Na última sexta-feira (31/03), o vice-presidente de vendas da Marvel, David Gabriel, em entrevista para a IcV2 declarou que a Marvel não tem mais interesse em histórias que retratem diversidade e/ou deem protagonismo a personagens femininas.
O conteúdo integral da entrevista pode ser conferido aqui, aqui e aqui. O argumento de Gabriel é que, aparentemente, “o público não quer mais diversidade ou personagens femininas”. Ainda segundo Gabriel, isso não é necessariamente no que ele acredita, mas é o que está sendo refletido nas vendas da casa, que tem visto “todo personagem que for diverso, novo ou uma de nossas mulheres, qualquer coisa que não seja um personagem tradicional, o público está torcendo o nariz”.
Há alguns meses sites como Bleeding Cool têm falado sobre o mais recente relançamento da Marvel, que acontecerá neste ano, ser uma tentativa de voltar várias casas em movimentos ousados que a editora fez nos últimos anos e não mostrou retorno em vendas. A Marvel tornará a um estilo mais tradicional, como sua concorrente DC Comics, e lançará histórias para o público fidelizado. Marc Guggenheim disse em entrevista que o novo X-Men será “mais sobre os X-men como heróis, e menos sobre X-men como uma minoria lutando por sua existência”.
Diante dessa mudança de posicionamento e sobre as alegações de Gabriel sobre as preferências do público, a resposta padrão tem sido quase unânime: “o problema não é a diversidade, nós só queremos boas histórias”. O argumento não é novo. Quem acompanha a luta das editoras para alavancar as vendas que tem caído mais a cada ano – mesmo com o sucesso estrondoso dos heróis no cinema – sabe que essa tem sido a bandeira de quem busca justificar as críticas e o fracasso de vendas dos novos personagens que representam minorias de poder nos quadrinhos. Mas voltando ao posicionamento da Marvel, é importante salientar uma coisa primeiro:
Não é que a Marvel perdeu o interesse por diversidade. Ela nunca teve.
Como o próprio Gabriel deixou claro em sua entrevista, a Marvel não se interessa pelos motivos do público “não querer mais personagens diversos”. Ela se interessa pelo número das vendas. Pensar que uma empresa está interessada em representatividade é ignorar o propósito da mesma. Se é possível ou não haver empoderamento sobre o consumo é um tema extenso e polêmico, mas o que não podemos esquecer é que o propósito da Marvel, DC e toda a indústria de entretenimento é o lucro.
Pode parecer óbvio dizer isso, mas tem sido atribuído tanto poder político à representação dada por essas empresas que pode ser um baque ter a ilusão coletiva de avanço quebrada. Mas por que a representação vinda de empresas é uma ilusão? Porque ela vem de cima para baixo; não é uma decisão tomada em prol de beneficiar uma minoria, não há interesse humano ou partiu das demandas políticas de movimentos sociais, mas de inúmeros estudos de caso sobre público-alvo e consumo. E, quando isso acontece, os avanços vão embora tão rápido quanto viram. Porque o público consumidor também muda, e muda rápido.
Muitos podem alegar: “mas nós precisamos da indústria para levar representatividade às pessoas”. E esse é um argumento válido. É verdade que a grande maioria da população consome majoritariamente esses produtos. A mídia tradicional é o principal meio de contato com esses temas, e é também importante que o consumidor que faz parte de uma minoria se veja nessas histórias. Mas esse é, realmente, o único meio? Precisamos rever a forma como lidamos com a representatividade nos quadrinhos, e uma alternativa viável é estimular o consumo de material de artistas independentes.
Contribuir com a produção de artistas que não tem apoio midiático e escrevem sobre temas de seu interesse tem duas vantagens primordiais: 1- Você estará lidando diretamente com o artista, sem o intermédio de uma grande empresa. 2- Os temas abordados ali não terão sua proposta transformada diante de mudanças no cenário político (pode acontecer, mas não é tão volátil quanto acontece com indústrias que vivem pelo resultado).
Para deixar claro: essa não é uma proposta de boicote às edições tradicionais de editoras como Marvel e DC Comics – até porque, em nosso cenário atual, isso seria inútil. Mas buscar posicionamento político e comprometimento real com a representatividade na indústria de entretenimento é utópico. A Marvel nunca se interessou por diversidade porque nenhuma indústria jamais se interessou por algo que não suas vendas. Por mudanças reais, empoderamento e posicionamentos é mais interessante propagar mídias alternativas e produção de artistas independentes, onde as mudanças não vem de cima para baixo, mas de dentro para fora.
Entendendo isso, há outro ponto interessante a ser debatido nesse cenário: o público.
Gabriel falou sobre o público, aparentemente, ter perdido o interesse nessas histórias. Entendemos a confusão de Gabriel, afinal, em meados de 2010 era aparente que a inserção de personagens de minorias era o caminho a ser seguido para trazer novos leitores para uma indústria que lucra menos e menos a cada ano, mas de repente esses quadrinhos foram para as bancas e não houve retorno. O que aconteceu? Bem, não é que o público perdeu o interesse por personagens minoritários, ele nunca teve (da forma como foi proposto).
Sobre o interesse do público por personagens de minorias de poder – como mulheres, negros de LGBTs – existem muitos fatores a serem considerados, mas um dos mais pesados nesse caso é a maioria silenciosa. Os últimos anos foram marcados por avanços em direitos e representação de minorias, porém isso não significa que o mundo tenha ficando menos conservador, mas que passamos por um momento histórico e sociopolítico favorável à essas mudanças. A visibilidade de temas em prol das minorias não exclui que, enquanto ativistas pediam por direitos, representação e, no caso, mudanças nas HQs, a maior parte do público, na verdade, não se pronunciava – essa é a maioria silenciosa. Vivemos novamente grandes mudanças nesse cenário; a conquista de direitos e de espaço começou a incomodar, e com o aval de novas transformações que suportem o argumento de uma maioria conservadora, os silenciosos começaram a se pronunciar.
A maioria silenciosa nos deu a ilusão de que todos queriam esses espaços e esses personagens, a indústria se movimentou para suprir a demanda, mas com o início de um movimento organizado contra essas investidas ergueram-se as vozes de um consumidor conservador, que tem se pronunciado cada vez mais. Agora, sobre as vendas, é interessante perguntar: por que os grupos de minorias não estão comprando suas HQs? Por que essa empreitada não foi bem-sucedida, enquanto era endossado? Porque as vendas ainda estão caindo?
Sabemos que o argumento de que mulheres e LGBT não são o público consumidor de quadrinhos foi refutado diversas vezes (pesquisas recentes mostraram que 54% dos interessados em conteúdo voltado para quadrinhos no facebook são mulheres). Então, existe esse popular argumento para justificar essa falta de interesse:
“O problema não é a diversidade, o público quer ler boas histórias”.
Aqui vai um motivo porque esse argumento não funciona, e um porque funciona:
Porque esse argumento não funciona: não é sobre a qualidade das histórias se revistas com personagens mulheres e LGBT tiveram notas maiores pela crítica e leitores, mas vendas menores. Ainda sobre a entrevista de Gabriel, este diz que foi difícil não haver retorno dos leitores, pois o time criativo “tinha muitas ideias novas e excitantes para colocar em prática e nada novo funcionava”. O exemplo de sucesso que Gabriel usa é a HQ Venom, que ficou em 8º lugar nas vendas dos EUA. Comparando com revistas como Ms. Marvel e Midnighter and Apollo (que custam o mesmo valor de Venom, então sabemos que as vendas não foram influenciadas por valores), temos essas avaliações:
Fontes: Comichron e Comic Book Round Up
Podemos concluir, sobre essas informações, que a qualidade das histórias não é exatamente o fator principal para a o público não estar comprando quadrinhos que tenham protagonistas mulheres e LGBT. A resposta que nos resta é o conservadorismo do amplo público consumidor de quadrinhos e sua resistência em receber novos personagens. Agora, não estamos dizendo que o problema não está nas histórias. E porque esse argumento funciona está na busca por responder uma última pergunta: entendemos porque a maioria silenciosa não compra esses quadrinhos, mas por que a minoria representada não o faz?
A quedas nas vendas e o fracasso dessas revistas não se dá por se tratarem de membros minoritários, mas porque esse é o único assunto. Sim, é importante falarmos sobre os problemas que mulheres, negros e LGBT sofrem, mas não apenas isso. Também é importante haver histórias em que eles apenas existem.
O problema não está em falar sobre as dificuldades das minorias, mas em só falar sobre isso.
Não vamos entrar aqui na discussão de que a dor das pessoas não é mercadoria e a inserção desses personagens, em sua maioria, aconteceu pelas mãos de homens brancos e héteros, com sua própria visão de mundo, mas fazer um apelo para que se escreva personagens de minorias em histórias em que essa não é a sua principal e única característica. Façam-nos complexos, lhes deem histórias, escrevam bem – e deixem que as minorias escrevam sobre si mesmas, eles são os melhores termômetros para saber qual é o interesse desse nicho. E então o público irá ler os seus quadrinhos.