“Autobiografia do Vermelho” e a monstruosidade queer por Anne Carson

“Autobiografia do Vermelho” e a monstruosidade queer por Anne Carson

Nas mais famosas versões do mito grego, Gerião é apenas um obstáculo. O gigante vermelho monstruoso de três corpos deve ser derrotado pelo herói Herácles (ou Hércules na versão romana) para o cumprimento de seu 10º trabalho. Herácles o atinge com uma flecha envenenada em sua testa e rouba os seus preciosos gados vermelhos. Agora ele pode prosseguir em sua missão rumo ao seu 11º trabalho: roubar as três maçãs douradas do jardim das Hespérides. Ele não pensa mais em Gerião. A sua história havia acabado.

Mas não para Anne Carson. Ao escrever o romance em verso Autobiografia do Vermelho, lançado no Brasil pela Editora 34 em 2021, a escritora canadense se inspira no mito grego original para recontar a história de Gerião e de Herácles. O seu ponto de partida é a poesia épica do poeta-lírico clássico Estesícoro cujo poema Gerioneida, do qual hoje restam apenas fragmentos, narra parte da vida de Gerião sob um olhar humanizador.

Gravura de Cornelis Cort retratando o confronto entre Herácles e Gerião
Herácles enfrenta Gerião em ilustração do artista renascentista Cornelis Cort (Imagem: reprodução)

A delicadeza com a qual Anne Carson aborda a natureza de Gerião em seu romance parece reverberar o modo pelo qual o monstro é escrito por Estesícoro: em um dos fragmentos de Gerioneida, o poeta compara o corpo defunto de Gerião a uma flor de papoula que cai e perde as suas pétalas. Em um outro fragmento, a mãe do monstro chora ao implorar que ele não lute contra Herácles, de maneira semelhante a outras famosas mães de heróis gregos, como a de Heitor de A Ilíada. Esses momentos de simpatia pelo monstro Gerião revelam a preocupação do poeta em humanizá-lo.

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Mesmo que Gerioneida seja uma inspiração direta para Anne Carson, a escritora não está interessada em simplesmente preencher as lacunas deixadas pela história, mas em criar a sua própria versão – essencialmente contemporânea, mas que carrega a atemporalidade dos mitos gregos ao evocar sentimentos universais através de seus versos.

Em Autobiografia do Vermelho, Carson torna o monstro mítico em seu protagonista introvertido e socialmente inepto, que cresce cercado de inseguranças a respeito de sua aparência física monstruosa.

O comportamento e a personalidade de Gerião no romance pode ser entendido, em parte, como consequência do seu relacionamento com a sua família: ele é emocionalmente distante de seus pais, e é abusado por seu irmão mais velho durante a infância. Essas experiências o tornam ainda mais reservado e fazem com que ele se volte à arte, especialmente a fotografia, como forma de autoexpressão.

A ambientação da história também é significantemente diferente da do mito original: O Gerião de Anne vive nos Estados Unidos no século XX e participa de atividades tipicamente modernas, como ir ao baile da escola, pichar muros e visitar locadoras de filmes. Mas há ainda uma diferença mais marcante na versão de Carson: O seu Gerião é queer. E Héracles é o seu primeiro amor.

Anne Carson, autora de "Autobiografia do Vermelho"
Anne Carson (Fotógrafo: Jeff Brown para The New York Times)

A monstruosidade queer na obra de Anne Carson

Há muitos meninos que pensam que são monstros?” Gerião se interroga em um dos fragmentos da Gerioneida reinterpretado por Anne Carson. O sentimento expresso no trecho é constantemente ecoado em Autobiografia do Vermelho. Assim como o Gerião do mito, o Gerião da autora é situado como o “outro” pela narrativa da história. Ele é expressamente diferente, desde a sua infância. A sua baixa autoestima interpreta essa sua diferença como algo monstruoso.

De fato, o corpo vermelho e alado de Gerião mais aparenta ser um sintoma nascido de um conflito interno, isto é, uma representação da sua própria ansiedade por não ser como as outras pessoas. Talvez por isso, a sua aparência física não seja relevante para os outros personagens como é para o próprio Gerião. 

Enquanto estudiosos da literatura clássica, como Franzen (2009), relacionam a monstruosidade do Gerião de Estesícoro ao fato de ele possivelmente representar uma identidade étnica distinta que se opõe ao colonialismo cultural representado pelos heróis gregos tradicionais como Herácles, Carson estende essa metáfora do monstro a uma identidade queer. Dessa forma, o Gerião de Anne Carson seria um monstro porque suas experiências sexuais e de gênero diferem daquelas consideradas aceitáveis por uma sociedade lgbtfóbica. 

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A conexão entre monstros e o queer foi analisada por Jack Halberstam em seu livro Skin Shows: Gothic Horror and The Technology of the Monster. Ele observa que o monstro, como um produto cultural representado na ficção, é visto como uma ameaça à nação, ao capitalismo e à burguesia através do seu corpo não-normativo, que, muitas vezes, é a representação de identidades raciais, de classe, de gênero e de sexualidade. Halberstam comenta ainda que, diferentemente do século XIX, os monstros do horror contemporâneo tendem a contemplar mais claramente identidades sexuais e de gênero que confrontam a cisheterossexualidade. 

No contexto de Autobiografia do Vermelho, não é surpreendente que o personagem LGBTQIA+ se sinta como um monstro. Crescendo em um ambiente opressivo, Gerião nunca pode sentir que pertence ao mundo ao seu redor. Ele encontra a sua primeira oportunidade de felicidade durante a adolescência ao conhecer Herácles.

Herácles, no entanto, parte o seu coração. Pode-se observar assim uma total recontextualização queer do mito grego original: em vez de ser derrotado em um combate com toda a exibição de masculinidade que o ato oferece, Gerião perde para Heracles por ter seu coração roubado

Autobiografia do Vermelho: da baixa autoestima ao amor-próprio queer

Capa da edição da Editora 34

A jornada de Gerião em Autobiografia do Vermelho pode ser lida como um resgate da sua autoconfiança. No começo do romance, Gerião tenta a todo custo ofuscar a sua monstruosidade. As suas asas, característica que facilmente o diferencia dos outros humanos, são cuidadosamente escondidas em baixo de suas roupas. A sua cor vermelha também é um motivo de ansiedade, o que faz com que ele constantemente caracterize as suas adversidades através da cor. Quando ele e Herácles se separam, por exemplo, Gerião imagina uma parede vermelha dividindo o ar pela metade.   

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A medida que o personagem cresce, é perceptível que ele passa a ganhar aos poucos a sua autoconfiança. Já adulto, em uma viagem para a América do Sul, Gerião tira o seu primeiro autorretrato: uma fotografia em que ele está deitado de costas, com as suas asas abertas. Na mesma viagem, ele conhece o novo interesse romântico de Herácles, o jovem peruano Ancash, que conta a Gerião uma história de origem quechua sobre homens sábios com asas e corpos vermelhos. Essa nova perspectiva abre a mente de Gerião em relação ao seu próprio corpo.

Em um outro momento do livro, Gerião usa as suas asas para voar sobre um vulcão e tirar uma foto, que ele declara ser “uma memória da nossa beleza”. A natureza de Gerião é então reexaminada – se antes ela o tornava um monstro assustador, agora ela passa a simbolizar a sua grandiosidade.

No seu quarto de hotel em Buenos Aires, Gerião lê em uma passagem de um livro que diz que “negar a existência do vermelho é como negar a existência do mistério. A alma que assim o fizer um dia enlouquecerá”. Essas palavras sintetizam o desenvolvimento de Gerião durante o romance. Ele deixa de negar sua identidade e aprende a se aceitar como é, e com isso, desenvolve o seu amor-próprio.

A sua monstruosidade ganha um caráter positivo a medida em que o personagem supera a baixa autoestima. Ser um monstro, mais precisamente, um monstro queer, torna-se motivo de orgulho. Se no mito original é narrada a morte de Gerião, Anne Carson escolhe escrever sobre o seu renascimento. 

Referências:

  • FRANZEN, Christina. Sympathizing with the Monster: Making Sense of Colonization in Stesichorus’ Geryoneis. Quaderni urbinati di cultura classica, v. 92, n. 2, p. 55- 72, 2009.  
  • HALBERSTAM, J. Skin Shows. Durham: Duke University Press, 1995.

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Formada em Letras, mestranda em Literatura. Grande apreciadora do surreal, do fantástico e do onírico. Passa boa parte do seu tempo livre pensando e escrevendo sobre mulheres fictícias.
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