A autoria feminina na poesia contemporânea brasileira desempenha um papel fundamental para a desconstrução de um papel que a sociedade patriarcal impôs à mulher. As vozes das poetas vêm, acima de tudo, para quebrar estereótipos e ganham visibilidade na medida que exploram temas relacionados à identidade feminina, empoderamento, sexualidade, violência de gênero, bem como maternidade, ancestralidade, entre outros, cada uma com sua dicção.
Uma importante escritora e poeta contemporânea é Conceição Evaristo, cuja escrita fala sobre questões como o racismo, e a realidade das mulheres negras no Brasil. Seus poemas são carregados de denúncia social ao mesmo tempo que representam uma voz poderosa para as mulheres negras. Adélia Prado é outra poeta proeminente dentro da poesia contemporânea. Sua escrita traz o corpo feminino e a religiosidade, frequentemente desafiando normas sociais.
Cada uma dessas poetas brasileiras possui uma voz única que enriquece a diversidade da poesia contemporânea.
Nina Rizzi
Nina Rizzi é historiadora, editora, poeta e tradutora. Nasceu em São Paulo, formou-se em história pela UNESP e hoje vive em Fortaleza. Sua poesia é crítica, sobretudo de resistência, com temas do cotidiano feminino e negro, especialmente resistência. Seu primeiro livro, Tambores pra n’zinga, foi publicado em 2012 pela Editora Multifoco.
Outras produções individuais são: A Duração do Deserto, 2014 (Editora Patuá); Romério Rômulo: ¡Ah, si yo fuera Maradona!, 2015 (Edições Dubolsinho); Geografia dos ossos, 2016 (Editora Douda Correria); Quando vieres ver um banzo cor de fogo, 2017 (Editora Patuá); Sereia no copo d’água, 2017 (Edições Jabuticaba).
1.
sem saber dizer
olho a sarjeta mais suja
qualquer um podia saber que não há menina nesse chão
sem ter sido um rastro de violência
olho a sarjeta mais suja
e sei que não posso voltar a pisá-la
dormir sob dejetos, restos de obras e cimento
a menina pisada é ainda outra e outra
a menina quem poderá dizer se nunca mais sair da sala de psicopatologia
– isto que é chama, pedra, mãos, iml
é fraco dizer alguém
é fraco dizer animal
é tão fraco dizer os rasgos de toda história
2.
uma sarjeta é o lugar onde se deixar uma menina
uma menina é um ser vivente, um ser vivente é esse
que se atravessa e mata e nunca existiu
não vou mais pisar a sarjeta de quando era uma menina
sob as mãos do pai, do outro e do outro
todo e qualquer desconhecido
um senhor me pergunta se foi um poema que se salvou
como sede de qualquer morada
o claustro, senhor, não pisar qualquer chão
ser encarcerada é um ótimo ataque, lê-se numa vala
3.
a rua lá de casa é um aguaceiro pronto
a pisar, cair, uma abertura pra o fim do mundo
o fim do mundo acontece
cinco vezes por hora a cada onze minutos
é quando um ser vivente se converte em menina na sarjeta
sob as mãos de um, qualquer um ou trinta que é mais que gente
mais que gente não é um monstro um monstro
é mito ou é beleza
não existe beleza quando uma menina está na sarjeta
eu nunca mais vou à sarjeta, mas olha:
está cheia a sarjeta de outras meninas
eu sou ainda outra, uma menina que não pode ser mais
atravessamento- violência– fim—
– Poema do livro Sereia em copo d’água
Jarid Arraes
Escritora, poetisa e cordelista, Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte e também atuou como jornalista. Suas obras são conhecidas por discutirem questões sociais, de gênero e culturais.
A autora destaca-se por mesclar poesia, contos e elementos da cultura popular nordestina em linguagem poética, além de trazer críticas afiadas sob o ponto de vista social, igualmente, debates de classe, raça e gênero. Em julho de 2018, Jarid Arraes lançou seu primeiro livro de poesia, Um buraco com meu nome, apresentado durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP).
Jarid também é autora de Corpo desfeito e Redemoinho em dia quente, que foi vencedor do prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura.
Leia também >> Redemoinho em Dia Quente: a pluralidade de mulheres na obra de Jarid Arraes
Preparo
escrevo cada letra
como pílulas tarja-preta
que não engoliuma a uma
como feijões catados na bacia
reproduzindo os dedos ágeis
que minha avó possuíapego as palavras formadas
prozac
⠀⠀rivotril
⠀⠀⠀⠀azepam
⠀⠀⠀⠀⠀⠀oxetinae ouço o pingado agudo
que minha avó também
ouviapec pec
os feijões bons dos ruins
numa água fria
de torneiraquanto tempo deve-se
cozinhar
um suicídio
antes de comê-lo?– Poema do livro Um buraco com meu nome
Adelaide Ivánova
Adelaide Ivánova nasceu em Recife, Pernambuco, é poeta, fotógrafa, tradutora e jornalista. Publicou seu primeiro livro de poesia, O Martelo, em 2017, que traz à tona questões sociais de opressão, misoginia, racismo e homofobia, acima de tudo com uma voz feroz e direta. Adelaide também atua como tradutora, seus trabalhos incluem traduções para o português de Audre Lorde, Gloria Anzaldúa e June Jordan. Além disso, ela trabalha como professora de literatura.
A porca
a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.
– Poema do livro O martelo
Jussara Salazar
Jussara Salazar nasceu em Pernambuco, em 1959. É poeta, artista plástica e tradutora. Publicou, em 2020, O Dia em que Fui Santa Joana dos Matadouros: do Amor entre Fogo, Faca e Bala (Cepe), obra que venceu o prêmio Hermeliano Borba Filho e foi finalista do Jabuti. Suas obras abordam temas como ancestralidade, a partir da oralidade e memória, como em Bugra, 2022 (Kotter) e Carpideiras, 2011 (7letras). Fia, 2016 (Selo Demônio Negro) e Corpo de peixe em arabescos, 2019 (Kotter Editorial) são algumas das obras de Jussara.
Odília
Amanheceu
os barcos vieram
sentimos o cheiro dos peixes
recém colhidos
o cheiro do pão
saído do forno de barro
que a velha amassou
com suas mãos salobras
farejamos no ar
o tempo de fazer
do grão e da areia
o saber [oculto entre as águas]
o mar vai
o mar vem
em feixes líquidos
lavando o mal
fabricando
parindo
filhas e peixes do sal
silenciosamente
[um talismã]
– Poema do livro Corpo de peixe em arabesco
Prisca Agustoni
A autora nasceu na Suíça, vive no Brasil desde 2002 e é docente de Literatura Italiana da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Prisca traduz suas próprias obras que transitam em diversos idiomas, assim, dialogando com múltiplas linguagens.
Seja em prosa ou poesia, seus temas percorrem a expressão humana da dor, da indignação, das denúncias, por outro lado, da sensibilidade. Como resultado, suas obras convocam debates sobre injustiças, bem como sobre a dignidade humana. O mundo mutilado, 2020 (Editora Quelônio), O gosto amargo dos metais, 2022 (7Letras), Entre o que brilha e o que arde, 2022 (Editora Urutau) e Pólvora, 2022 (Edições Macondo), são livros lançados no Brasil.
1. Não sabem que são anjos
os anjos que vivem conosco no campo:
acostumados a remexer no lixo
sabem do estômago a fome,
do músculo as câimbras.Reviram as línguas
como frutos caídos
cariados no chão, na torre
dessa babel horizontalaqui, onde o latim eslavo
estala suas sementes
que florescem tardiase no fígado do dia
destilamos
nosso álcool2. Somos os frutos estranhos
presos aos galhos
de uma árvore
que nos repudianão há refúgio possível
em quintal proscritosó essa suspensão
esse arame farpado
uma revolta explosiva
ainda que tardia– dentro de nós
é onde macera
o açúcar
o licor
da colheita”– Poemas do livro O mundo mutilado
Leia também >> De gados e homens: a representação da violência na obra de Ana Paula Maia
A importância da autoria feminina na poesia brasileira
A contribuição da autoria feminina na poesia contemporânea, para a cena literária, é transformadora, na medida em que conquista espaços que historicamente eram dominados por homens. Dessa forma, suas vozes trazem uma poética consciente e que estão articuladas com linguagens e temas do feminino e da condição da mulher. No entanto, ainda há um longo caminho para percorrer para consolidar a representação da mulher, assim como suas narrativas múltiplas que fazem oposição aos cânones tradicionais da literatura.
Referências: