idealizada de super-heróis.
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A direção de atores deixa a desejar na medida em que tem dificuldade em concatenar bons momentos com um elenco que em grande parte é formado por atores não profissionais. Talvez se estes tivessem tido mais tempo em cena e contribuído de forma mais efetiva na elaboração do roteiro, o resultado pudesse ser mais proveitoso. Ao fim e ao cabo, o que fica é um filme sobre meninos e homens mimados que acreditam que a auto-afirmação através da dominação (geralmente usando uma figura feminina de esteio) ainda seja a forma de conduta mais adequada.
Apesar do grande empenho em enfatizar uma figura falida e idealizada da mítica virgem indígena (uma eterna referência a Iracema, a virgem dos lábios de mel) e da ótima atuação de Adeli Benitez, o que sobra é um filme feito por homens, sobre homens, cujo modelo de masculinidade que se pretendia colocar em xeque, acaba esvaziado. Isso se dá pelo fato de as mulheres na dramaturgia de “Não devore meu coração!” figurarem de forma secundária na trama.
Ocupar uma posição reagente a uma realidade opressora, e não de agente per si, desfoca a real intenção que o diretor pretendia conferir ao filme. A ideia de não conformidade com o lugar que as sociedades patriarcais impõem às mulheres acaba não fluindo de forma orgânica durante o filme, uma vez que nem a força, nem a vingança, nem o isolamento dão conta de conferir algum conforto para as personagens das 3 mulheres que seguem amarguradas.