A premiada série da HBO, Big Little Lies, expõe um problema sério e apresenta uma solução: a irmandade entre mulheres pode ser a grande arma para se enfrentar a violência dos homens. Mas nós precisamos acabar com as mentiras entre nós. [CONTÉM SPOILERS]
É verdade que podemos suportar coisas horríveis apenas por medo de admitir. Em um mundo que trata mulheres que admitem que sofreram violência e buscam reparação com desprezo e muitas vezes, mais violência, não é a toa que tantas de nós demoremos a admitir e vocalizar situações abusivas que acontecem conosco.
Big Little Lies explora este lugar de negação e abuso no seio da sociedade americana progressista e viciada em imagens: Monterey é uma pequena cidade com boa educação infantil no litoral da Califórnia, e a pequena comunidade de pais e alunos frequentadores da escola de alfabetização, Otter Bay, se envolve em caso de assassinato que se revela ao longo dos episódios. Ao mesmo tempo, três mães e seus filhos com segredos familiares nos apresentam a versão feminina da história.
De cara, conhecemos Madeline (Reese Witherspoon), mãe de Chloe, a popular e falastrona voluntária do teatro comunitário que se auto-entitula orgulhosa “mãe fulltime”, fazendo oposição às “mães trabalhadoras”. Seu trabalho de 20 horas semanais, de voluntária no teatro, serve apenas como um hobbie. Madeline, apesar de ser vítima de comentários jocosos e muitas vezes invejosos de outras mães da comunidade, responde tudo à altura e não poupa sinceridade.
Madeline vive um casamento com Ed (Adam Scott), pai de Chloe, e é também mãe da mais velha Abigail, de seu antigo casamento com Nathan (James Tupper). Nathan agora é casado com a estilosa e descolada Bonnie (Zoë Kravitz) e os dois têm Skye, da mesma idade de Chloe, e as duas frequentam as mesma turma na escola. Tudo isso torna a convivência de Madeline com o ex-marido e sua jovem esposa moderna, inevitável. Madeline criou Abigail praticamente sozinha, contando pouco com Nathan, que agora é um dedicado marido para Bonnie. O conflito de Madeline com a nova esposa do ex-marido é marcado pelo rancor que ela sente pelas ausências de Nathan no passado. E como Madeline brilhantemente pontua ao tentar explicar ao marido Ed, “Não é meu amor por Nathan que perdura por 15 anos. É meu ressentimento.”
Reese Witherspoon fez um ótimo trabalho em personificar a dificuldade de Madeline em lidar com os próprios rancores, mas em alguns momentos nos lembra de uma Elle (de “Legalmente Loira“) ligeiramente mais velha.
Apesar da qualidade educacional da região ser exaltada durante o primeiro episódio pelos pais, já no primeiro dia de apresentações, o primeiro conflito entre alunos e pais se estabelece e termina o dia sem resolução.
Jane é a novata contadora de meio período, e portanto “mãe fulltime” na classificação de Madeline. Recém chegada a Monterey, Jane ajuda Madeline no caminho da escola após ela ter torcido o pé. Jane é mãe de Ziggy, um garotinho tímido da mesma idade de Chloe. Madeline se afeiçoa rapidamente à Jane, que assim como seu filho é tímida e de poucas palavras, mas parece se sentir a vontade junto à Madeline.
Jane tem um segredo. A paternidade de Ziggy é um assunto que ela evitou com o filho a vida toda — Ziggy é fruto de um estupro violento. É interessante que mesmo na Califórnia progressista, em que o aborto é legalizado há vários anos, vítimas de estupro ainda enfrentam um tabu para interromperem a gravidez. A narrativa de mães que dão a luz a filhos de seus estupradores é comum mesmo nesses espaços. Percebemos pelas tomadas de corrida de Jane, que se intercalam com um flashback, que a praia em Monterey em que ela mora é a mesma em que ela estava na noite em que o rapaz com quem ela saiu a estuprou. A consciência e memória da noite traumática nos revelam o verdadeiro motivo pelo qual Jane se mudou para cidade: ela quer encontrar e provavelmente matar o pai de Ziggy.
As “pequenas grandes” mentiras que habitam o cotidiano não são previsíveis, nem visíveis sem interpretação ou olhar apurado. A melhor amiga de Madeline, Celeste (Nicole Kidman) é apresentada na tela ao som de Charles Bradley, que canta “I’m a victim of loving you”. Ela tenta aprontar os filhos gêmeos, Josh e Max, para o dia de apresentações na escola, e precisa de ajuda do marido que divertidamente entra na brincadeira dos meninos e assim consegue fazê-los obedecer.
Celeste é uma advogada que largou a profissão para cuidar integralmente dos gêmeos e parece viver uma vida apaixonada ao lado do bonito Perry (Alexander Skarsgard), mas a violência escondida logo se revela ao espectador.
Perry é violento fisicamente por conta de seu comportamento possessivo e transforma frequentemente seu ataque físico em violência sexual contra a esposa. Celeste se recusa a reconhecer o abuso que sofre diariamente e esconde as marcas em seu corpo dos filhos e até de sua melhor amiga Madeline, que ignora completamente o comportamento de Perry.
A hipocrisia da comunidade é revelada por meio da montagem dos depoimentos para a polícia após o assassinato, intercalados com o enredo principal, exibindo as contradições dos vizinhos da comunidade, que julgam a vida de Madeline e suas amigas. Ao mesmo tempo, os julgamentos demonstram uma total ignorância da verdade dos acontecimentos do dia-a-dia dessas mulheres, que levaram até o crime que está sendo investigado. Existem duas histórias paralelas: a das aparências e a verdadeira.
Já no primeiro dia de apresentações da escola, acusam o filho de Jane de ter agredido Amabella, a filha de Renata (Laura Dern), a “mãe trabalhadora”. Ziggy, o garotinho tímido, retruca que não foi o culpado, mas ele e a mãe novata não recebem muito crédito além de Madeline e Celeste. A inimizade entre as três “mães fulltime” – com Renata e as outras mães trabalhadores da comunidade – vai escalando ao longo da temporada.
Renata é uma CEO de uma empresa que antipatiza com Madeline, mas sofre por não fazer parte do grupo — ela sabe como as mães trabalhadoras são mal vistas nessa comunidade cheia de regras. Ela acusa Ziggy de ser o causador dos machucados da filha por um desespero ignorante de resolver o problema, mas é empática à Jane quando as duas têm finalmente a chance de serem honestas sobre a situação complicada em que se encontram: de fato, Jane leva Ziggy a uma psicóloga que atesta que ele não tem perfil de criança que pratica bullying, talvez o contrário, Ziggy seja alvo de bullying na nova escola.
A paternidade violenta contrasta com o comportamento gentil e carinhoso do garoto, mas ainda é uma questão de preocupação para Jane que angustia Ziggy ao não conversar sobre o paradeiro de seu pai.
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É o conflito entre as mães fulltime e as mães trabalhadoras que possibilita que as três grandes mentiras a que a série se refere venham à tona, e o desenvolvimento das personagens em direção à mudança aconteça: seja por meio da expressão vocal da verdade, da busca por reparação ou de uma libertação completa. O conflito se desenvolve com o enfrentamento e a compreensão de mulher para mulher que parece muito natural frente às vulnerabilidades partilhadas. A diferença entre as mães parece se desfazer frente à semelhança do medo que todas sentem da violência misógina.
Bonnie é uma figura apaziguadora, apesar da inimizade de Madeline, e se mostra preocupada com Abigail e com a boa relação entre as famílias e tenta sempre aliviar a barra de um Nathan desagradável. A jovialidade, o trabalho e o carinho de Nathan dedicado à Bonnie incomodam Madelin, mas não impedem Bonnie de tentar uma boa convivência. Bonnie é meio óbvia em sua pós-modernidade, sendo suscetível a relativizar com adjetivos até as atitudes mais estapafúrdias.
As crianças, em meio a situação de bullying entre elas, agem de forma bastante verossímil na narrativa: mentem quando pressionadas, escondem fatos quando sob ameaça dos iguais, protegem os amigos, revelam a verdade quando se sentem em segurança. E diferente dos adultos, se resolvem de outra maneira e se comunicam de outra forma. Ziggy e Amabella se tornam amigos, mas não revelam o que acontece com a menina que continua a aparecer com marcas. Chloe e Skye gostam de ser meia-irmãs, apesar de Madeline ter dificuldades com Bonnie. Os gêmeos de Celeste também dizem gostar de Ziggy.
Os silêncios e as quebras de ação, intercaladas com as projeções das personagens, oferecem um mergulho interno no emocional dessas mulheres, em que o medo da violência se revela por meio da memória. A forma de ressurgir, entretanto, é formando laços. Como sugere a terapeuta de Celeste, a confissão e a testemunha são imprescindíveis. Mas até mesmo com pessoas próximas em quem confiamos, certos pequenos grandes segredos são difíceis de revelar. Mas nós temos que falar.
É dessa mesma forma que Celeste pede para o filho revelar finalmente o que ele anda fazendo na escola, depois de um longo abraço. Jane descobre por meio de Ziggy que o verdadeiro agressor de Amabella é Max, um dos gêmeos de Celeste, que sem surpresas começa a emular o comportamento do pai com outras meninas da sua idade. Nesse processo de revelação, Jane conta a Celeste que percebe que sua negação quanto ao comportamento do marido afeta os filhos, chegou a um limite. O ciclo de violência precisa se romper, e só se rompe com amor e confiança para que a verdade se manifeste.
E é no grande baile temático beneficente da escola, em que todos os pais devem ir fantasiados de Elvis Presley ou Audrey Hepburn que a verdade não consegue se conter nas amarras das aparências. Perry descobre os planos de Celeste de alugar um novo apartamento para ela e os gêmeos, tornando sua agressão uma questão iminente.
Apesar da grande parceria entre Madeline, Celeste e Jane, é apenas quando as três quebram as barreiras da inimizade com Bonnie e Renata, que os segredos podem ser revelados e as cinco juntas podem lutar contra a violência do mesmo lado, onde um segredo maior entre as cinco pode ser partilhado. Há uma semelhança que une as mães trabalhadoras e as inteiramente dedicadas que vale a pena valorizar: é a mensagem final da primeira temporada de Big Little Lies. É por meio dessa união que elas sobrevivem.