[SÉRIES] Alias Grace: A loucura e a violência na experiência de ser mulher

[SÉRIES] Alias Grace: A loucura e a violência na experiência de ser mulher

Depois da temporada espetacular de The Handmaid’s Tale, a estreia de Alias Grace era aguardada com expectativa alta. A série é baseada no romance homônimo de Margaret Atwood, escritora canadense reconhecida por sua literatura de crítica feminista. Transmitida no Brasil pela Netflix, foi adaptada por Sarah Polley e dirigida por Mary Harron (Psicopata Americano). E da mesma forma que a série predecessora, entretém com seu enredo e suas reflexões. [Contém spoilers]

A verdade por trás da criminosa

Grace Marks (Sarah Gadon) passou 15 anos na cadeia, acusada de assassinato. Alguns desses anos foram marcados por sua passagem em uma manicômio e pela tortura. Todavia, foi igualmente violenta a sua relação com homens do passado. E agora um novo homem surge em sua vida para tentar descobrir o que ninguém mais consegue. Seria Grace louca? Seria Grace uma assassina perspicaz? Seria Grace uma inocente e ingênua mulher? Ou seria Grace uma mulher violentada pela realidade de ser mulher?

A história é baseada em um crime verídico ocorrido no Canadá em 1843. Aos fatos reais se acrescenta a introdução do personagem fictício Dr. Simon Jordan (Edward Holcroft). Jordan acredita que pode decifrar Grace através seus sonhos e seus pensamentos. Acaba, porém, perdido em sua própria psicologia. E, ao fim, não sabe discernir entre a sinceridade de Grace e a manipulação em resposta à sua pretensão violenta. Afinal, como a personagem fala, Jordan parece “querer abrir seu corpo” para descobrir seus segredos. E ignora, assim, a individualidade de uma mulher.

Alias Grace

Através de encontros diários, Grace tem a oportunidade de narrar a sua história. O espectador, então, é hipnotizado pelas mentiras e verdades de um discurso dúbio. A narrativa de Grace é uma escolha de palavras. Depois de ter sua fala desconsiderada e distorcida por tantos indivíduos, homens sobretudo, Grace finalmente tem o controle da situação. E inverte os papéis de avaliado e avaliador. Arrasta Jordan para um jogo em que ela tem uma parcela de poder.

Assédio durante a vida feminina

Quando jovem, Grace e sua família se mudaram da Irlanda para o Canadá. A vida em um país distinto tornou-se ainda mais árdua após a morte da mãe – a primeira de muitas na vida da protagonista. Sem a sua genitora, ela se tornou o principal alvo da violência do pai. Sofreu constante violência física e, inclusive, assédio. Até que foi obrigada por ele a trabalhar. Embora a intenção de seu pai fosse reter o dinheiro ganho, Grace aproveita a oportunidade para se libertar dele.

Após se mudar para a casa de seus patrões, Grace torna-se amiga de Mary Whitney (Rebecca Liddiard). Mary possui a vivacidade que Grace gostaria de possuir e torna-se um exemplo para a jovem. É ela que auxilia Grace após a primeira menstruação. É, também, quem explica a Grace os perigos de ser mulher. Afinal, mulheres andando sozinha à noite estão sujeitas à violência dos homens.

Alias Grace

Mulheres que morrem por serem mulheres

Apesar de toda a sua experiência, Mary perece pela sociedade. Depois de conhecer a violência e o assédio, Grace descobre o abandono e o aborto. Mary engravida de um homem rico que lhe havia falsamente prometido casamento. Ao saber da gravidez, o homem, que tem a última palavra nos julgamentos, dá-lhe 5 dólares e nada mais. De um lado, tem-se a palavra de uma mulher solteira, empregada e grávida. De outro, a palavra de um homem rico. Qual a perspectiva teria uma jovem nessa situação? É assim que Mary decide fazer um aborto, vindo a falecer por uma hemorragia.

Duas mulheres e duas mortes violentas assombram Grace, que se culpa por não ter libertado as suas almas. Grace não abriu, a tempo, as janelas para que as almas partissem. Mas talvez não estivesse nas mãos de Grace o poder de salvar essas almas diante um mundo material tão violento. E, assim, ela carrega em si a alma daquelas que partiram.

Alias Grace

Relacionamentos distorcidos

A vivência na casa em que trabalha torna-se difícil após a morte de Mary. Não bastasse a dor da perda, Grace torna-se novamente o alvo do assédio. Por essa razão, aceita a proposta da governanta Nancy Montgomery (Anna Paquin) de trabalhar na fazenda do coronel Thomas Kinnear (Paul Gross).

Na fazenda, todos os eventos constituem uma sucessão que levará aos assassinatos. Grace descobre-se, enfim, sozinha no mundo, mesmo quando em companhia de outras pessoas. A rivalidade entre mulheres motivada pelo ciúme afasta-a de Nancy, que receia perder o afeto do Sr. Kinnear para uma mulher mais jovem. De companhia, Grace possui apenas o jovem Jamie Walsh (Stephen Joffe), um ajudante da fazenda vizinha, e James McDermott (Kerr Logan), o agressivo auxiliar de Kinnear. E, com ambos, a solidão permanece.

Alias Grace

Grace desenvolve com Jamie uma relação amigável, a qual será destruída pelos eventos criminosos. O amor nutrido pelo rapaz revela-se, como tantos amores masculinos, dotado de caráter vingativo. A recusa de uma mulher é motivo para a sua acusação, mesmo sem o conhecimento dos fatos. Com McDermott, desenvolve uma estranha relação, a qual culminará em duas mortes. Entre compreensão e violência, Grace vê-se presa a McDermott, que, posteriormente, é condenado à morte.

A insanidade atribuída às mulheres

Não é possível dizer se o que Grace fala é verdade ou mentira. Talvez as mortes tenham sido motivadas pela violência estrutural. Talvez ela seja tão culpada pelas mortes quanto acusam-na de ser. Pode ser que a alegação de amnésia seja mentira, assim como a lembrança dos assédios. Grace absorve os questionamentos realizados pela sociedade, que coloca à prova a sua memória. Talvez todas as mulheres sejam loucas como tentam convencer.

Alias Grace

A violência do herói masculino

Grace expõe não somente a insanidade atribuída às mulheres, mas também a pretensão dos homens de serem os heróis. Homens violentam para homens salvarem, esta é a lógica. Jordan, assim como outros médicos, acreditava ser capaz de ver em Grace o que ela não era capaz de ver. Mas Grace via mais de si do que se disponibilizavam a enxergar. Via as possibilidades de mentira e as restrições de fala, enquanto os homens falavam por ela. Grace enxergava, também, o prazer dos homens através de seu sofrimento. Uns se apraziam causando sofrimento; outros se apraziam na crença de que podiam curá-lo com seu afeto.

No fim, eram todos igualmente violentos. O médico de boas intenções mostra-se um homem como todos os outros. O anseio do sucesso masculino é mascarado por um falso altruísmo. Jordan objetifica e humilha as mulheres em sua ilusão de superioridade. E perece após fracassar com Grace.

Alias Grace

Diversas perspectivas sobre o silenciamento

Ela ainda tenta explicar a Jordan a sua história sobre ser mulher mesmo depois de anos. Seus segredos, contudo, permanecem guardados. É impossível ter certeza do que aconteceu. Aqueles que só se contentam com a racionalidade encontram a lacuna da vida. Pela perspectiva espiritual, existe a possibilidade de que Grace fosse possuída pelo espírito de Mary. Pela científica, que tivesse dupla personalidade. Havia, porém, uma outra possibilidade, mais simples, mas mais difícil de ser aceita. Grace podia ser apenas uma mulher que nunca foi ouvida, tentando finalmente dar vida à parte de si que foi assassinada junto a tantas mulheres, à parte de si violentada e silenciada por tantos homens, àquela vontade de reação das mulheres pelo pseudônimo – alias – Grace.

Os anos passam para a protagonista, que permanece na prisão após frustrar as expectativas de Jordan. Quando o perdão lhe é concedido, um conhecido retorna com um pedido de casamento. Apesar das mágoas do passado, ela aceita, talvez por não ver outras alternativas. E sua vida é transportada para o bordado de uma colcha de casamento. Nela coloca os retalhos do sofrimento de três mulheres, todas unidas pelas diversas formas de violência, todas almas que não conseguiram se libertar.

Alias Grace não é tão impactante quanto The Handmaid’s Tale. Não possui teorias sobre a sociedade, embora ainda apresente questões de política. Todavia, prende e agrada. Com seis episódios, pode ser vista rapidamente. É sutil em suas reflexões, dotada de metáforas bem exploradas. As atuações não deixam a desejar e conseguem exprimir a dor disfarçada pela agressividade, pela ingenuidade e pela loucura. Consegue conectar reflexões sobre uma estrutura social de opressão através de uma adaptação bem construída. E explora os problemas atemporais de ser mulher em suas diversas facetas.

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https://youtu.be/7YuAd66imOQ


Alias GraceAlias Grace

Margaret Atwood

Editora Rocco

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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