Os anos oitenta na indústria de histórias em quadrinhos trouxeram novos horizontes e perspectivas, com histórias mais “realistas” e sombrias dentro da DC Comics, como é o caso de “Batman, o Cavaleiro das Trevas” e “Watchmen”. Para se entender essas mudanças, é necessário entender o contexto da produção em que todas as revistas da editora estavam inseridas, ou seja, a proposta iniciada com o reboot de 1986.
Anos 80: George Pérez e a retomada da identidade amazona
O reboot aconteceu através de uma saga denominada “Crise nas Infinitas Terras”, um evento crossover entre todas as “terras” da editora, e, por consequência, envolvendo todas as suas revistas, que teve como figura principal da narrativa o Flash, que na época tinha como identidade secreta Barry Allen.
A proposta dessa saga era apagar o múltiplo e confuso universo criado ao longo dos anos pela DC, tendo, assim, a possibilidade de reordená-lo e, ao mesmo tempo recriar as origens de seus personagens.
Fica clara, então, a existência de uma tentativa de se alcançar um novo público além do comum, ou seja, crianças e adolescentes do sexo masculino, que estavam migrando para outros meios de comunicação como vídeo games e fitas VHS. As publicações da revista da Mulher Maravilha seguiram a mesma ideia, mas diferente das outras, que tinham como objetivo de público homens adultos, a nova equipe criativa de Mulher Maravilha, iniciada em 1987, optou por ir além desse alvo e tentar alcançar o público feminino.
É importante, então, comentar sobre o time responsável pela publicação dessa nova fase das histórias, que incluía Karen Beger, conhecida hoje em dia por seu trabalho junto ao Selo Vertigo e que foi a editora da revista de 1987 até 1992; Greg Potter e Len Wein, que colaboraram como escritores de algumas edições; e George Pérez, principal responsável por desenho, argumento e roteiro durante esses cinco anos. Segundo D.R. Hammontree em seu capítulo no livro “The ages of Wonder Woman: Essays on the Amazon Princess in Changing Times”, Karen Beger foi a responsável pela decisão de se ir atrás de leitoras para a revista da Mulher Maravilha, decisão acertada pois foi nesse período, sob o comando de Berger, a única vez que as revistas da heroína bateram constantemente recordes de vendas. Esse é um fato importante de ser salientado pois demonstra a ideia das decisões editoriais que formaram o rumo tomado pela publicação.
Nesse contexto, a personagem e toda a sua mitologia passaram por uma reformulação, sendo contada uma nova origem para a heroína e para suas companheiras amazonas, que são reintroduzidas nas revistas. Além disso, Pérez tem uma preocupação em estabelecer bases psicológicas, políticas e sociais para a sociedade amazona dentro da ilha de Themyscira, mostrando desde o primeiro número em quais ideais são baseadas as decisões tomadas pelo grupo.
Não somente as amazonas ganham importância novamente, as deusas gregas e alguns poucos deuses têm significativas participações no decorrer da narrativa, as primeiras como criadoras e conselheiras das guerreiras amazonas, enquanto os últimos aparecem, muitas vezes, como seus vilões, em especial, Ares, o deus da guerra.
Essa polarização entre as figuras femininas e masculinas acontece durante todo o período comandado por Pérez e Berger, contando com a exclusão de figuras masculinas no processo de formação e evolução de Diana, nome agora utilizado sem o sobrenome Prince, mas relacionado ao título de princesa. São retirados, por exemplo, as figuras paternas para a heroína e seu interesse amoroso, já que, por um lado, ela nasce da junção da vontade da deusa Ártemis e da mãe de Diana e rainha das amazonas, Hipólita, que a criam a partir de uma escultura de barro; por outro, Steve Trevor, que tradicionalmente aparece como seu par romântico, deixa de sê-lo.
Obviamente o trabalho de Pérez ainda mantém contato com o consumidor usual de histórias em quadrinhos, tendo elementos típicos das histórias para esse público, como muita aventura, lutas e o traço típico dos anos 80, com personagens masculinos musculosos e as femininas sendo retratadas com grandes cabelos cacheados e roupas pequenas e apertadas, mas a temática de sua narrativa e sua interpretação da Mulher Maravilha conseguiram abrir portas para um novo público.
Anos 2010: Os Novos 52 e Rebirth
Recentemente a DC Comics passou por um novo reboot iniciado em maio de 2011 e encerrado em setembro daquele ano. Feito através da saga conhecida como “Flashpoint” ou, no Brasil, “Ponto de Ignição”, tendo mais uma vez como início o velocista da DC, o Flash, dessa vez na figura de Wally West e marcando o retorno de Barry Allen, que estava fora da posição de Flash desde 1986. A linha das revistas da editora dessa vez recebeu um nome para seu conjunto inicial de cinquenta e dois novos títulos: “Os Novos 52”.
Assim como na década de 80, as mudanças trazidas pelo reboot foram gigantescas, apesar da escolha por manter a cronologia das histórias de alguns personagens, como foi o caso Batman (manutenção de acontecimentos marcantes das histórias do Batman e do restante dos personagens criados em torno dele, como por exemplo a referência aos acontecimentos passados na famosa HQ de Alan Moore e Brian Bolland, “A Piada Mortal” na série mensal da Batgirl). Mulher Maravilha recebe um misto dessas escolhas, pois ao mesmo tempo que tem sua história recontada, ela, em sua revista, já aparece como uma heroína estabelecida e é reconhecida por outros personagens que aparecem.
O destaque dessa vez na produção do título “Mulher Maravilha” ficou a cargo do roteirista e do desenhista, Brian Azzarello e Cliff Chiang, respectivamente. Enquanto Chiang deu um novo visual à personagem, como a pele mais morena, o nariz mais proeminente, os olhos mais redondos, ombros um pouco mais largos, seios menores e um uniforme mais prático, dentro é claro das possibilidades de modificação do uniforme, usando recursos como a diminuição do decote e a retirada dos saltos da bota; Azzarello, mais conhecido por seu trabalho junto a Vertigo, se preocupou em acrescentar novos elementos à origem da heroína, dando a ela uma ligação mais forte com o panteão grego, tornando-a filha de Zeus e, no decorrer da história, como deusa da Guerra, após a morte do deus da Guerra anterior que era seu amigo e mentor.
Além disso, os vilões apresentados por Azzarello são relacionados à mitologia grega, ficando, assim, à altura de enfrentar uma personagem com tantas habilidades e tão forte como é o caso da Mulher Maravilha. Essa foi, na verdade, uma das maiores preocupações do autor, estabelecer uma base de vilões que pudessem ser identificados como sendo arqui-inimigos da amazona, já que, apesar dela ser um dos personagens mais importantes da editora e fazer parte de sua famosa “Trindade” junto com Batman e Superman, Diana não conseguiu emplacar uma galeria de vilões.
Um dos elementos que colaborou para a liberdade que Azzarello teve ao trabalhar a mitologia da Mulher Maravilha foi a separação da série do restante das revistas dos “Novos 52”. Isso possibilitou uma uniformidade na narrativa que não ficou entrecortada pelos eventos das grandes sagas crossover da editora, com exceção da edição 23.1 que faz parte da saga “Forever Evil” e não foi escrita por Azzarello nem ilustrada por Chiang. Dessa maneira a narrativa de Azzarello e Chiang teve o espaço, contando as edições 0 e 23.2, de trinta e sete edições praticamente ininterruptas para ser trabalhada e aprofundada, o que, além de colaborar com a qualidade da história, atraiu um novo público de leitores que, muitas vezes, nunca tinha lido uma história solo da Mulher Maravilha, ao mesmo tempo que deu algo de novo ao público que já lia as histórias da personagem, ainda que, obviamente, a série não tenha tido uma crítica unânime.
Em novembro de 2014, Meredith e David Finch assumiram a revista respectivamente como roteirista e desenhista. O casal declarou que iria começar uma nova abordagem à personagem, deixando-a “mais humana”. A tentativa era de se aproximar mais das outras revistas em que a Mulher Maravilha aparece, tanto psicologicamente, quanto fisicamente, já que Finch tem a estética de seu traço bem próxima à de outros desenhistas da editora; e também na questão da narrativa, fazendo com que a revista mensal da amazona se encaixasse na história maior da editora.
No começo desse ano a DC realizou o evento “Rebirth” (que, segundo a editora, não se tratava de um reboot e sim de um relançamento de seus títulos) e “Mulher Maravilha” ficou a cargo de Greg Rucka (roteiro) Nicola Scott (arte das edições pares) e Liam Sharp (arte das edições ímpares). A história agora é lançada quinzenalmente, e foi divida, como mencionado acima, entre as edições pares e ímpares para acertar a cronologia da Amazona, sendo contados o passado e o presente, respectivamente; a intenção é “consertar” a história da personagem e inserir personagens importantes em seu canon (como Steve Trevor e Etta Candy). Com 11 edições publicadas até o momento (nos EUA) é necessário esperar para ver como, a longo prazo, a nova equipe (especialmente Rucka) vai desenvolver a nova fase da heroína.