O documentário Alphaville – Do Lado de Dentro do Muro, dirigido por Luiza Campos, é apresentado a partir da perspectiva de uma ex-quase-criança-alpha, como a própria diretora descreve. A narrativa aborda a história de sua família e os terrenos adquiridos ao longo dos anos 1970, representando uma realidade quase intransponível no Brasil: aquela que privilegia os privilegiados.
O documentário pode ser interpretado através do sentimento de estranheza que a ficção científica nos proporciona, exalando uma espécie de distopia – um local afastado e que promete proteção contra todos os perigos do mundo.
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O dispositivo no documentário Alphaville – Do Lado de Dentro do Muro
A noção de dispositivo já é pensada na produção de documentários desde meados da década de 1960 e tem sido reelaborada desde então. A crítica ao modelo representacional, ou seja, a ideia de que um documentário é responsável e capaz de mostrar a realidade, ainda é material para inúmeras discussões.
Mais recentemente, o conceito de dispositivo tem sido útil para pensar as ramificações possíveis dentro do próprio cinema. Assim, ao partir de um princípio criativo – uma situação, uma provocação ou até mesmo uma limitação – as produções documentárias avançam para diferentes patamares: provocar eventos e estimular a fabulação.
Uma câmera de vigilância para proteger e denunciar
Para além de um compilado de depoimentos sobre como a vida ali dentro é melhor que a vida lá fora, a diretora, que inicialmente parece querer fazer uma reverência a esse local afastado dos males, nos entrega uma ilusão de liberdade.
Todas as personagens que falam sobre suas experiências na cidade de São Paulo – ou ideias que têm sobre a cidade – o fazem dentro de um condomínio fechado, de casas completamente idênticas, entrando pela mesma porta da frente e, ironicamente, captadas por uma mesma câmera de segurança.
A câmera, como personagem, revela complexidades muito maiores que o medo de andar com os pertences de marca por aí. Ela mostra o paradoxo de uma sociedade que se esconde para viver porque acredita que apenas assim é possível viver verdadeiramente.
Atravessamentos de classe: uma escuta
Ser exclusivo é poder morar em um local que poucos conseguem pagar. É fechar-se sozinho no seu próprio carro, adentrar a sua casa apenas depois de comprovar a sua digital, pagar pessoas que possam passear com seus cachorros. Ser exclusivo é ter privilégios que, analisados a fundo, podem fazer parte de uma lista estranha de sintomas que mais se aproximam de uma prisão.
Luiza deixa as pessoas falarem. E é justamente com essas histórias que os medos coletivos parecem pairar de forma abstrata em experiências que pouco se concretizaram. Por exemplo, uma mulher conta a sua tática para se sentir segura em São Paulo – ela guarda a bolsa preferida no porta-malas e utiliza outra com tudo o que não gosta dentro. Questionada sobre assaltos, ela responde: “Morro de medo de ser assaltada, ainda não fui”.
As vidas encarceradas em condomínios que prometem segurança, ordem e limites, assemelham-se às vidas perfeitas que quase todas as utopias desejam entregar, mas nunca conseguiram. Essa falta talvez se explique pela própria matéria da vida e do cinema serem incompletas, irregulares e desengonçadas.
Uma jovem fotógrafa de Alphaville
No filme de Luiza, para além dos adultos, o diálogo com as crianças-alpha, acontece de maneira ainda mais interessante, angustiante e curiosa.
Uma das garotas entrevistadas fala sobre o quanto ela gosta de poder brincar nas ruas do condomínio, andar de bicicleta e skate. A jovem completa: “Eu fico feliz nesse residencial… eu não… não acontece nada”. A última frase se repete, sugerindo uma dúvida sobre o que de fato não acontece ali. Será a violência narrada por seus pais ou os imprevistos incontornáveis da vida?
A garotinha ama a liberdade das ruas cercadas e demonstra isso através da fotografia. Com a sua câmera, ela é capaz de explorar o condomínio por diferentes ângulos. Ao narrar suas fotos, ela replica uma mensagem que parece programada por um supercomputador tirânico – “segurança, segurança, segurança”. Ela completa, ao se referir ao condomínio: ele é “bem grande, bem bonito, bem fotogênico”.
Em uma ficção científica mais esperançosa, as gerações mais jovens seriam as responsáveis pelas mudanças urgentes do mundo. Assim, em Alphaville – Do Lado de Dentro do Muro, o desfecho não segue bem essa lógica, afinal, ela volta para a “perigosa cidade”. Mas é na jovem menina – a criança-alpha-fotógrafa que hoje já é adulta – que as reflexões ainda inseguras podem surtir efeitos. Fazê-la atravessar os muros do condomínio ou, no pior cenário, fazê-la segura com ainda mais muros e grades. Aguardemos.