O enterro das minhas ex, da autora e ilustradora francesa Anne-Charlotte Gautier – que assina seus trabalhos apenas como Gauthier –, é uma graphic novel publicada em 2015 pela editora francesa 6 Pieds Sous Terre e que ganhou uma edição brasileira em 2016 pela editora Nemo. Vale a pena mencionar que esse é o segundo trabalho publicado pela autora. O primeiro, Peau de lapin (Pele de coelho) e o terceiro, Justin, ainda estão inéditos no Brasil. Em comum, todos os trabalhos de Gauthier têm a coragem de lidar com temas difíceis: a violência na infância, a descoberta da sexualidade e de sua identidade de gênero.
Em O enterro das minhas ex, a primeira coisa que chama atenção é o aspecto visual. O trabalho gráfico é muito interessante! O traço é limpo, mais estilizado, complementado lindamente com a paleta de cores mais “enxuta”, que inclui somente o preto, o azul e o cinza. Além disso, os recursos gráficos, como páginas “vazias”, ilustrações que ocupam todo o corpo da página, os balões e a própria tipografia contribuem muito com a narrativa, criando continuidades e rupturas que enchem de sutilezas essa história tão melancólica.
O centro da narrativa é a descoberta do amor e da sexualidade pela protagonista, Charlotte, e, consequentemente, as decepções que normalmente acompanham esse processo. No caso dessa personagem, um detalhe acaba complicando – e muito! – essa experiência que, por si só, já costuma ser suficientemente dolorosa: Charlotte é lésbica. Já na sinopse, fica bem claro que a tomada de consciência de Charlotte sobre sua sexualidade não será nem um pouco pacífica.
Algo não vai bem na vida de Charlotte. Na escola, ela se sente diferente das garotas de sua idade, e mesmo com o passar dos anos a incompreensão sobre si mesma persiste. Em sua cabeça, amor e amizade se confundem. Nesta delicada e comovente narrativa gráfica, Charlotte relembra seus relacionamentos com outras garotas, desde as paixonites da infância até o início da vida adulta. Com suas vivências, ela passa a se compreender melhor e a desbravar um mundo desconhecido, cheio de intolerância, arrogância e rejeição, mas também repleto de liberdade.
A partir daí, a história se organiza em torno de uma espécie de “acerto de contas” de Charlotte com todas as suas ex, desde as paixões platônicas da infância, como a Srta. Bonn, sua professora na escola primária, até os seus interesses amorosos da adolescência. Para revisitar o histórico amoroso da protagonista, o quadrinho é dividido em três partes: os Anos Iniciais, que vai de 1987 à 1991, os Anos Finais, de 1991 à 1995 – que correspondem ao Ensino Fundamental, na França, país onde vive a personagem – e Ensino Médio, de 1995 a 1999. Em cada uma dessas partes, somos apresentadas às garotas que foram fundamentais na aprendizagem afetiva de Charlotte, desde o momento em que elas se conhecem até os desfechos, mais ou menos bruscos, de suas histórias.
[A partir daqui, a resenha vai mencionar alguns detalhes da narrativa. Se não quiser ler spoilers, é melhor voltar a esse texto só depois de ter lido o quadrinho.]
Por retratar a descoberta amorosa de Charlotte, a autora não poderia deixar de fora alguns discussões bem difíceis, como o machismo, a lesbofobia e o bullying. Esses três tópicos, apesar de não deixarem o quadrinho necessariamente pesado, são uma parte indissociável das experiências da personagem. Em diversos momentos, a protagonista se interessa por garotas que, de alguma forma, não se adequam ao padrão socialmente esperado de feminilidade: Stéphanie, um de seus primeiros crushs, ainda na sua infância, gosta de brincar com os meninos, andar de skate, subir em árvores e lutar judô. A reação das amigas de Charlotte, diante desse comportamento pouco desejável em uma garota, é a rejeição. Afinal, garotas devem fazer coisas de garotas e garotos devem fazer coisas de garoto… Não é isso que, no geral, escutamos desde crianças?
Apesar das reações negativas das amigas, a não-conformidade de Stéphanie inspira Charlotte, que a toma como modelo e passa a se vestir como ela. O resultado dessa admiração não é surpreendente: assim como Stéphanie, Charlotte também foi rejeitada pelas amigas. Pela primeira, ela será insultada em razão de sua sexualidade, que ela própria, nessa altura, ainda não havia compreendido. O peso simbólico dessa violência – e das próximas que a personagem irá sofrer – é tratado com muito cuidado e com muita sutileza pela quadrinista.
As palavras “sapatão” e “lésbica” aparecem várias vezes na boca das personagens que convivem com Charlotte, sempre denotando um insulto pesado, sempre acompanhadas de uma expressão facial de nojo, de ódio, de rejeição. Para Sophie, contraparte na “amizade” no início da adolescência, a palavra “homossexualidade” foi a senha para a ruptura, para a incompreensão e, mais tarde, para o rancor.
Mais tarde, já no ensino médio, durante o seu relacionamento com Sandrine, é novamente a lesbofobia a grande responsável pelo coração partido de Charlotte. Durante uma viagem, ao tentar conversar com Sandrine sobre como se sentia, elas têm uma conversa bastante dura:
Eu sentia necessidade de falar com Sandrine, de parar de fazer de conta que não estava acontecendo nada.
Charlotte: Eh… Sandrine… Eu…Hmmm. Como dizer… Sabe… Nós duas…
Sandrine: Vou te contar uma coisa: minha tia Annie parece legal, né? Pois não se iluda! Ela é SAPATÃO! Uma verdadeira lésbica!!! [baforada no cigarro, expressão de desgosto] É NOJENTO!
Nesse momento, Charlotte já parece ter certeza de como se sente em relação à sua sexualidade. Ela sabe que é lésbica e parece não mais misturar amizade e amor. Ela, inclusive, em certo momento, decide pedir à garota com quem está saindo em namoro. O problema já não é mais uma questão íntima de Charlotte, mas uma questão estrutural, de apagamento e de rejeição da existência lésbica.
O enterro das minhas ex é um excelente quadrinho para mostrar o quão nociva pode ser a falta de representatividade. Desde criança, Charlotte não parece conhecer nada a respeito da comunidade LGBT: nenhuma representação nos programas de TV a que assiste ou nos livros que lê. As relações heterossexuais parecem ser o único modelo de relacionamento que conhecia. Podemos nos perguntar se, por exemplo, em algum desenho animado que Charlotte assistia quando criança tivesse um casal de garotas (ou mesmo de garotos), teria sido tão mais difícil para ela compreender a própria sexualidade. Acreditando no poder da ficção de explicar certas coisas que não parecem ser tão claras no plano concreto de nossa existência, temos uma tendência a dizer que não…
Nesse sentido, O enterro das minhas ex não é só um passatempo agradável, mas também uma leitura que pode, de alguma forma, ajudar as pessoas a compreender aquilo que elas não entendem (e, talvez por isso, tenham preconceito). Talvez, sendo um pouco otimista, esse tipo de quadrinho possa, junto com outros materiais como livros, músicas, filmes, séries, desenhos animados, documentários, construir uma outra narrativa, na qual ser lésbica já não seja mais uma questão para a nossa sociedade tão heteronormativa.
Sobre a autora
Formada na Escola de Artes Decorativas de Strasbourg, Anne Charlotte-Gautier trabalha como ilustradora para a imprensa e também para livros de literatura infanto-juvenil. Em paralelo, ela mantém diversos projetos autorais, de quadrinhos e de ilustração. Seus trabalhos foram publicados pelas editoras francesas Misma, 6 pieds sous terre e Delcourt. É possível de acompanhar o trabalho dela em sua página oficial e também no tumblr.
Em entrevista para a Jeanne Magazine, Gauthier conta que criou O enterro das minhas ex pois é um tema com o qual ela própria se identifica. O quadrinho, descrito como uma autoficção, tem muito da experiência da própria quadrinista, de certas passagens de sua vida que ela gostaria de compartilhar com seus leitores. Além disso, ela explica que criou uma história que ela mesma gostaria de ter lido, com a qual ela poderia ter se identificado, durante a sua adolescência.
O Enterro das Minhas Ex
Autora: Gauthier
Obra cedida pela editora para resenha
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