A história da literatura brasileira está repleta de mulheres que merecem ser celebradas, resgatadas e apresentadas a novos públicos. Notáveis escritoras que conseguiram edificar obras relevantes, apesar dos fortes ventos desagregadores do patriarcado. A poeta Cora Coralina, nascida Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, é certamente uma dessas figuras.
Se o documentário Cora Coralina – todas as vidas, dirigido por Renato Barbieri, tem o mérito de recuperar a trajetória e a lírica da autora, ele falha em construir a narrativa plural que o título sugere. Sua malograda tentativa de invenção mescla de forma bastante literal depoimentos de pesquisadores, amigos e familiares da escritora a imagens de arquivo, encenações curtas e declamações de poemas.
Os trechos de encenação, ainda que apresentem alguma beleza imagética, ficam muito aquém da força poética a que se propõem. Já as declamações, a maioria das quais em voz over ou em muitos e algo repetitivos planos médios de diferentes atrizes, todas encarando a câmera, vestidas de preto contra o fundo de mesma cor, apesar de corretas, carecem de vigor, à exceção de alguns momentos inspirados de Camila Márdila e Beth Goulart.
De fato, não raro as intérpretes cedem a uma leitura de compasso sempre idêntico que subestima o valor da pausa e da respiração, o que evidencia também um problema de direção. À Tereza Seiblitz é dado declamar movimentando-se por outros cenários em cenas mais dinâmicas, ainda que seu por vezes diáfano (e deslocado) figurino teime em distrair a atenção dos poemas.
O elemento mais interessante em jogo é a forma como o diretor escolhe trabalhar as imagens de arquivo, que surgem amiúde projetadas na conhecida Casa Velha da Ponte, em que viveu a autora, e que se transforma num personagem importante, deixando entrever as memórias que conserva entre suas paredes.
O principal problema do documentário, no entanto, não é sua linguagem truncada, mas o excessivo tom apologético e romântico a que ele se entrega. Por um lado, Cora Coralina parece estar próxima da canonização, tamanha a relutância da narrativa a evocar quaisquer contradições ou poréns em sua conduta e seu comportamento. Além disso, pouco se fala das influências ou da formação da autora, que parece ter nascido, pena em mãos, pronta para a poesia.
Ainda mais grave é a reiterada romantização das diversas opressões que subjugaram Cora ao longo de sua vida. Quando um entrevistado cita brevemente o fato de que o marido da escritora não permitia que ela publicasse literatura num jornal local, motivo pelo qual ela se dedicava a textos políticos ou ambientais, esse dado é completamente dispensado pela narrativa sem qualquer tentativa de aprofundamento.
Por outro lado, a situação financeira bastante vacilante da poeta, que a obrigava a vender doces mesmo idosa, é lida pelo viés do valor redentor do trabalho manual e como canal para a emergência da perspectiva das mulheres e dos homens do povo na obra poética – obra que Cora era obrigada a compor à noite, terminada sua jornada como doceira.
A forma como o filme decide ressaltar essa vivência, apontando o que ela eventualmente acrescentou à literatura da autora, nos leva a perguntar o quanto ela não teria roubado desta mesma literatura. Se Cora publicou pela primeira vez aos 75 anos, após uma vida inteira escrevendo diligentemente, isso se deve claramente à sua condição de mulher (e à sua falta de posses) e não a uma escolha consciente por uma existência supostamente pacata ou de comunhão com a natureza.
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De fato, quando o filme apresenta uma carta de Drummond, em que o poeta consagrado destaca as qualidades literárias da então já idosa escritora a fim de legitimar suas poesias, ele perde pela última (e definitiva) vez a oportunidade de colocar em xeque as relações de poder no universo literário brasileiro.
Assim, Cora Coralina – todas as vidas parece se esquivar das questões verdadeiramente prementes, talvez porque falte ao documentário a coragem que sobra à personagem que tenta retratar, e cuja profundidade lhe escapa.