O Grande Gatsby: a decadência do sonho americano

O Grande Gatsby: a decadência do sonho americano

Talvez você conheça a adaptação cinematográfica de O grande Gatsby de 2013 através do famoso meme de Leonardo Di Caprio segurando um drink com fogos de artifício ao fundo. Possivelmente, reconheça a narrativa como uma história de um romance impossível que termina em tragédia. 

É inegável que há, sim, uma história de romance – ou triângulo amoroso – que permeia a história de Jay Gatsby, observada e narrada por Nick Carraway. No entanto, seria um tanto simplista resumir a riqueza temática da obra de F. Scott Fitzgerald (1896-1940) ao relacionamento entre Gatsby e Daisy. 

Em seu livro, publicado pela primeira vez em 1925, Fitzgerald retrata a própria época em que vivia naquele momento, o próspero contexto estadunidense dos anos 20.

O autor habilmente apresenta o American way of life em um ritmo paradoxal. A história, por exemplo, gira em torno de ricos com personalidades extravagantes, enquanto o narrador é um homem pobre e puritano.

O personagem central, Gatsby, é construído pelo narrador, assim como sua imagem é inventada por seus convidados nas festas. Gatsby, apesar de sua grandeza sugerida pelo título, é assassinado por um homem desimportante do “vale das cinzas”.

Longa "O grande Gatsby" (2013)
O grande Gatsby (2013)

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Essas diferenças dão a chave para compreender as próprias contradições que existiam nos “loucos anos 20” dos Estados Unidos. Mais que retratar e sintetizar o sonho americano, Fitzgerald parece ironizá-lo, dando ao seu personagem mais representativo desse sonho, um destino cruel. 

O mito do homem americano

Em seu livro Hollywood na cultura brasileira: o cinema americano na mudança da cultura brasileira na década de 40, Cláudio de Cicco explora o “mito do homem americano” através de teorias antropológicas. Ele analisa os critérios que os estadunidenses usaram para criar sua identidade e senso de pertencimento.

No texto, o autor utiliza esse conceito, “o mito do homem americano”, para descrever o cinema estadunidense em sua era de ouro como o grande difundidor de sua ideologia, mas tomamos a liberdade de adaptar para a literatura e nos concentrarmos na obra de Fitzgerald.

F. Scott Fitzgerald
F. Scott Fitzgerald

Vale lembrar, antes de partirmos para as características elencadas por Cicco, que essas não são, nem de longe, o motivo da riqueza do país no início do século XX.

Desde o final do século XIX, o país já praticava diversas invasões e outras medidas imperialistas, além de se aproveitar da condição geopolítica (leia-se grandes guerras) para angariar poder e dinheiro – e, claro, todo esse privilégio e riqueza sempre estiveram nas mãos de ricos e novos ricos, a terra abençoada por Deus sempre teve seus favoritos.

O sonho americano é baseado na confiança na tecnologia, igualdade de oportunidades para todos, mobilidade social através do trabalho árduo e realização pessoal por meio de conquistas materiais. Isso ocorreu ao som do animado jazz dos anos 20, mas será que essa música era ouvida em todo o país?

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Dito isso, seguimos para os tópicos elencados por Cicco. Dos sete apresentados por ele, destacamos três que melhor delineiam e desenvolvem a jornada de Gatsby rumo ao sonho americano e como Fitzgerald escolheu contar essa história:

1 – “A cultura americana é a cultura do homem médio, que ela exalta de preferência aos seres humanos excepcionais” 

Na Europa, sobretudo na era medieval e moderna, construiu-se a imagem do gênio. O homem excepcional, iluminado por Deus ou metido com coisas sombrias, que tirava do metafísico a sua força e talento.

Sendo os Estados Unidos um grande concorrente à potência mundial ao lado dos países europeus, era necessário que a identidade estadunidense estivesse ligada ao contrário disso: um país de homens simples e trabalhadores, que conquistaram suas riquezas pelo mérito, sem depender de uma origem nobre.

No livro de Fitzgerald, a origem de Gatsby é revelada aos poucos, entre mentiras e histórias mirabolantes contadas pelos curiosos de sua vida. Era certo que ele viria de alguma origem humilde, já que não possuía um sobrenome distinto.

E essa noção era correta: de fato, Jay Gatsby veio de uma família de fazendeiros, origem que ele despreza e nega com veemência desde a juventude. Em uma oportunidade – ele conta ao narrador – conheceu Dan Cody, um magnata dos minérios, que o educou para os negócios, mas de quem ele nunca obteve fortuna.

Seria, então, esse o mérito de Gatsby? Um garoto pobre que “venceu na vida” após ser educado, preparado e trabalhar duro? Poderia ser essa a história, em perfeita consonância com o mito americano, mas aí está uma das maiores ironias da narrativa de Fitzgerald: Jay Gatsby era, na verdade, um exímio contrabandista envolvido com os maiores gângsteres de sua época.

Sem a possibilidade de uma herança e de portas abertas, recorreu ao crime para fazer sua fortuna. Não foi dessa vez que o autor exaltou a meritocracia.

Daisy Buchanan "O grande Gatsby" (2013)
Daisy Buchanan em O grande Gatsby (2013)

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2 – “O americano valoriza acima de tudo o sucesso, mensurável em termos materiais” 

Como mencionado anteriormente, Jay Gatsby sonhava desde jovem com a grandeza. Nascido como James Gatz na zona rural de Dakota do Norte, abandonou tudo, inclusive sua identidade, em busca do sucesso, medido pelos bens adquiridos e acumulados.

Sua busca ganha destaque ao conhecer Daisy Fay, uma jovem rica e de estirpe, que representa o “troféu” dos seus sonhos. No entanto, apesar de um breve romance, Daisy se casa com Tom Buchanan, outro homem rico de origem aristocrática. Gatsby parte em busca de reconquistá-la, independentemente de seu verdadeiro amor por ela. Essa busca impossível se assemelha à busca pela grandeza e leva à sua ruína.

Primeira edição de "O grande Gatsby"
Primeira edição de O grande Gatsby

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3 – “O americano é otimista e jocoso” 

É muito difícil, como leitor, não simpatizar com Jay Gatsby. Além de ser um personagem complexo e cheio de nuances, ele é extremamente carismático. Um dos maiores traços de sua personalidade é o humor e o otimismo, como bem observa o narrador Nick:

“Se a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos, então havia algo de grandioso naquele homem, certa sensibilidade exaltada às promessas da vida […] era um talento extraordinário para a esperança”

(O grande Gatsby, p.66)

Um verdadeiro americano acredita que o bem sempre vence o mal, não desiste diante do fracasso e confia no pensamento positivo para conquistar o sucesso. Ele se diverte, ciente de que as oportunidades estão no amanhã.

Gatsby, com suas festas colossais, suas roupas chiques e seu “sorriso com ar de eterno consolo”, exala todos esses atributos. Acredita até mesmo que é capaz de trazer o passado de volta, de conquistar o inalcançável: o amor valioso de Daisy.

Em mais uma quebra de expectativa, o autor do romance nos apresenta um homem vulnerável, com esperanças porque elas são tudo o que restam para ele. A esperança é a última que morre, mas uma hora ela também se vai.

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F. Scott Fitzgerald e sua esposa Zelda Fitzgerald
F. Scott Fitzgerald e Zelda Fitzgerald | Imagem: reprodução

Fitzgerald e o sonho americano

Em um desfecho nada otimista e nada bem-humorado, Gatsby não teve qualquer visita ilustre das centenas de contatos de celebridades, novos e velhos ricos que conquistou ao longo de muitas festas, negócios e viagens.

No funeral, apenas Nick, seu único amigo verdadeiro e desinteressado em sua fortuna, compareceu, juntamente com seu pai. Daisy e Tom, notáveis exemplos de americanos distintos, seguiram suas vidas. Nick compartilha uma opinião forte sobre isso:

“Eram descuidados, Tom e Daisy – esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam os outros limparem a bagunça que eles haviam feito.”

(O grande Gatsby, p.239)

No cenário construído por Fitzgerald, vemos a maquiagem de um mundo ideal e brilhante sendo lavada pela cruel materialidade dos fatos. Mocinhas de estirpe não se casam com novos ricos, homens aristocratas raramente sofrem consequências por seus atos, garotos pobres não se tornam magnatas apenas com esforço, e o dinheiro não pode apagar um passado ou comprar um título de nobreza.

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Referências: 

  • Hollywood na cultura brasileira: o cinema americano na mudança da cultura brasileira na década de 40 (1979) – Cláudio de Cicco 
  • O grande Gatsby (1925) – F. Scott Fitzgerald

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Criança dos anos 2000, filha do cerrado mato-grossense, estudante de História(s) e pesquisadora da cultura. Aspirante a crítica.
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