Bom Dia, Verônica: machismo e violência visceral

Bom Dia, Verônica: machismo e violência visceral

Bom dia, Verônica é uma obra ímpar e também marca um começo promissor. Mas é impossível falar da obra sem antes contextualizar algumas coisas. A principal delas: a autora.

A AUTORA

Andrea Killmore é um pseudônimo. Assim como a italiana Elena Ferrante, a verdadeira identidade da autora permanece um mistério. Mistério que começa mesmo antes do lançamento do livro: Nem mesmo a editora DarkSide Books sabe quem é de fato a autora e todo o contato necessário é feito por intermédio de um advogado.

Andrea, como cita em uma entrevista publicada recentemente pela DarkSide, usa o pseudônimo para se proteger. Muito provavelmente ela se encontra em algum programa de proteção a testemunhas ou algo do tipo e qualquer revelação sobre sua verdadeira identidade pode pôr sua vida em risco. Por ter sido uma policial, ela é totalmente familiarizada com o dia a dia de um escritório da polícia civil, e a riqueza de detalhes e rotinas estão presentes na obra.

[AVISO DE GATILHO: VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER]

Bom dia, Verônica

A OBRA

“Em Bom dia, Verônica, acompanhamos a secretária da polícia Verônica Torres, que, na mesma semana, presencia de forma chocante o suicídio de uma jovem e recebe uma ligação anônima de uma mulher desesperada clamando por sua vida. Com sua habilidade e sua determinação, ela vê a oportunidade que sempre quis para mostrar sua competência investigativa e decide mergulhar sozinha nos dois casos.

No entanto, essas investigações teoricamente simples se tornam verdadeiros redemoinhos e colocam Verônica diante do lado mais sombrio do homem, em que um mundo perverso e irreal precisa ser confrontado. ”

Sinopse oficial da DarkSide

Antes de falarmos sobre a história em si, mais uma pequena contextualização: Bom dia, Verônica é literatura detetivesca, Pulp e com algum ar Noir. Mas se outrora esses adjetivos significavam literatura barata, de baixa qualidade, verborrágica e absurda, hoje isso implica uma estética: narrativa rápida, geralmente com um anti-herói como protagonista, muitas cenas de ação e trechos sombrios em que podemos entrar na cabeça do personagem e entender seus motivos e sensações.

Verônica é uma anti-heroína clássica. Não é sempre honesta. Usa as pessoas e muitas vezes pensa mais em si mesma e vê tudo o mais como um peso, um empecilho para que atinja seus objetivos. Por isso talvez seja tão difícil simpatizar com ela de cara. Mesmo ao longo do texto, não chegamos a torcer por Verônica em si – torcemos para que tudo acabe bem de um modo geral. O fato da maior parte do livro ser narrado em primeira pessoa por Verônica não contribui em nada para a construção de empatia.

Como a sinopse deixa claro, o livro é sobre violência contra a mulher. Há duas investigações paralelas: A primeira é sobre um necrófilo que abusa de mulheres até que elas se matem e depois faz sexo com elas e um serial killer que mata mulheres solitárias que vêm de fora em busca de oportunidades na grande São Paulo. Se são duas tramas separadas ou se elas têm algo em comum é algo que não será dito aqui. Vamos deixar essa curiosidade para as leitoras!

Verônica denuncia machismo e vê isso em todos os cantos. Seja em olhares, em frases aparentemente inofensivas ou nas relações do dia a dia. Em um ambiente majoritariamente masculino (uma delegacia de polícia), ela é uma escrivã invisível. Invisível por ter um trabalho de menor importância, invisível por ser mulher. Ela geralmente não tem muita paciência com ninguém e acaba criticando a todos com quem interage. O chefe, o marido, os filhos e até mesmo, em algumas vezes, as vítimas. Ninguém escapa do rancor e impaciência de Verônica.

Bom dia, Verônica

Mesmo não sendo parte de seu serviço, ela decide investigar os dois casos por conta própria, contando apenas com a ajuda de Nelson, colega de trabalho com quem também trai o marido há algum tempo. Daí a trama se desenrola em uma série de desventuras. Como quem já leu sabe o desfecho e quem não leu precisa ler e descobrir por si, abaixo separamos alguns pontos positivos e negativos sobre Bom dia, Verônica.

Pontos Positivos

  1. Toda a obra, ao mostrar de maneira brutal, detalhista e gráfica a violência contra mulheres, choca e chama a atenção. Pensar que casos semelhantes ocorrem diariamente por todo o país chega a causar enjoo. Os dois assassinos têm cargos de respeito e poder (um é médico, o outro, policial militar) e estão acima de qualquer suspeita. Assim como muitos homens reais.
  2. Outro enorme ponto positivo é a ambientação em São Paulo. É uma delícia poder reconhecer os lugares, como nomes de ruas, avenidas e tal. Isso torna a história mais realista e intimista.
  3. A leitura fluida, rápida e que vai direto ao ponto também é algo ótimo. Ao fim de cada capítulo curto, é difícil não passar para o próximo.
  4. Apesar da possível falta de empatia, outro ponto a favor é a protagonista. Verônica está longe de ser perfeita: como mãe, esposa, amante ou profissional. Ela tem falhas, sentimentos conflituosos e dúvidas. Como todo ser humano.
  5. Janete, esposa do PM assassino, é uma personagem magnificamente construída. Você já se perguntou por que algumas mulheres que sofrem com a violência doméstica por anos não denunciam os maridos? Não fogem de casa ou não chamam a polícia? Janete é um exemplo doloroso que ilustra bem esses motivos.

Pontos Negativos

  • Há alguns mínimos problemas em Bom dia, Verônica. Primeiramente, de ordem estrutural/narrativa. Os dois filhos de Verônica e Paulo aparecem pouquíssimas vezes. Quase nunca estão em casa e sempre que há alguma cena em casa, estão ausentes ou alheios.
  • Outro problema é que Verônica trai o marido e acha isso normal, pois como a mesma diz, sexo e afeto são coisas diferentes. Até aí, tudo bem. Mas quando ela descobre que o marido também a traía, chama a “outra” de vaca, piranha e até a culpa por “desestruturar” a família. Isso ficou estranho para uma mulher que passa toda a história tentando ajudar outras mulheres e que denuncia o machismo. Porém, não chega a ser um ponto negativo, uma vez que atende à premissa da personagem – lembremos: Verônica é uma anti-heroína.
  • Uma coisa que pode incomodar bastante é o exaustivo uso de nomes de marcas e apps. Honda, Corsa, Tinder, Facebook, Instagram e Waze (esse é usado tantas vezes que realmente dá a impressão de propaganda). Mas isso pode não incomodar a todas leitoras, uma vez que a inserção desses nomes tão conhecidos amplifica o tom realista da obra.
  • Por último, há algumas partes muito estranhas, bizarras mesmo e que causam desconforto. Verônica sente um misto de nojo e excitação (como assim?) ao ver um vídeo do necrófilo fazendo sexo com um cadáver. Janete fica excitada (oi !?) ao presenciar uma mulher ser estripada e estuprada em sua frente. Em outra cena, o marido de Janete começa a estuprá-la, após espancá-la. E ela se rende ao “prazer”. (Oi? Estupro não é sexo!) Isso acontece mais de uma vez.

Conclusão

É uma obra visceral, gráfica e detalhista, com partes bizarras e explícitas além da conta. Pode desagradar muitas leitoras pelo alto teor de violência. Mas, de modo geral, é uma ótima obra detetivesca e uma incrível estreia de Andrea Killmore. Com certeza a autora ainda tem muito a evoluir, literariamente falando, mas para um debut não deixa nada a desejar. A história funciona e cumpre bem seu papel.

Como cita a DarkSide na entrevista com Killmore, “Bom dia, Verônica acaba, mas não termina. ” Ou seja, o final é aberto. Sobre a possibilidade de uma continuação, ficamos com as palavras da própria autora: “Já tenho tudo na minha cabeça. É só a DarkSide me chamar!”

P.S.: Como em todo livro lançado pela DarkSide, falar da qualidade é chover no molhado. Capa dura, marcador de fita, ilustrações e parte gráfica caprichadíssimas. E em Bom dia, Verônica, a editora realmente mostrou seu lado negro e assustador ao enviar o livro em um saco preto, como os usados para empacotar cadáveres no IML, e mais: uma caixa com meu nome. Uma caixa de “madeira” com furinhos… Medo.

Bom dia, Verônica


Bom Dia, Verônica

Andrea Killmore 

Darkside Books

256 páginas

Onde comprar: Amazon

Esse livro foi cedido pela editora para resenha.

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Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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