[GAMES] Jogos MMOSG: O que são e como esses jogos ajudam pessoas (Opinião)

[GAMES] Jogos MMOSG: O que são e como esses jogos ajudam pessoas (Opinião)

No mundo virtual, existem certos tipos de sociedades complexas. Nesse exato momento, aos milhares, espalhadas por diferentes servidores no mundo inteiro, elas crescem. Elas não param. Evoluem. Transformam-se. Assim como a vida. Que a internet pode ser uma grande aliada de pessoas com problemas de interação social, todo mundo já deveria saber. Às vezes, a internet é vantajosa para quem sofre de transtornos como fobia social, depressão, ou deficiência. Pessoas que não conseguem interação social por outros meios encontram na internet uma grande aliada. Pessoas trans também podem encontrar na internet um ambiente mais seguro, onde elas podem se encontrar e aprender melhor umas com as outras sobre suas necessidades e lutas políticas. E, claro, socializar.

Existem inúmeras pessoas com os mais diversos tipos de dificuldades que as impedem de interagir socialmente no que chamamos de “mundo real” — como se a internet fosse algo falso, ou menos válido. Na verdade, a internet pode criar ambientes tão reais que são capazes de salvar pessoas com sérios problemas. Esse artigo dividido em duas partes é sobre isso. Sobre formas peculiares de criar vidas paralelas formadas por paixões e pixels. Sobre mundos digitais capazes de ajudar pessoas a se encontrarem e, no processo, conhecerem muito mais de si mesmas. E também é sobre minha própria experiência como pessoa trans em tais universos paralelos, nos quais aprendi sobre a mulher em mim que implorava por uma chance de viver.

Existe uma categoria de jogos online conhecidos como MMO (Massively Multiplayer Online, ou Jogo Online Multijogador em Massa), e quando falamos desses jogos, imediatamente pensamos em coisas como World of Warcraft, Lineage, Ragnarok Online, Mu Online, e por aí vai. Estes títulos mencionados são na verdade MMORPG (porque são MMO com temáticas de… RPG), uma subcategoria dos jogos massivos online, mas existe uma infinidade de outras ramificações, como MMORTS, MMOFPS e a mais subestimada pelos gamers: MMOSG, ou Jogos Online Multijogador Social em Massa.

MMOSG
Casamento no IMVU, um dos MMOSG mais abertos à customização de avatares e locais

Como o nome sugere, são jogos online com foco nas interações sociais. O mais famoso deles é o Second Life, mas sua fama é principalmente devido ao grande hype na mídia na época de seu lançamento. Com o fracasso do Second Life como a “nova oportunidade para o negócio da publicidade” que a mídia alardeava, os MMOSG perderam o crédito do “grande público”. Hoje em dia, entre os poucos MMOSG comentados está o Habbo.

Você pode não ter nenhum interesse em dar uma chance aos SG durante suas horas de lazer, talvez por achar mais interessante caçar monstros alados ou duelar contra facções inimigas. Mas isso não muda o fato de que os jogos sociais têm um grande potencial explorado por muita gente por aí. Os mundos virtuais criados e mantidos 24 horas por dia nos MMOSG são vastos, ricos em possibilidades, e alguns pesquisadores já realizaram estudos acadêmicos e escreveram alguns livros sobre o assunto. Os desdobramentos são tão vastos que poderíamos falar sobre muitos temas.

MMOSG
Meu avatar no IMVU

Tenho um carinho grande por MMOSG. Neles, passei muitas horas diárias durante alguns anos, enquanto eu vivia a época mais complicada da minha vida. Por isso, mergulhei profundamente dentro das possibilidades de um dos mais abertos, ousados e lascivos dos jogos sociais massivos: o Red Light Center.
Mas antes de falar deste jogo em si, é importante conceituar algumas das principais características dos SG.

Mundo Persistente e Rede Social

Esses jogos, assim como qualquer MMO, funcionam em um mundo virtual, chamado de Mundo Virtual Persistente. Significa que o mundo continua existindo e mudando conforme as pessoas ao redor do planeta jogam. Ou seja, se você fechar o jogo e voltar no dia seguinte, as coisas podem estar bem diferentes.

O mundo, assim como os avatares, é formado por arte 3D, e existem muitas maneiras de criá-las, das mais simples às mais complexas — e realistas. Os mundos são ilimitados e potencialmente infinitos, mas são divididos por locais, que são mapas bem limitados. Um local — ou mapa — pode ser uma casa, um quarto, uma praça, uma loja, e por aí vai. Para entrar em um local é preciso acessar uma “porta” ou endereço que levará o avatar do jogador de um mapa para outro.

MMOSG
Exemplo de um local no Second Life, totalmente customizado

Quando um jogador entra no mundo, ele é representado pelo seu avatar virtual, um “personagem” que o representa. Há diversas teorias sobre as capacidades dos jogadores projetarem a si mesmos nesses avatares, bem como carregar esses personagens para suas vidas reais, à medida que eles se tornam distintos ou com qualidades que o próprio jogador não possui ou não sabia que possuía. Mas esse é um assunto para a parte 2 do artigo.

Nada pra fazer?

Existem pessoas que são capazes de imergir em mundos virtuais e as que não são. Também há níveis de imersão. Para alguns, esses jogos tratam-se apenas de um chat com imagens 3D, e eles conseguem se divertir com isso. Mas os que realmente “entram” no mundo virtual, transferem parte de seu “eu” para o jogo. Criam uma vida nos pixels. E usam as extravagâncias do digital para fantasiar livremente.

Pessoas que não são de imergir, ao experimentar pensam: “mas não tem nada pra fazer, é muito chato” e desistem. Já ouvi essa frase muitas vezes. Porém, para quem de fato se coloca nos mundos, há muito o que fazer. Você só precisa descobrir. Sempre digo que é um pouco parecido com a vida real. Se pensarmos bem, a gente não nasce com “algo para fazer”.

Temos que sobreviver, nos divertir, e descobrir as coisas que gostamos e queremos. Por mais que algumas coisas sejam predeterminadas pelo sistema, somos nós quem criamos o sentido de nossas próprias vidas e, baseado nisso, estabelecemos objetivos. Eles podem ser “emprestados” de outras pessoas — como pais, professores, pastores — ou não. Nesses jogos é a mesma coisa. Você cria seu avatar do zero, com o visual que deseja, e começa a andar por aí, até se deparar com as possibilidades — que só surgem na interação com outras pessoas.

MMOSG

Dentro dos mundos, há famílias que criam e recriam suas próprias dinâmicas. Há profissões, comércio, atividades, leis. Comunidades que estabelecem diferentes tipos de relações, que por sua vez se tornam cada vez mais complexas. Criam-se hierarquias, relações de trabalho, funções… Sem jogar e explorar a fundo, impossível saber até onde isso pode ir.

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Economia

Em muitos jogos, a economia é complexa. A maioria deles têm suas moedas virtuais, que você pode ganhar através de ações dentro do jogo, comprando com dinheiro real, ou ganhando de alguém. A possibilidade de ganhar de alguém abre a chance de trocar serviços por moedas. Assim, dentro das possibilidades que as mecânicas dos jogos oferecem, os jogadores usam a criatividade para oferecer serviços diferenciados. Por consequência, a sociedade daquele jogo vai se tornando mais complexa.

Por exemplo, em muitos casos é comum o jogo permitir que um jogador seja um DJ de um local específico. Também permitem que se faça a decoração do local, customizando toda a aparência com texturas e objetos, em infinitas possibilidades. Assim, pode-se transformar uma casa em um clube, contratar um decorador de interiores e um DJ.

MMOSG
As ferramentas de customização dos locais permitem criar submundos com qualquer temática que o jogador desejar

Percebe como as dinâmicas se criam aproveitando-se das mecânicas? Se eu tenho um clube com boa decoração e um DJ, posso cobrar dos que desejarem ir às festas que eu promover. Com esse dinheiro, pagar aqueles que contratei. E assim por diante. Também é comum ser um estilista de moda, porque os jogos costumam permitir que se crie roupas, cabelos, maquiagem, e até refazer toda a “pele” dos avatares, dando aparência completamente nova. Estilistas podem ganhar muito dinheiro virtual, e gastar com outras coisas.

Sexo e afetividade nos MMOSG

Claro que estes são os principais atrativos nos jogos sociais. Afeto sempre é uma das coisas que seres humanos procuram, não importa se é no mundo de átomos ou de pixels. Esses jogos, na maioria dos casos, visam a interação e laços afetivos. E alguns, como o Red Light Center, têm foco no sexo explícito. E é aí que pessoas com os problemas que mencionei no início do texto — depressão, fobia social, deficiências físicas, ou disforia de gênero — encontram uma alternativa.

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O Red Light Center (Utherverse) foi criado com foco no sexo virtual, mas tornou-se muito mais que isso

Se a pessoa for do tipo que imerge nos mundos virtuais, não é difícil se ver interagindo com outros. Para alguns, são apenas dois bonecos coloridos de frente um para o outro, com uma janela de chat ao lado. Para outros, é uma interação quase física — e tão real quando conversar com o vizinho ou o colega de classe. E quando as pessoas “entram” no mundo virtual todos os dias, se encontram com frequência, e fazem coisas juntos, as chances de se viver uma relação afetiva são grandes. 

Já me relataram casos de pacientes de transtornos ou deficiência que têm grandes dificuldades em interações sociais jogarem MMOSG por recomendação de médicos ou psicólogos, porque esses jogos facilitam criar laços. Para pessoas como eu, que imergem com extrema facilidade, as interações são reais, e os sentimentos podem aflorar violentamente.

Casamentos no jogo são normais, e geram outros empregos. Alguns decidiram vender o serviço de “filmar” (gravar um vídeo da tela do jogo) os casamentos e publicar no YouTube. E por que isso faria sucesso, senão pelo fato de que tais casamentos são muito importantes para o casal? Ainda não se convenceu? Pois há inúmeros casos de pessoas que se conheceram e se casaram nos jogos, e a relação acabou indo para o “mundo real”.

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Jogadores também têm liberdade de explorar suas orientações sexuais livremente, sem medo de sofrer com preconceitos; alguns se descobriram bissexuais nos MMOSG

Fui casada no Red Light Center, tive minha própria comunidade, com nossas próprias leis, e conheci pessoas que considero amigas até hoje. Vivemos coisas intensas, tivemos relações fortes e, às vezes, arrebatadoras. Romances tórridos. Intrigas mesquinhas. Pessoas que chegavam e desapareciam. Foi graças ao meu avatar feminino neste jogo que eu pude, pela primeira vez, “viver” sendo vista como uma mulher.

Foi graças aos anos que vivi num mundo paralelo que pude aprender sobre minha própria personalidade escondida desde os 14 anos, idade que eu tinha quando decidi esquecer o fato de que não sou um homem. E graças a este simples joguinho, descobri sobre o verdadeiro potencial que há em mim, adormecido junto com minha real identidade.

Texto publicado originalmente em Revista Subjetiva.


Autora convidada: Daniele Cavalcante é paulista que diz biscoito, bruxinha materialista – um mar de contradições. Escritora de fantasia que nunca termina seus livros, mas tem alguns contos publicados por aí. Redatora no mundo da tecnologia, amante da filosofia e baladeira de plantão. Trans em busca de dignidade.

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