O fascínio dos clássicos literários: por que ainda são relevantes hoje em dia?

O fascínio dos clássicos literários: por que ainda são relevantes hoje em dia?

Antes de falarmos sobre clássicos literários, precisamos recordar a história. Desde o início, a humanidade sempre criou formas de registrar e passar adiante informações relevantes sobre as sociedades então formadas. Símbolos, histórias contadas verbalmente e desenhos eram as maneiras mais conhecidas de manter um fato gravado na mente coletiva. Até que, em aproximadamente 3.500 a.c, os sumérios desenvolveram o sistema de escrita cuneiforme, que foi posteriormente adotado por todos os estados da Mesopotâmia, no Oriente Médio. 

escrita cuneiforme
Cuneiform tablet: hymn to Marduk | Imagem: wikimedia commons

No começo, a escrita cuneiforme era principalmente utilizada para registrar dados contábeis e administrativos, como o registro da posse de um pedaço de terra ou outros bens. No entanto, à medida que se popularizou, esse difícil sistema tornou- se a base de registro de histórias, comunicação e até mesmo registro pessoal.

Embora, no início, o acesso ao conhecimento da escrita fosse restrito às altas sociedades, foi a escrita que possibilitou a todos nós, no presente, romper a barreira do tempo e ter acesso a retratos das mais antigas formações socioculturais, que eram muito, ou pouco, parecidas com o que nos tornamos hoje. Afinal, grande parte desses registros influenciaram e influenciam até hoje o que muitos de nós podem chamar de sociedade pós-moderna.

Jan van der Heyden “Still Life with Books and a Globe” - O que são clássicos literários?
Jan van der Heyden “Still Life with Books and a Globe” | Imagem: Wikimedia Commons

O que são clássicos literários?

Em seu ensaio Por Que Ler Os Clássicos, publicado em 1986, Italo Calvino, conduz o leitor primeiro pela tentativa de definição do que é um clássico e depois pela importância que esses têm ainda hoje. Considerando várias propostas de definição, o autor conclui que existem significados diferentes do que viria a ser um clássico e que sua definição seguiria seu uso e circunstâncias, como o momento em que estes são lidos e quem os estaria lendo. 

Calvino explorou a importância dessa leitura, destacando que um clássico não se trata de livros escritos há mais de mil anos, mas sim de livros que mantêm seu impacto na sociedade mesmo tendo sido escritos há mais de mil anos. E enfatiza que os clássicos não existem para serem lidos por obrigação ou aprendizado, mas por prazer, principalmente porque os clássicos que, segundo ele, “funcionam” se conectam ao leitor, revelando a ele uma centelha de conhecimento de si próprio e do mundo à sua volta.

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular).

E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência.

Por Que Ler Os Clássicos – Italo Calvino, 1986

clássicos literários
Imagem: Wikimedia Commons

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Os clássicos literários ainda têm muito desse impacto no leitor, pois descrevem um comportamento humano que ainda é consistente, mesmo tendo sido escritos sob um contexto histórico e cultural muito distantes. Mesmo depois de todo o avanço social e tecnológico, a natureza humana pode se manter a mesma descrita nesses livros.

A literatura, como o exemplo principal disso, tem em seus clássicos temas e questões universais como amor e ódio, amizade e traição, tristeza e conflitos pessoais que são, sem exceção, atemporais. É justamente essa capacidade de atravessar o tempo que torna um clássico algo que mereça ser lido, mesmo séculos depois de ter sido escrito.

Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram.

Se leio ‘Pais e filhos’ de Turguêniev ou ‘Os possuídos’ de Dostoiévski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.

Por Que Ler Os Clássicos – Italo Calvino, 1986

Raja Ravi Varma: Disappointing News
Raja Ravi Varma: Disappointing News | Imagem: wikimedia commons

E o medo dos clássicos?

É muito comum ouvir de quem ainda não se arriscou a ler um clássico, ou que teve uma experiência ruim com esses livros na escola, sobre o medo de clássicos da literatura. Esse medo é real e justificável, já que muitos foram obrigados a ler clássicos ainda muito novos, em edições antigas, que não acompanham o atual estilo de linguagem e em traduções terceirizadas. 

Mesmo que uma definição de clássico literário seja “aquilo que ainda tem impacto mesmo depois de centenas de anos”, a linguagem com a qual esses livros foram escritos não atravessaram o tempo e recorrentemente dificultam a compreensão de quem não está acostumado. 

Por isso, depois de estabelecida a lógica de sistemas de linguagem, na pré-história, esses sistemas foram constantemente modificados para acompanhar as mudanças nas sociedades e esse processo segue até hoje em pleno funcionamento, de modo que a maneira de falar de 100 anos atrás, ou pior, de séculos atrás, não reflete mais em totalidade as maneiras como nos comunicamos hoje e, por isso, muitos clássicos podem assustar.

Belmiro de Almeida: Bad news
Belmiro de Almeida: Bad news | Imagem: Wikimedia commons

Mas se a humanidade e a linguagem seguem evoluindo, certamente as obras clássicas que tanto inspiram e ensinam não poderiam ficar simplesmente congeladas no tempo. Desse modo, um clássico literário não é simplesmente uma passagem para outros tempos, ele também tem o poder de ser transportado através dos séculos e retraduzido, de maneira que alguém no século XIX possa compreender as escritas de Ovídio, se quisesse, por exemplo, ler a mitologia clássica que tanto inspirou Shakespeare

Mas então, por onde começar a ler clássicos literários?

Existem muitos clássicos literários que são tão simples de serem lidos quanto qualquer outro livro, não simplesmente por terem sido traduzidos recentemente, mas também por tratarem de temas ainda relevantes à natureza humana. Esses livros trazem consigo uma semelhança que acompanha a humanidade desde sempre, com uma identidade automaticamente reconhecível: a narrativa ficcional

Ainda não foi possível datar com precisão o início das narrativas ficcionais, mas é possível ver traços do que conhecemos hoje como contação de histórias já nos primeiros registros de escrita humana. A narrativa ficcional é utilizada tanto na transmissão de conhecimento como no simples entretenimento que vemos em filmes, séries, novelas, HQs e livros no geral. Com os clássicos da literatura isso certamente não seria diferente, principalmente quando se trata de expressar ou explorar questões de natureza humana. 

por onde começar a ler clássicos literários?
Pierre-Auguste Renoir: Girl Reading | Imagem: Wikimedia commons

Em Orlando: Uma Biografia, de Virginia Woolf, por exemplo, o personagem Orlando viveu grandes aventuras atravessando 3 séculos, primeiro como um homem e depois como uma mulher, dando vida a uma fantasia sobre longevidade e fluidez do gênero, explorando e enfatizando as diferenças de poder e liberdade entre homens e mulheres e fazendo refletir sobre como o tempo afeta a vida e a personalidade de alguém. O simples enredo desse livro, que hoje é considerado um clássico da literatura, foi capaz de capturar a atenção de centenas de milhares de pessoas através dos seus 95 anos, desde a sua primeira publicação.

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Liev Tolstói em A Morte De Ivan Ilitch relata, através do personagem no leito de morte, as reconsiderações do fim da vida. O renomado juiz Ivan Ilitch descreve seus últimos momentos de vida confrontando a própria mortalidade e tendo conhecimento da efemeridade de todas as suas conquistas. A busca por status, altos cargos e renome, perdem todo o sentido diante da inevitabilidade da morte, que chega para todos e que é um tema debatido há milênios.  

Diferente de Tolstói, Emily Brontë explode vida com O morro dos Ventos Uivantes, onde apresenta a força selvagem da natureza humana no seu ápice. O próprio título do livro já sugere esse tema; o morro cujos ventos são tão assustadoramente violentos quanto os sentimentos de seus moradores. Na estranha relação entre Heathcliff e Catherine, Brontë explora o amor, a amizade, a raiva e o rancor ao extremo, o que confere ao livro um misto de amor e ódio de seus leitores até os dias de hoje.

John Martin: Landscape, Possibly the Isle of Wight or Richmond Hill
John Martin: Landscape, Possibly the Isle of Wight or Richmond Hill | Imagem: Wikimedia commons

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Esses são só alguns exemplos de como muitos clássicos da literatura são até hoje cultuados por serem capazes de contar, mesmo depois de tantos anos, histórias de personagens que parecem tão reais e que são tão cativantes quanto personagens de um filme ou novela — muitos desses livros são inclusive adaptados para o cinema. 

Hoje, temos fácil acesso a uma vasta quantidade de livros considerados clássicos no mundo, e essa soma nunca vai parar de crescer, mas isso nem de longe significa que um “bom leitor” deva ou vai querer ler todos os grandes títulos. A respeito desse leitor, Calvino se adianta e abre o ensaio com um aviso de segurança para os novos exploradores desse mundo. 

Para tranquilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras ‘de formação’ de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.

Em resumo, os clássicos literários têm um impacto duradouro na sociedade, porque têm o poder de transportar qualquer um a diferentes épocas e culturas. A sua leitura nos permite explorar e compreender o mundo e a nós mesmos, enquanto nos conectamos com as personagens através das páginas dos livros. 

A escrita continua a ser uma ferramenta poderosa que nos permite compartilhar nossas histórias, ideias e emoções, garantindo que a essência da humanidade seja registrada e transmitida para quantas gerações conseguirmos atingir.

Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.

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Roteirista e Copywriter formada em Produção Audiovisual. Amante de livros, filmes e podcasts.
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