Fran Bow: a estética por trás do horror psicológico e os transtornos mentais

Fran Bow: a estética por trás do horror psicológico e os transtornos mentais

Muitos produtos culturais são influenciados pelo curioso estilo literário nonsense, que tem como principal referência  o clássico Alice no país das maravilhas (1866). A obra literária narra a história de uma menina que, ao cair numa toca de coelho, é transportada para um lugar fantástico, recheado de mistérios, criaturas peculiares e antropomórficas. Ao longo da história, Alice bebe poções, mudando de tamanho ao gosto de sua imaginação, nos remetendo a uma dimensão subjetiva universal do sofrimento humano, isto é, a fantasia que podemos driblar o sofrimento num passo de mágica, evitando, assim, a dor e o desconhecido por meio de um pensamento mágico. Muito mais tarde, em 2015, no universo dos indie games, surge Fran Bow, uma garota que, assim como Alice, vivencia acontecimentos surreais, mas sob diferentes circunstâncias.

A história de Fran Bow tem início em 1944, ao presenciar o brutal assassinato de seus pais, em sua própria casa. Depois de ser encontrada sozinha, desmaiada num bosque, a garota é levada para um asilo psiquiátrico e separada de seu melhor amigo, um gatinho preto chamado Mr. Midnight. No sanatório, Fran Bow é diagnosticada com esquizofrenia, pois na ocasião da morte de seus pais ela teria tido visões de uma criatura bizarra com chifres em sua janela.

A partir desse momento, o game nos leva diretamente a pensar sobre a condição psicológica de Fran Bow. As coisas que ela afirma ter visto são reais? Será que ela está mesmo sofrendo de um transtorno mental? Existe, então, a possibilidade de explorar e conhecer mais sobre a história de outras crianças internadas na mesma instituição, que afirmam ver monstros parecidos com os do relato da menina.

Algumas delas são diagnosticadas com paranoia e outras sofreram abuso sexual. Paralelamente, um tipo de medicação é ministrado à Fran pelo psiquiatra Marcel Deern, uma estranha pílula vermelha que ao ser ingerida causa alucinações terríveis que envolvem um mundo paralelo em que criaturas medonhas existem em cenários cheios de sangue e mensagens impactantes.

Em meio a todos estes acontecimentos, a missão da jovem é descobrir sobre o que está acontecendo, quem foi o responsável pela trágica morte dos pais e onde está Mr. Midnight, seu companheiro fiel. As inúmeras surreais aventuras que se seguem a partir daí, permeadas pelo horror psicológico, são, ao mesmo tempo, divertidas e sinistras.

Certamente o design contribui para essa sensação, uma vez que a ambientação do game consegue ser extremamente cativante e causar arrepios. O formato, no tradicional aponte-e-clique, envolve quebra cabeças e mini games, com mais de 50 personagens interativos e, ocasionalmente, permite que você jogue com Mr Midnight.

Muitas questões importantes são abordadas no enredo e merecem ser destacadas. Uma delas é o já mencionado suposto adoecimento psicológico de Fran e o tratamento numa instituição opressora que opera uma medicalização excessiva em seus pacientes, silenciando-os. Além disso, quase que diretamente, surge uma problematização relacionada ao abuso sexual infantil e à realização de experimentos cruéis utilizando do saber médico institucionalizado.

É quase impossível falar de Fran Bow sem ainda tratar de seus elementos estéticos, fundamentais para uma interação tão profunda como jogador x jogo. Podemos pensar na estética como ”o instante no qual sujeito e objeto se ligam em uma relação comunicacional’’. Em teoria, a experiência que um jogador vivencia de um jogo é a estética que aquele jogo potencialmente oferece, isto é, as mecânicas e dinâmicas planejadas pelos desenvolvedores, que podem comunicar afetos, sentimentos e sensações.

No caso do game desenvolvido pelos suecos Natalia Figueroa e Isak Martinsson, do estúdio Kill Monday, alguns dos elementos estéticos mais poderosos remetem à própria atmosférica sombria, de horror psicológico. Quase todos os cenários foram planejados para que houvessem versões alternativas, preenchidas por figuras de horror.

Às vezes tais figuras surgem repentinamente, aterrorizando o jogador. Não se pode deixar de mencionar ainda algumas referências que podem ser encontradas: as gêmeas siamesas que parecem ter vindo direto dos corredores d’O Iluminado, o chapeleiro maluco com cara de caveira que parece ter saído do país das maravilhas, dentre outras.

Conjuntamente, a sonoridade do game transmite uma tensão constante, bem como uma sensação interminável de desespero. Os próprios personagens da história, por mais que eventualmente tenham uma aparência medonha, constituem-se como figuras únicas e atrativas, principalmente devido à personalidade bem desenvolvida de cada um, o que fica evidente nos diálogos.

Leia também:
[SÉRIES] The Witcher: 5 coisas que esperamos ver na adaptação da franquia pela Netflix
[GAMES] Jogos MMOSG: O que são e como esses jogos ajudam pessoas
[GAMES] Ori And The Blind Forest: Um jogo indie de descobertas e autoconhecimento
[SOFTWARE] Ren’Py: Crie Visual Novels sem ser expert em programação

Outra forte relação estética presente está associada à própria discussão em torno dos transtornos psicológicos. Diversos elementos funcionam como representações da doença mental no imaginário coletivo contemporâneo. Assim como na história de Alice, em que as poções transformam algo da realidade, relacionado à imaginação, em Fran Bow as pílulas têm um poder significativo sobre a transformação da realidade.

Ao ingerir a medicação, Fran é quase que transportada para outra dimensão, mas um lugar em que existe certa influência sobre a realidade. Ao adentrar essa realidade paralela, a menina enxerga monstros e criaturas que se alimentam do sofrimento psíquico humano, bem como certas mensagens e visões que poderiam ser conteúdos presentes no inconsciente.

É provável que a dificuldade de encarar a cruel morte dos pais, bem como o silenciamento por meio de uma internação opressiva sejam as razões de um refúgio à toca do coelho. No caso do indie, a figura guia do coelho pode ser muito bem representada pelo generoso Itward, o bondoso Palontras e o amável gato Mr. Midnight, personagens chave para a superação de Fran. Essa espécie de rede de apoio fornece todo o suporte que a garota precisa para enfrentar toda a culpa, angústia e medo.

Fran Bow é, sobretudo, um jogo sobre esperança e sobre escolhas, com uma protagonista feminina incrivelmente forte e corajosa. É preciso discutir mais sobre transtornos psicológicos e adoecimento psíquico, sobre a internação compulsória, a medicalização e outras formas existentes de fugir de uma realidade que causa angústia e sofrimento. É também preciso tratar sobre redes de apoio e suporte para as pessoas que passam por esse tipo de dificuldade, para que não as enfrentem sozinhas.

Contrariar a ascensão desses discursos emergentes é favorecer uma lógica baseada no ideal de que a supressão dos sintomas e do sofrimento será a solução para os problemas, tal como a ideia de adentrar um universo maravilhoso onde tudo é possível e pode supostamente ser superado.

Fran Bow está disponível para PC, Mac e Linux AQUI.

Escrito por:

11 Textos

Hardcore gamer, punk e antissocial. Fã de RPG's de fantasia, ficção científica e quadrinhos independentes. Passa as horas vagas e as não vagas com seus consoles e PC.
Veja todos os textos
Follow Me :