Estou pensando em acabar com tudo: um clássico do ame ou odeie

Estou pensando em acabar com tudo: um clássico do ame ou odeie

Estou pensando em acabar com tudo, de Charlie Kaufman, foi lançado este ano na Netflix e logo deu o que falar. Assim como seu título longo e o histórico do diretor sugerem, é um filme longo e complexo. Conhecido por narrativas intrincadas, surrealistas e pouco convencionais, Kaufman mantém sua tradição aqui, porém entregando dessa vez a experiência menos confortável para os seus espectadores até o momento.

A frase-título é proferida incontáveis vezes pela protagonista, incorporada pela excelente Jessie Buckley, porém sempre introspectivamente, dando a entender, como nos materiais promocionais do filme, que ela se refere ao seu relacionamento amoroso com Jake (Jesse Plemons). Ambos se encontram, durante grande parte do filme, a caminho da casa dos pais dele, em uma viagem de carro que parece infindável. Os diálogos e o ritmo da obra fazem pouca questão de deixá-la mais agradável durante os seus quarenta minutos. Mas é claro que o arco dramático de Eu estou pensando em acabar com tudo não se resume a isso.

Nada é o que parece

A viagem longa e fria que leva até a fazenda da casa dos pais de Jake redime um pouco a experiência do espectador. A começar pela introdução da ótima dupla formada por Toni Collette e David Thewlis. A dinâmica entre os dois casais é, sem dúvida, um dos pontos altos do filme. Os pais dele formam um casal excêntrico e cheio de trejeitos, e a interação dos quatro personagens é permeada de diálogos confusos e tensões inexplicáveis.

Ao longo da visita, os sogros mudam de idade e de aparência à medida em que percorrem a casa. A própria identidade deles permanece confusa e misteriosa: se eles são os pais de Jake, por que o casal tem uma foto dela pequena na parede? Por que o poema do quarto de Jake é o mesmo que ela escreveu? Por que a porta que leva ao porão tem marcas de arranhões? Mesmo com todas essas questões, a cena consegue ainda manter o caráter prosaico e mundano de uma namorada sendo apresentada aos sogros, de algum modo. Aliás, uma dualidade que é bem típica do mundo de Charlie Kaufman.

Cena de "Estou pensando em acabar com tudo"
Cena de Estou pensando em acabar com tudo. Imagem: reprodução

O fim que a protagonista pretende dar a tudo, nunca parece chegar. Pelo contrário, o cerco sobre ela parece se fechar a cada cena, por motivos que nunca ficam claros. Aliás, a expectativa por este momento do término, que o título do filme sugere, adquire suspense e aspectos sombrios à medida em que somos arrastados pela trama. A cena da lanchonete, logo após eles terem ido embora da fazenda longínqua dos pais de Jake, é um dos muitos momentos de tensão perceptível, porém indecifrável. E a medida em que chegamos ao clímax de Estou pensando em acabar com tudo, mais certa ela está do “fim” que ela quer dar e mais distante ela se encontra de realmente concretizá-lo, independente da sua vontade.

Acabar com o quê?

Assim como em português, o título original também oferece, a princípio, uma possível dúbia interpretação. Ao mesmo tempo em pode significar o término do relacionamento, através de uma leitura mais literal do que o filme sugere, também pode significar “terminar tudo” de fato. E a medida que a trama é desenvolvida e vemos a autonomia da jovem sendo posta em dúvida a cada cena, esta segunda interpretação começa a ganhar sentido por debaixo da trama principal.

Jessie Buckley em "Estou pensando em acabar com tudo"
Jessie Buckley em Estou pensando em acabar com tudo. Imagem: reprodução

Afinal, ela seria capaz de executar o “término” do relacionamento que ela tanto deseja? Dessa forma, a personagem, que nem nome definitivo possui, tem algum controle sobre suas ações? Ou ela é somente uma projeção daquele de quem ela quer se livrar? E quem seria esse Jake ou o zelador que vemos, vez ou outra, em planos desconexos numa escola, intercalados com a narrativa principal?

A resposta a essas perguntas nunca fica clara e Estou pensando em acabar com tudo não é um filme para quem busca conclusões definitivas. E se tudo parece confuso até esse ponto, boa sorte em tentar entender os últimos 15 minutos desse filme!

Desafio sem recompensa

O que ajuda, até certo ponto, é que o filme se baseia no livro homônimo de Ian Reid. Nele, aprendemos que o casal protagonista (ou será mesmo?) é nada mais do que fragmentos da imaginação do zelador da escola, e projeções de suas inseguranças e solidão. Ou seja, a jovem que acompanhamos durante todo o filme e suas reflexões são, na verdade, um pensamento rebelde na mente de um homem mais velho e solitário. Mas, para além disso, Kaufman toma certas liberdades com o texto original, o que tornam o filme uma experiência única.

Cena de "Estou pensando em acabar com tudo"
Cena de Estou pensando em acabar com tudo. Imagem: reprodução

Se esse longo labirinto psicológico e surrealista vale a pena ser percorrido, isso é outra história. Como sempre, Kaufman oferece além de uma narrativa, uma experiência ao seu espectador. Mas ao contrário de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” ou “Quero Ser John Malkovich”, o fim dela não tem muitas recompensas para aqueles que persistem. Não que ele seja extremamente negativo ou denso – o final até tem uma conotação inspiradora. Mas a questão toda é que a reflexão em si parece não ter a menor intenção de chegar a qualquer lugar.

De certo modo, Estou pensando em acabar com tudo é um filme que questiona o próprio fato dele ser um filme e o porquê de o estarmos assistindo. Desafiador, sem dúvida. Agora, se é um desafio que vale a pena, vai de cada um.

Escrito por:

15 Textos

Criança que queria ser bailarina, depois foi querer virar oceanógrafa, que depois sonhou em ser fotógrafa da National Geografic, para depois querer ser escritora. Acabou virando jornalista (no diploma) e professora (na carteira de trabalho – RIP). Adulta, só daqui uns anos.
Veja todos os textos
Follow Me :