Roquia Sakhawat Hussain é, provavelmente, ali juntinha com a dona Mary Shelley (autora de “Frankenstein”) uma das mães da ficção científica. Antes de escrever essa matéria, mostrei a foto da autora-tema pra algumas pessoas e todo mundo teve a mesma reação perplexa de “Ela escreveu sci-fi?”. Pois sim, meus caros. Não somente escreveu como também foi uma das primeiras pessoas a fazê-lo, na época em que o estilo estava começando a tomar forma. Há livros e artigos de história da literatura que até colocam ela como a primeira a escrever uma ficção científica totalmente feminista. Maneiro, né?
Roquia era uma ativista feminista da região de Bangladesh, filha de uma família instruída, porém conservadora. Ela vivia atrás de instrução que a aproximasse da realidade do lugar onde vivia. Aprendeu o idioma local, além do inglês (na época, da Índia colonizada) e as línguas preferidas das elites, como o árabe. Seus escritos eram voltados para as mulheres locais e especialmente as de classes mais baixas e trabalhadoras, por isso seus textos, contos e novelas eram escritos em bengali. Sua escrita bem-humorada e satírica conquistava as leitoras e as conscientizava das injustiças. Ela juntou dinheiro durante muito tempo até que finalmente conseguiu fundar a primeira escola para mulheres muçulmanas da região.
Roquia acreditava que as mulheres tinham que existir de maneira expressiva e completa e sempre questionou os costumes opressores. Acreditava no Islã, na palavra do Alcorão e dizia que os costumes haviam perdido a essência do que era glorificar Alá, e por isso, a cultura estava completamente distorcida e as mulheres eram proibidas de tantas coisas.
A igualdade para ser humano era liberdade para expressar a gratidão de glória de Alá, também segundo o que ela acreditava. Foi por isso que ela lutou ao longo da vida para que mulheres muçulmanas pudessem ter condições de trabalho, liberdade na vida pública e privada, e que conseguissem se organizar inclusive enquanto expoentes da classe trabalhadora, que tinha suas próprias pautas.
Enquanto tudo isso acontecia na vida dela, houve o parto desse grande livro de ficção científica: “O Sonho da Sultana“.
Conta-se nele uma história de sociedade feminina utópica. É uma inversão total do cenário que ela via na sociedade muçulmana da época. Ao invés de ficarem em casa, as mulheres é que podiam sair e o confinamento ficava reservado aos homens.
Numa sociedade futurista dominada pelas mulheres, ela coloca uma série de questionamentos quanto às questões de gênero, religião e instrução. A literatura ácida e satírica dela faz você deslizar pelas páginas numa leitura muito gostosa, mas que não deixa de ser extremamente séria. O humor e ficção se unem para denunciar o quão absurda é a questão de violência institucionalizada, de como são absurdas uma série de questões de gênero. É extremamente curioso lê-la e notar uma outra perspectiva para o sci-fi. Estamos, em geral, acostumadas a ver uma coisa mais no eixo Europa-América do Norte, em termos de disseminação de conteúdo, e nos deparamos com este livro escrito no começo do século XX.
Há uma edição traduzida de “O Sonho de Sultana”, que inclusive pode ser comprada em volume impresso no Clube dos Autores (e também tem o e-book gratuito, disponibilizado no site Universo Desconstruído).
Aproveitem o link e boa leitura!