[CINEMA] As Boas Intenções: relações abusivas familiares e a reprodução nociva do patriarcado (Mostra SP)

[CINEMA] As Boas Intenções: relações abusivas familiares e a reprodução nociva do patriarcado (Mostra SP)

As Boas Intenções (The Good Intentions, 2016) é um documentário com roteiro de Beatrice Segolini, co-dirigido com Maximilian Schlehuber, que estreia hoje (20) na 41 Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. No documentário, que está concorrendo na Competição de Novos Diretores, encontramos o cinema sendo utilizado como instrumento de reflexão para uma família disfuncional. [NÃO CONTÉM SPOILER]

As Boas Intenções é o primeiro trabalho da italiana Beatrice Segolini no cinema. Segolini nos apresenta sua família disfuncional e nos convida a sentar na sala com eles para assistir suas reflexões, se é que podemos chamar assim, acerca de sua infância e de seus irmãos num lar abusivo, ao lado de um pai violento e uma mãe omissa.

Isso parece muito interessante sob vários aspectos: o primeiro deles é assistir a situação real dessa família que está em sofrimento, motivado muitas vezes por questões que, de um jeito ou de outro, não nos são estranhas. Afinal, quem de nós nunca sofreu em seu núcleo familiar em maior ou menor grau?

Outro ponto favorável de As Boas Intenções é o livre acesso à intimidade daquele lar, nos permitindo assistir a uma verdadeira “sessão de análise familiar”. Segolini deixa claro que devemos cuidar das cicatrizes que relações abusivas nos deixam, não somente para resolver mal entendidos familiares, mas porque as sequelas, na maioria das vezes, ecoam dentro de nós durante boa parte da nossa vida.

As Boas Intenções

Por último, e talvez um motivo menos nobre, seja a ideia de levar para a tela sua intimidade sem qualquer constrangimento, fazendo imaginar que o cinema, principalmente na área documental, possa se tornar um espaço como são as redes sociais hoje, onde a intimidade não só está sempre exposta, mas serve de matéria prima para o roteiro. Talvez seja uma nova forma de entender a sétima arte.

É compreensível que muitas das violências que ocorrem contra mulheres e crianças acontecem em seus núcleos familiares. Estamos falando de uma infinidade de situações: pais que abusam de sua autoridade e agridem verbalmente seus filhos(a), pais que agridem seus filhos(a) e/ou seus cônjuges fisicamente, familiares (e aí vale qualquer relação de parentesco) que abusam sexualmente de crianças e até de seus próprio familiares. O núcleo familiar é um lugar propício para manifestações do comportamento humano que muitas vezes são inaceitáveis.

E por que falamos isso? Se considerarmos que ao falarmos de família, falamos também de um grupo da sociedade com regras próprias de convivência, estamos dizendo que esses códigos atribuem papéis para cada um de seus membros. Portanto há uma certa imposição de hierarquia aqui, onde as figuras paterna e materna devem ser respeitadas e obedecidas cabendo aos filhos(a) apenas consentir nessa relação pré estabelecida com confiança. 

E quando confiamos, acreditamos no que o outro nos propõe e nos impõe: se estamos todos no mesmo time, presume-se que temos sempre boas intenções em relação a um ente querido.

Só que nem sempre é assim, muito ao contrário: a família é um lugar muito propício para atos de violência, pois além desses códigos existe um elo de confiança, amor e laços de consanguinidade que nos colocam à mercê dessas pessoas, que por um motivo ou outro (e podem ser muitos, desde uma dificuldade social, até uma disfunção psíquica) nos submetem a atos de violência.

As Boas Intenções

As regras para o grupo familiar não foram inventadas recentemente. Reproduzimos apenas o que muito antes de nós já era praticado nesses núcleos. Herdamos um entendimento sobre como nos comportarmos em família e que nesse lugar devemos, não somente seguir as regras, mas também confiar.

Portanto interessante quando podemos não somente falar de nossas cicatrizes e traumas, buscando respostas para situações que quando crianças não eram claras para nós, mas também quando refletimos sobre o entendimento do que é e como podemos mudar esse conceito herdado de família, como apresentado em As Boas Intenções.

Não estamos propondo uma reflexão sobre possibilidades de formatos modernos para os núcleos familiares, mas que façamos uma revisão desse conceito patriarcal, onde ao homem cabe apenas a função do sustento da família e à mulher, o papel na educação de seus filhos e a responsabilidade de gerir sua casa, cabendo aos filhos apenas a missão de serem a reprodução de uma expectativa (expectativas que podem ser de várias naturezas) e obediência ao pai, principalmente.

Na medida que conseguimos avançar nesse debate podemos evoluir nas questões dos direitos igualitários para homens e mulheres, além de ações que previnam o feminicídio, os diversos tipos de violência doméstica, abuso infantil e muitos outros problemas que existem dentro de núcleos familiares, e que acabamos de um jeito ou de outro normatizando.

As Boas Intenções

Somente quando abrimos nossas histórias e falamos dela, no intuito de enfrentá-las e compreendê-las melhor, é que podemos evoluir enquanto indivíduos e a partir daí avançar na solução das questões estruturais.

Fingir que essas situações como a de Beatrice e sua família em As Boas Intenções não existem, é ignorar o efeito devastador que uma violência familiar nos causa durante toda a vida, mas também é corroborar para perpetuar comportamentos inadequados e a ideia de que toleramos ainda a reprodução dessa herança do patriarcado.

Convidamos a todos a compartilharem suas histórias de abuso e buscarem o entendimento necessário para a superação. O silêncio nunca é uma boa alternativa. As Boas Intenções é um documentário oportuno e possivelmente uma nova modalidade de filmes possa surgir dessa proposta.

  • Para ver os horários de exibição do filme, acesse o site da Mostra

  • Informações sobre ingressos, pacotes e permanentes, acesse aqui.

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Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
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