As histórias, épicos e contos da mitologia grega estão entre os que mais fascinam e inspiram leitores e autores no mundo, senão a mais. Usada como base para vários livros, filmes e seriados, não é incomum ver personagens como Hércules, Aquiles, Teseu e Ulysses, bem como deuses gregos como Zeus, Poseidon, Hades e Athena serem retratados e repaginados de várias maneiras e em diversas mídias diferentes.
Acontece que a mitologia grega é o máximo da Jornada do Herói, inspirando gerações e gerações de autores. Todavia, vemos o lado heroico de figuras masculinas cujos nomes permanecem há eras na memória popular e lemos sobre a grandeza e os atos de bravura nas guerras. Mas esquecemos um lado da história: o das mulheres.
Os homens contam a bravura das narrativas, mas a realidade nua e crua fica a cargo das mulheres ao longo da história.
Mitologia Grega e a Reconstrução da História das Mulheres
Esquecemos que em uma guerra — como a Guerra de Tróia — as mulheres são as que mais sofrem. Elas não são brutalmente mortas e deixadas para apodrecer em meio a Terra de Ninguém. As mulheres têm seus corpos violados, assistem seus pais, maridos, irmãos e filhos serem mortos e ainda são tratadas como “prêmios” de guerra, na qual são dívidas e dadas aos melhores guerreiros, como escravas. Tanto domésticas quanto sexuais.
Também esquecemos ou ignoramos que toda história tem mais de lado e o lado das mulheres esquecidas pela história, desprezadas e subestimadas apenas por serem mulheres, importa tanto quanto qualquer outro. Até mais.
Essa subestimação vem até mesmo do criador do conceito Jornada do Herói, de Joseph Campbell: ao ser questionado por uma aluna de seu curso sobre o papel da mulher nas histórias, o escritor mitologista respondeu que a mulher era a mãe ou a amante do herói. Um papel importante, afirma Campbell, pois a mulher ou gera o herói ou é um de seus objetivos na trama (salvá-la, se casar com ela).
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Mal percebeu Campbell que apesar de seus estudos terem contribuído e ainda tem grande peso da confecção de enredos e tramas nos tempos atuais, o mesmo ignora que reduziu as mulheres o mero papel de coadjuvantes. As personagens femininas da maioria esmagadora das histórias clássicas não passam de meros acessórios de narrativa, sem nunca terem o poder de conduzir e contar suas próprias histórias.
Aí que entra o trabalho de autoras como Madeline Miller, Pat Barker e Maria Tatar. As três escritoras são algumas das autoras que estão conquistando cada vez mais espaço na literatura atual ao recontar histórias clássicas gregas, mas do ponto de vista das mulheres.
Circe e A Canção de Aquiles: desvendando o lado das mulheres nas histórias clássicas
Madeline Miller talvez seja a mais conhecida desses três nomes citados. Ela assina duas obras que viralizaram bastante nas redes sociais, principalmente no TikTok, lida e bem elogiada por sua qualidade de escrita: Circe e A Canção de Aquiles.
Na primeira obra, Miller dá voz e o destaque a uma personagem tida como vilã na mitologia grega que nomeia a obra. Circe é uma feiticeira que vive isolada em uma ilha, onde o herói Ulisses – ou Odisseu – desembarca com sua tripulação e vê seus homens sendo transformados em porcos.
Com a ajuda de Hermes, o herói não é pego pelo feitiço de Circe e a ameaça para tornar seus homens humanos de novo. Até restabelecer sua tripulação e navio, Ulisses acaba tendo um breve romance com a feiticeira, tendo um filho deste relacionamento. Na clássica Odisseia, este é o papel de Circe.
Em uma narrativa envolvente e detalhada, Miller não apenas reconta como nos revela o verdadeiro lado de Circe, no qual ela tem muito mais história do que apenas ser a feiticeira que compartilhou o leito com um herói grego famoso. Além de nos revelar o lado de Circe, Miller nos ilustra como era difícil o papel das mulheres gregas, sejam elas mortais ou não. Circe não é uma vilã ou um feiticeira ardilosa, mas sim uma deusa menor que sofreu desde o nascimento os joguetes dos olimpianos e conheceu de perto a crueldade lascívia dos homens, usando sua magia não como ardis, mas para a própria defesa.
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E em A Canção de Aquiles, embora não foque aqui em personagens mulheres, Miller conta outra perspectiva da história do poderoso guerreiro grego, algoz de Tróia. Com sua escrita envolvente do começo ao fim, Miller dá a voz a Pátroclo, o irmão de armas de Aquiles e principalmente, seu amante. A sexualidade de Aquiles sempre foi vista como uma pequena curiosidade, quando não ignorada por completo.
Neste livro, o amor entre Pátroclo e Aquiles é o principal destaque, além de destrinchar a toxicidade da masculinidade no período grego, no qual criava homens para serem armas de combate e mulheres para os servirem.
O Silêncio das Mulheres: as mulheres troianas na sombra dos heróis
Um contraponto a esse livro é a obra O Silêncio das Mulheres, de Pat Barker, que também conta outro aspecto da Ilíada, só que dessa vez, focando nas mulheres troianas. Quem narra essa história é Briseida, rainha de Lirnesso, uma cidade vizinha a de Tróia e uma das primeiras a cair na mão dos gregos.
Barker, na voz de Briseida, não poupa de maneira alguma quem lê o livro. A protagonista não apenas narra a angústia e o próprio sofrimento de ter seu lar sitiado sem piedade e ver seu marido e irmãos serem brutalmente mortos, como de suas conterrâneas nas mãos dos gregos. É pelos olhos de Briseida que o heroísmo de Aquiles é quebrado e o vemos como é: um homem mimado devido a ascendência divina, cultuado pelos homens ao ponto de se tornar arrogante e prepotente e acima de tudo, bastante cruel.
Esqueça o casal formado no filme Tróia (2004) entre o Aquiles de Brad Pitt e a Briseida de Rose Byrne, em que o mulherengo guerreiro grego seduz a inocente sacerdotisa virgem troiana. Barker nos conta como Aquiles tratava Briseida como um mero troféu de guerra, sua propriedade, ignorando o fato de estar lidando com um ser humano. É que para homens gregos como Aquiles, mulheres não eram dignas de humanidade. Apenas Pátroclo é gentil com Briseida e neste livro, o romance entre e Aquiles é descrito de forma mais sutil, mas é nítido que ambos são amantes, de maneira discreta.
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Entretanto, a vida de Briseida capturada não era muito diferente da sua vida de casada. Mesmo gozando de uma alta posição social, a rainha de Lirnesso era tratada como uma propriedade de seu marido, vivendo confinada em seu palácio e tendo que cobrir seu corpo nas poucas vezes que lhe era permitido sair na rua.
Grega ou troiana, nobre, camponesa ou escrava, a realidade das mulheres daquele tempo era praticamente a mesma: viver para servir os homens, indignas de serem tratadas como humanas. “O silêncio é adequado para uma mulher” frase do livro no qual era a máxima da educação feminina da época.
A Heroína de 1001 Faces: a valorização das trajetórias e narrativas femininas
Mas, como Maria Tatar diz em seu livro A Heroína de 1001 Faces, o poder das personagens femininas é justamente o da palavra e, na falta desta, a capacidade de contar suas histórias.
Por mais que as mulheres tenham sido tratadas como meras coadjuvantes, designadas a mãe ou esposas de heróis ou reduzidas a um prêmio de guerra, mesmo que as mulheres ao longo da história foram violadas, agredidas e sofreram com as tentativas de serem silenciadas, a capacidade e as façanhas de deixarem suas histórias registradas de alguma maneira foi a maneira de resistirem à opressão masculina.
Quando uma mulher conta uma história, é bem diferente da história que o homem conta. A eles, a glória, a busca pelo legado atemporal, a grandeza da jornada e do heroísmo, tudo isso descrito de forma épica e apoteótica. A elas, a verdade nua crua, a história nunca contada, os trajetos de dor e flagelo, mas também de resistência e resiliência.
Em A Heroína de 1001 Faces, a professora e pesquisadora de folclore e mitologia trás uma provocação a resposta de Campbell a aluna sobre o papel da mulher na Jornada do Herói. Tatar apresenta uma coleção de mulheres não necessariamente empunhando uma espada ou uma caneta, mas que de alguma maneira traçaram sua própria aventura.
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Se Campbell, dos 1000 personagens em que analisou para criar o conceito do “monomito”, só menciona uma heroína para 999 heróis, em seu livro, Maria Tatar faz uma pesquisa abrangente ao trazer heroínas com as mais diversas habilidades, como a esposa do Barba Azul, Jane Eyre, indo até Hermione Granger, Katniss Everdeen e até mesmo Starr Carter figuram entre as mulheres na busca por justiça.
Mesmo que essas personagens não tracem os caminhos tradicionais da Jornada do Herói, elas carregam valores da coragem, do desafio e do cuidado. Mulheres que se recusaram a ficar em silêncio, aquelas que usaram o poder das palavras e que encontram alguma maneira para contar o seu lado na história.
Tatar ainda brinca com a característica da curiosidade feminina, que sempre foi vista de maneira negativa nas histórias. Por isso, seu livro também trata de analisar obras como Mulherzinhas e Anne de Green Gables, além de detetives femininas como Nancy Drew, Miss Marple, cuja curiosidade é a habilidade útil que torna as mulheres hábeis em desvendar mistérios e buscar justiça social.
Vozes femininas e o poder da reinterpretação mitológica
Quando se lê obras como Circe ou O Silêncio das Mulheres, pegar A Heroína de 1001 em seguida é praticamente obrigatório para se complementar a leitura. Em uma atualidade onde temos tanta a necessidade para se lutar por narrativas exclusivamente femininas, é importante entender a forma como as mulheres contam suas histórias e como construir uma audiência heroína, cuja bravura está na curiosidade para entender e resolver problemas e na resiliência para sobreviver às adversidades.
Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.