Primeiro Mataram Meu Pai: a inocência perdida nas memórias de uma filha do Camboja

Primeiro Mataram Meu Pai: a inocência perdida nas memórias de uma filha do Camboja

Parece impossível desassociar a imagem de Angelina Jolie como diretora e a temática de conflitos políticos. Mas desde sua estreia com “Na Terra de Amor e Ódio” (2011) é visível um amadurecimento e uma busca em descobrir seu estilo próprio. E ao que parece, em Primeiro Mataram Meu Pai (2017) Jolie se encontra e consegue apresentar sua própria voz como diretora.

Primeiro Mataram Meu Pai é baseado no livro “First They Killed My Father: A Daughter of Cambodia Remembers”, escrito por Loung Ung, centro da narrativa do filme dirigido por Jolie, com roteiro adaptado por ela em conjunto com a própria Loung. O filme busca expor o conflito armado e político envolvendo o Vietnã, Camboja e Estados Unidos, pouco conhecido pela maioria das pessoas, mas que acabou dizimando aproximadamente um quarto da população do Camboja. Loung Ung viveu essa realidade, e seu livro apresenta as memórias do que ela e seu povo passou. Jolie busca reconstruir a batalha pela sobrevivência de Loung e sua família, em meio a guerra, a fome e a perda da inocência.

Para acompanhar a leitura deste texto, alguns artigos sobre a Guerra Civil no Camboja: um panorama geral do conflito e sobre o envolvimento dos EUA.

Logo no início do filme, assistimos uma sequência difusa com imagens de arquivo ao som de “Sympathy For The Devil” dos Rolling Stones, que de início parece um tanto contrastante demais, mas quando chega o trecho da música “Pleased to meet you / Hope you guess my name / But what’s puzzling you / Is the nature of my game” e vemos a imagem de Nixon falando “o que estamos fazendo é ajudar os cambojanos a se ajudarem, isso não é uma invasão ao Camboja”, acaba sendo uma sacada bem inteligente.

Primeiro Mataram Meu Pai
Primeiro Mataram Meu Pai (2017)

Para uma espectadora desprovida de informações sobre o conflito entre o Vietnã e Camboja, na década de 70, pode parecer um pouco confuso, mas isso não interfere no entendimento geral da obra, pois a explanação do conflito acontece durante o filme. Com Loung Ung (Sareum Srey Moch) começamos a compreender, a partir do olhar de uma criança, a dimensão do embate entre o Vietnã e o Camboja, a influência dos Estados Unidos e instalação (e suas consequências) do regime comunista pelo Khmer Vermelho no Camboja.

Fica claro, que a utilização do recurso de imagens de arquivo é nos mostrar que a narrativa, apesar de ter sido fabricada e encenada, foi real, colocando assim de partida uma reflexão sobre o próprio estatuto da narrativa documental versus a ficcional. É uma questão que vem sendo discutida há algum tempo nos estudos da teoria do cinema e do documentário, e que é pertinente para pensar o filme de ficção ou não-ficção, sob uma perspectiva histórica e social. É preciso questionar, então: o fato de Jolie ter escolhido enunciar a voz de Loung Ung através da encenação, diminui seu caráter documental? A resposta não parece tão simples, já que, em primeiro lugar, a narrativa proposta no filme flutua entre uma certa ficção da memória de Loung e uma não-ficção da história de Camboja.

E em segundo, o que assistimos é a visão estética de Jolie sobre a vida de Loung. Somos mediados por seu olhar para entender a história de uma menina de classe média alta, filha de um militar do governo que é deposto pelo Khmer Vermelho, e que vê as dificuldades da família e de seu povo em uma tentativa forçada (e frustrada) de instalação do comunismo no país.

Jolie aposta na câmera subjetiva para colocar a espectadora no ponto de vista de Loung, ainda que não seja um recurso utilizado integralmente durante a obra, boa parte dela é apresentada sob este recurso, mesclando com planos da menina – que ficam mais frequentes do meio para o final, a fim de mostrar o desgaste físico e emocional da personagem.

Primeiro Mataram Meu Pai
Primeiro Mataram Meu Pai (2017)

É interessante destacar também, que apesar de Jolie abusar da câmera subjetiva, ela também utiliza outros artifícios estilísticos para criar uma sensação de que estamos vendo através de Loung ou que estamos muito próximas a ela. Dessa forma, a presença de planos muito fechados no seu rosto ou dos outros personagens, planos acima do ombro/costas da personagem, por exemplo, constrói uma afinidade entre a espectadora e a menina, que divide conosco sua história e suas emoções. No entanto, esse mesmo subterfúgio vai criando também uma ambiência angustiante, a medida que a história se desenrola e que sentimos a fragilidade de Loung de perto.

Primeiro Mataram Meu Pai é também um filme de silêncios. Loung tem pouquíssimos diálogos, e mesmo que vivencie situações chocantes, Loung chora apenas três vezes. A primeira é após sonhar com um banquete, e ao acordar, se esgueira para pegar um pouco de arroz que o seu pai conseguiu pegar escondido da plantação em que trabalham. (Um destaque interessante para os sonhos de Loung e a forte presença das cores, que contrastam com sua própria realidade reprimida em que todos devem banir roupas coloridas e usar somente preto com o lenço vermelho e branco, característico do exército do Khmer Vermelho).

Na segunda vez que Loung chora é quando seu acampamento é bombardeado. A terceira é quando ela vê diversas minas que ela ajudou a colocar, explodirem logo na sua frente, matando/ferindo várias pessoas que estavam tentando fugir do combate entre o exército vietnamita e do Khmer Vermelho. Três choros, três motivos diferentes, três vezes que uma menina demonstra uma fibra emocional que poucos adultos tem. Culpa, medo, responsabilidade, tudo isso passado somente pelo olhar de Sareum Srey Moch.

Primeiro Mataram Meu Pai
Primeiro Mataram Meu Pai (2017)

O que leva a sua atuação: impecável e dispensa qualquer uso de palavras ou gestos, o seu olhar faz todo esse trabalho. Moch conseguiu na sua primeira vez diante das câmeras, transparecer um retrato tão expressivo de uma realidade que tantas pessoas não fazem ideia que aconteceu, e que marcou a história de um lugar que sofre até hoje suas consequências.

Ainda que a visão de Loung nos ofereça, em um primeiro momento, uma base narrativa para tentar entender o que está acontecendo com sua família e seu país, já que captamos através dela conversas do seu pai com sua mãe, colegas do governo, entre outros; há outros dois aspectos advindos dessa escolha de perspectiva que incidem diretamente na trama, e que estão condicionados um ao outro: a dicotomia presente na representação das crianças/soldados do Khmer Vermelho e a perda gradual da inocência infantil.

Na primeira parte do filme, as tomadas sob o olhar de Loung denunciam a inocência da menina, percebe-se que ela sabe que há algo ruim acontecendo (ao ouvir o pai conversando com o amigo militar, a menina ligeiramente muda de semblante, por exemplo), mas ainda assim tenta manter um nível de normalidade (até porque é o que família vem fazendo), ao dançar com seus irmãos, brincando de amarelinha, tendo um jantar farto com sua família. A menina até esboça um sorriso quando vê o exército de Lon Nol (o qual o pai de Loung trabalha) entrando na cidade de Phnom Penh e comemorando “os americanos foram embora, os cambojanos devem se unir”.

O clima muda rapidamente quando o exército do Khmer Vermelho chega logo atrás, todos armados e demandando que a população de Phnom Penh evacue a cidade por três dias, pois os Estados Unidos irão bombardear a capital. Um tanto contraditório com o discurso do exército que havia chegado antes, mas quem se atreve a dizer não para um monte de gente armada, certo?

Primeiro Mataram Meu Pai
Primeiro Mataram Meu Pai (2017)

A partir desse momento, já é possível reconhecer a presença dicotômica do “ser criança” antes e depois do Khmer Vermelho, e a câmera subjetiva dá força a essa exposição. Há dois momentos significativos no filme de Jolie em que essa dicotomia está presente: no início da obra, quando ela vê as crianças como soldados com suas armas em punho e percebe a diferença entre a sua realidade e a deles; e quando ela própria percebe os danos causados pelas minas que havia escondido durante a fase que treinou como guerrilheira. No primeiro momento, Loung percebe uma realidade diferente da que estava habituada, no segundo momento, percebe que esta nova realidade está agora incrustada na sua própria história de vida.

A filha do Camboja nos mostra, sob o belíssimo recorte de Angelina Jolie, a vulnerabilidade e a dor em duas faces da inocência, duas faces da infância e duas faces da guerra.

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Publicitária, mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, feminista, apaixonada por arte e vivendo um caso particular de amor com o cinema.
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