[LIVROS] Ultra Carnem: o que há amedronta mais que a humanidade (resenha)

[LIVROS] Ultra Carnem: o que há amedronta mais que a humanidade (resenha)

Nas sagas de terror, nada mais comum que a referência às forças infernais. Mas será que é preciso ir ao mitológico reino inferior para encontrar inspiração para o medo? Cesar Bravo mostra, em Ultra Carnem, que o terror está na própria humanidade. Os pesadelos humanos são construídos por sentimentos não menos humanos. Refere-se, sim, à mitologia infernal sobrenatural. No entanto, coloca os seres humanos como os responsáveis pela maldade que nela existe.

O livro nacional publicado pela DarkSide Books é divido em quatro partes. Ainda que não seja uma coletânea de conto, apresenta quatro histórias com protagonistas distintos. Todas se conectam pelo pacto realizado entre o Diabo e um menino cigano e ocorrem em uma sucessão de tempo. Ambientado quase inteiramente na cidade paulista de Três Rios, o autor apresenta diferentes perspectivas da maldade humana nos tempos contemporâneos.

Os terrores do mundo

Tudo começa com Wladimir Lester. O menino cigano é abandonado por seu povo em um orfanato católico. A superstição afirmava que ele havia feito um pacto com o diabo. Mas ninguém sobreviveu para contar sua história. No orfanato, Lester utiliza sua tinta especial para pintar. Suas aterrorizantes, mas impecáveis, telas servem ao sustento da instituição. Sustentam, inclusive, os meninos que agridem e zombam de Lester. Mas ele tem preocupações maiores do que o tormento de crianças tolas. O problema surge apenas quando seus bens mais preciosos são atacados: uma estátua da ciganinha e uma figura de sua mãe. E destinos terríveis encontram aqueles que cruzam o caminho de Wladimir Lester.

Anos mais tarde o talentoso Nôa encabeça uma busca pela tinta perdida de Lester. Abandona sua vida em busca do instrumento da perfeição. Sua ganância o conduz em uma jornada em direção ao Diabo, a quem tenta enganar. Mas ninguém brinca com Lúcifer.

Ultra Carnem

Quando os bens de Lester são recuperados e passados aos seus descendentes, surge um candidato ao Inferno. O técnico de computadores Marcos tem a oportunidade de realizar todos os seus desejos. Todavia, nem todos são inocentes. Ao formular seu pedido, torna reais os mais pérfidos sonhos. Uma série de crimes amedrontam a cidade de Três Rios. De algum modo, todos parecem conectados ao pedido realizado.

Embora Marcos preste um serviço exemplar ao inferno, Lúcifer ainda precisa recuperar algo de seu pacto com Lester. Para tanto, recruta Lucrécia. Lucrécia já sofreu o suficiente na vida para não se aliar às forças de Deus. Mas será que sua dor é força suficiente para conseguir o que o Diabo procura?

Os males do preconceito ou uma questão de linguagem

Ultra Carnem prende mais em algumas histórias do que em outras. Ainda assim, destaca-se por construir uma história de terror em terras brasileiras e que denuncie o terror cotidiano da humanidade. No primeira parte, o mal causado a Lester, do mesmo modo que o preconceito para com os ciganos, sobrepõe a conduta de Lester. A reação de Lester é recriminável, mas as condutas anteriores reproduzem a tendência huamana de condenar pessoas com culturas diferentes e de punir os outros para o prazer próprio.

No tocante a isto, a intenção é clara, mas o mesmo não ocorre com todas as passagens do livro. Ao fim da história resta o questionamento se a linguagem utilizada pelo autor em diversas passagens foram propositais à evidenciação dos males humanos ou estereótipos preconceituosos que passaram despercebidos.

Em ao menos dois contos, faz-se excessiva e repetitiva referência negativa aos gordos. A criança que pratica bullying é referida como a criança gorda, embora tenha um nome. A esposa de Marcos é considerada ruim por ser gorda. Este é também o motivo para o desrespeito e desprezo de Marcos.

Assim também é o que ocorre com a característica de ser cigano. E, mais sutilmente, com os negros, pois o único personagem especificamente negro é a personificação do mal. A ausência de contraposição a essas condutas deixa a dúvida ao fim da história. Pelo objetivo de construir um terror com pesadelos humanos, pode-se acreditar que a linguagem foi utilizada como denúncia. No entanto, não raras as vezes, obras pretendem algo através de uma linguagem contraditória. Em uma sociedade e em um gênero em que clichês preconceituosos ainda são reproduzidos, talvez seja mais positivo apresentar de forma clara a crítica, ainda que em um texto à parte.

Representação feminina – ou a ausência dela

O mesmo ocorre no que concerne à representação feminina. No gênero de terror, é comum que a mulher seja estereotipada como tola e fraca, subutilizada como vítima e sexualizada. Ultra Carnem não foge à tendência, embora se esforce para inserir a violência contra a mulher entre os pesadelos mundanos.

Apenas a última história apresenta uma protagonista feminina. Todavia, para ganhar destaque, a personagem precisou sofrer abuso paterno, estupro e aborto. A única personagem feminina de destaque, que não se coloca como um obstáculo a um protagonista masculino ou serve unicamente ao propósito de erotização. Não surpreende que a violência contra a mulher seja utilizada no entretenimento pelas mãos masculinas, ainda que em um entretenimento que vise denunciar as atitude aterrorizantes dos seres humanos. Para abordar o terror da misoginia é necessário criticar, expor realmente como um mal, e não apenas reduzir uma mulher ao mal de um homem. Não obstante, coloca-a como digna do inferno pelo aborto do feto de um estupro. Por fim, a única personagem feminina com quem interage afirma que merece a violência de “demônios tarados”, porque “todo mundo merece o que recebe”.

Nas demais histórias, as mulheres são reduzidas a papéis coadjuvantes. Ora são mulheres, gordas ou magras, que incomodam a vida de um homem – e, em geral, as reclamações são justificadas pelo período menstrual. Ora são mulheres unicamente utilizadas para condutas sexualizadas – e seus corpos ou suas atitudes lascivas são as únicas menções.

Os novos rumos do terror

Há algum tempo algumas produções de terror tentam inserir condutas humanas opressivas como o verdadeiro mal. A abordagem é interessante, na medida em que a realidade é realmente assustadora para alguns indivíduos e, principalmente, para alguns grupos. No entanto, ainda é preciso percorrer um longo caminho entre uma abordagem que serve somente a entretenimento dos que não são oprimidos e uma abordagem que realmente discuta os problemas.

Ultra Carnem une o entretenimento do terror nacional a uma leve denúncia das atrocidades humanas. Expõe a ganância humana. Aborda os desejos pérfidos e misóginos, que culminam em estupros e assassinatos na prepotência de homens que pretendem possuir mulheres violentamente. No entanto, ainda não se pode dizer que consegue realizar esta denúncia sem contradições. A visão masculinizada do feminino ainda preenche as páginas, em um confusão entre terrores humanos e entretenimento misógino.

A linguagem utilizada para chocar não é oposta a uma verdadeira denúncia, de modo que não se sabe o que é um apontamento da violência ou o que é preconceito enraizado. Infelizmente, o gênero vem carregado de estereótipos. Não seria surpreendente, portanto, se as palavras escolhidas fossem utilizadas sem o intuito de discussão. Mesmo que as intenções tenham sido as de denúncia, os resultados não são tão óbvios quanto poderiam ser.

Os seres humanos são seus próprios demônios

Apesar das ressalvas, Ultra Carnem atinge seu propósito. Apesar das menções ao sobrenatural, tem sucesso em demonstrar que o inferno é construído por atitudes humanas. Mescla o clássico do terror sobrenatural com o terror cotidiano. Apresenta descrições do poder maligno infernal, mas também da violência humana.

Não chega a amedrontar pelo que se desconhece. Não é um livro ao estilo Ed e Lorraine Warren ou o Exorcista. As manifestações demoníacas parecem um plano de fundo para o terror material. O medo que causa é diferente, pois é um medo conhecido. É o medo e o choque por práticas humanas às quais todos estão sujeitos. Esse medo pode ser ainda maior, pois é mais visível. Está na casa ao lado. Está nos noticiários. Está na vida de cada um. 

Como gênero de terror, assim, Ultra Carnem apresenta diferenciais. Agrada aos que preferem o terror clássico e as boas referências a uma mitologia já conhecida. Vê-se o esforço do autor em pesquisar acerca do mito para a construção de sua narrativa. Mas também agrada àqueles que enxergam os males humanos como mais amedrontadores. Afinal, o ser humano pode ser próprio pesadelo.


Ultra Carnem

Cesar Bravo

384 páginas

DarkSide Books

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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