Pobres Criaturas não é nem de longe um filme sobre libertação feminina; pelo contrário, é o seu completo oposto. Embora o filme ensaie críticas ao machismo, essas críticas não se concretizam em momento algum. Em vez de apenas apontar a misoginia, o filme a reforça em várias camadas sutis.
Acredito que o diretor Yorgos Lanthimos quis realmente abordar uma jornada feminina supostamente rumo à sua emancipação. O problema é que ele trata essa emancipação de um ponto de vista extremamente falocêntrico, tornando-se misógino. O próprio abuso de closes ginecológicos, até dos cadáveres femininos, e cenas desnecessárias de nudez da protagonista dão o tom de fetichismo presente no filme.
Libertação feminina em Pobres Criaturas?
A narrativa é elaborada para capturar o público feminino para lógicas masculinas de “libertação”, que no fim culminam apenas em amarras patriarcais mais sofisticadas, oferecendo migalhas ilusórias sobre Bella Baxter (Emma Stone) estar realmente no controle de sua vida. A personagem recebe pouquíssimas opções reais para se emancipar sem estar sendo apenas conduzida por um homem nesse processo.
Suas decisões de vida estão sempre ligadas aos homens, onde troca um pelo outro. Primeiro, ela abandona seu criador e o noivo Marx (Ramy Youssef) pelo aventureiro Duncan (Mark Ruffalo), depois abandona Duncan por vários homens [na prostituição]. E novamente deixa Max para seguir com Alfie (Christopher Abbott).
Mesmo ao final, quando se livra de Alfie, ela segue tutelada por Marx em sua trajetória como estudante de medicina. Em nenhum momento Bella Baxter vive de forma autônoma, sem o intermédio masculino em sua vida.
Apropriação dos corpos femininos em Poor Things
Enquanto a criatura de Shelley era formada por vários pedaços de homens mortos, criando uma nova vida de forma artificial e com aspecto monstruoso, a criatura de God é formada pelo corpo intacto de uma única e bela mulher. Ela é revivida, mas seu cérebro é trocado. Isso funciona como uma metáfora da realidade: os homens não podem criar vida, mas podem se apropriar dos corpos femininos para gerá-la.
A figura desse criador masculino tentando roubar o poder da criação é um simbolismo quase religioso, representando a estrutura patriarcal em sua própria materialidade: os homens controlam a vida e a morte das mulheres e, através do aprisionamento da sexualidade e do corpo delas, controlam a criação da espécie, já que não podem gerá-la.
O personagem God representa literalmente como os homens acham que possuem o poder sobre a vida das mulheres, incluindo a decisão sobre quando elas podem morrer. Ao ressuscitar uma mulher que se suicidou, ele interfere em seu livre-arbítrio. A criatura que traz a vida, com um novo cérebro, é portanto uma mulher sem consciência de si mesma e sem qualquer autonomia.
Bella Baxter e a fantasia masculina sobre a mulher perfeita
Analisando essa narrativa, também é possível fazer uma relação com a proibição do aborto: o corpo da mulher [Bella] é apenas um invólucro, enquanto o bebê que seu corpo carrega é quem tem valor, sendo apenas o cérebro do bebê poupado. A consciência de uma mulher adulta é descartada para humanizar a consciência do bebê não nascido.
A escolha do cientista em reviver o bebê no corpo da mulher adulta para seu experimento é, portanto, uma representação didática do sistema patriarcal: retirar a autonomia de uma mulher adulta sobre sua própria existência, confinando-a a uma mente infantilizada e manipulável, reflete uma fantasia tipicamente masculina sobre a mulher perfeita (e anti-aborto).
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Na maior parte do filme, Bella pode ser interpretada como uma criança presa em um corpo adulto. A personagem possui um corpo de mulher, mas seu cérebro é claramente infantil, apresentando um desenvolvimento motor e cognitivo bastante primário. Seus movimentos são descoordenados, sua fala é desconexa e ela não possui mecanismos mentais de controle das emoções.
Casamento infantil
Apesar de Bella mal ter coordenação motora para andar e comer, ela possuía coordenação suficiente para praticar a automasturbação, o que exige uma destreza motora. O fetiche fantasioso masculino que molda a personagem é identificado assim para sua sexualização. No entanto, ao explorar por si mesma o próprio corpo, ela é reprimida, ao mesmo tempo em que seu criador não tem o menor interesse em lhe ensinar nada sobre si mesma.
Vale inclusive ressaltar que todas as vezes que homens abordam personagens femininas em uma fase de autodescoberta sexual com a masturbação é comum escrevê-las tentando obter um orgasmo com penetração. No caso de Bella, foi uma fruta. Claramente uma fantasia irreal masculina propagada desde Freud: onde homens não entendem a existência do clitóris e acham que mulheres precisam contar com a penetração para obter orgasmos.
Por ter seu cérebro ainda em desenvolvimento, Bella não teria entendimento suficiente para saber consentir, assim como uma criança não o possui. Apesar disso, é considerada pronta para o casamento por seu criador. Aqui, a questão do casamento infantil, uma ferramenta de dominação masculina, está claramente posta no filme.
Lógicas predatórias sobre sexualidade
Em mais uma expressão dos fetiches masculinos, o cientista God é questionado se não estava criando Bella para ser sua amante. Ele revela primeiramente que sua condição não permitiria, pois é castrado, o que sugere que ela teria essa finalidade se ele fosse fisicamente apto.
Em seguida, ele justifica: “Meus sentimentos paternos parecem superar meus pensamentos sexuais. […] A sexualidade masculina, na verdade, toda a sexualidade é basicamente imoral”. Essa tentativa de legitimar que o sentimento paterno deve se sobrepor ao desejo sexual do homem, para que os pais não desejem suas filhas.
Quando um terceiro personagem masculino é inserido no filme, o advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), ele apenas ao ouvir sobre o contrato de casamento que aprisiona Bella, tem seu interesse despertado por ela.
Alusão à pedofilia em Pobres Criaturas
Mesmo vendo a personagem nessa atmosfera infantil, seu interesse sexual persiste e ele abusa de Bella tocando sua genital sem consentimento. O primeiro contato sexual dela com um homem se dá na forma desse aliciamento sexual, que também é um aliciamento para fugir com ele. O filme naturaliza essa alusão à pedofilia com a iniciação sexual da mente infantil de Bella com um homem muito mais velho e dominador.
É um fato que uma menina de 12 anos pode ter seu corpo maturado sexualmente após passar pela puberdade, mas isso não significa que sua mente está cognitivamente desenvolvida para consentir. Assim, a cultura da pedofilia advoga para que homens possam ter atitudes sexuais predatórias com meninas jovens, enquanto fingem que elas são “maduras demais para sua idade”.
No filme, eles sequer se dão ao trabalho de tentar justificar que Bella teria essa maturidade avançada. Bella age como adulta apenas na cama, mas socialmente ela apresenta um comportamento infantilizado onde ainda não possui filtro social e não consegue controlar seus impulsos básicos, como, por exemplo, cuspir a comida quando não gosta, não conseguir dissimular em conversas, ser muito literal, não entender que não pode bater num bebê porque o choro dele incomoda, etc.
A vontade de Bella Baxter só é “respeitada” se coincidir com a dos homens
Depois, seu noivo Max também tenta decidir por ela, impondo o casamento e querendo impedi-la de viajar com Duncan. E mesmo com Duncan, o homem que a alicia sexualmente e a leva para ver o mundo, frisando “a vontade” dela, nega-lhe comer até um doce a mais.
Harry também a impede de descer para ver de perto a miséria que a comoveu de longe. Portanto, todos os homens só oferecem escolhas para ela quando são escolhas que podem beneficiá-los.
O filme mostra várias cenas de sexo de Bella com Duncan, mas ela continua usando uma linguagem infantil para descrevê-las: “pular furiosamente”, “jogo de línguas”, “brincar”. Ao escrever para Marx, ela também demonstra dificuldades intelectuais: “Estou bem. Lisboa. Torta de açúcar. Me lambe o dia todo.”, não conseguindo articular frases que sequer se conectem.
Enquanto na cama Duncan vê Bella como adulta, publicamente ele se envergonha de seu comportamento infantilizado e lhe cobra repetir frases prontas. Uma contradição que revela a fantasia masculina de desejar jovens que pareçam adultas o suficiente para se comportar em público, mas mentalmente vulneráveis o suficiente para serem sexualmente aliciadas [cultura da pedofilia].
Bella confirma que ainda possui muitos problemas cognitivos quando não entende o ciúme de Duncan ao contar para ele que recebeu sexo oral de outro homem: “Você também pode brincar comigo, então não estou entendendo esse sentimento complicado”.
A cena coloca Bella como se estivesse no comando da situação, com Duncan chorando e ela o consolando, mas na verdade Bella não entende a complexidade da situação e age de modo automático.
Aprisionamento feminino
É curioso também como o filme não mostra justamente esse sexo com um homem que foi escolha autônoma da personagem. Movido por controlar Bella, Duncan a coloca dentro de um baú e a leva para um cruzeiro no meio do mar, de onde ela não poderia sair sozinha e confessa: “Perdoe meu sequestro, foi por amor” e complementa o tom manipulador “não seja idiota com isso”.
O mesmo homem que a incentivou a conhecer o mundo ao lado dele, agora a aprisiona porque a vontade dela não coincide mais com a dele. No cruzeiro, Bella faz amizades e começa a ter outros interesses, isso deixa Duncan desconfortável. Como assim ela não estava mais vivendo em função de agradá-lo sexualmente?
Bella não compreende alguns sentimentos básicos e talvez por isso, ela ainda não consegue se apaixonar. Enquanto a narrativa mostra homens sentimentais e apaixonados, Bella é uma criatura fria e que brinca com os sentimentos masculinos.
Ao recusar dizer que ama Duncan, ele se mostra irado: “Que diabos está falando? Quem é você? Você não sabe o que são bananas, nunca ouviu falar de xadrez e agora sabe o que significa ‘empiricamente’?” Demonstrando todo o desprezo intelectual que sente por Bella, apesar de o mesmo se dizer apaixonado.
Apesar de irritado por ela estar fazendo progressos intelectuais, numa tentativa de controlá-la novamente, ele a pede em casamento e quando ela não aceita se casar, ele ameaça jogá-la no mar, na velha lógica masculina de enxergar mulheres como objetos. Os homens dizem amá-las mas são facilmente capazes de matá-las na mesma intensidade.
Naturalização do feminicídio
O filme ensaia críticas à misoginia, mas apenas arranha a superfície. Como na cena simbólica de Duncan jogando ao mar os livros que Bella está lendo no convés. Ele diz para ela: “Você está sempre lendo, está perdendo seu jeito adorável de falar”, numa clara tentativa de mantê-la ignorante. No entanto, produz escassas cenas de Bella interagindo em aliança com outras mulheres.
Um exemplo é a cena de Martha lhe dando novamente um livro quando Duncan joga o anterior no mar, e alguns diálogos simples como Bella contestando a leitura de Emerson e dizendo que o autor fala de aperfeiçoamento masculino mas parece não ter nenhum conselho para dar às mulheres. A senhora Martha retruca dizendo “leia Goethe”. Poderia ter indicado uma autora, mas o pensamento de homens é colocado como um caminho intelectual para a emancipação feminina.
Mesmo após Duncan tentar matar Martha, que se torna um obstáculo para o controle da companheira, ato ao qual Bella assiste de forma divertida naturalizando o que poderia ser um feminicídio, é em outro homem abordo do navio, Harry, que Bella busca acolhimento e não em sua amiga Martha. É ele quem lhe mostra as mazelas do mundo ao levá-la para ver a pobreza fora do navio, na cidade de Alexandria.
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Bella Baxter é um experimento masculino
Sua comoção pela pobreza e miséria, e principalmente pelos bebês mortos, mostra novamente como Bella Bexter é um experimento masculino, onde sua moralidade está refém de ser uma mulher necessariamente piedosa e maternal, como esperam dela socialmente.
Seus diálogos com Harry são provocativos, mas enquanto o colocam num lugar de pessimismo, incitam que Bella tem a inocência e o maternalismo necessários para querer mudar o mundo. No entanto, é aos homens que Bella confia para resolver isso por ela [como na entrega do dinheiro aos marinheiros do navio].
Mesmo após ser sequestrada, sofrer ameaças de morte e ser tratada mal, Bella continua tentando ver Duncan com afeição, e permanece presa num relacionamento abusivo com ele.
Ao ser perguntada por Harry porque continua com Duncan, ela responde que acha que sua relação com ele sempre pode melhorar. Mais uma vez o filme ensaia uma crítica ao machismo e às relações abusivas, mas a sua libertação desse relacionamento é se atirar na prostituição.
Prostituição como “escolha”
Quando Bella e Duncan chegam sem dinheiro na cidade de Paris, a prostituição surge como um caminho natural para sobreviver. Apenas para Bella, é claro, já que Duncan prefere passar fome e literalmente joga fora a comida conseguida através do dinheiro dessa atividade.
Ao ser apresentada à prostituição pela cafetina dona do bordel, Bella aprecia unir “o útil [ganhar dinheiro] ao agradável [fazer sexo]”, em mais uma romantização midiática da prostituição, sempre “sexualmente emancipadora” para as mulheres, mas totalmente fora de cogitação para os homens.
“Você se prostituiu, é a pior coisa que as mulheres podem fazer”. A fala de Duncan tenta dar um tom de transgressão ao ato de Bella, mas está apenas reforçando os lugares escolhidos por homens para elas ocuparem: mulheres são propriedade masculina, pública ou privada.
Ela não está desafiando o senso de propriedade privada masculina com suas “escolhas sexuais”, na verdade está passando de “propriedade privada” para uma “propriedade pública”, de menor valor mensurado por eles, porque pode ser acessada por todos.
Um diálogo sugere que ela estaria punindo Duncan com sua suposta transgressão: “A putaria desafia o desejo pela propriedade que os homens têm? Weddburn ficou muito choroso e xingador quando descobriu minha putaria”. Ao que o ex-noivo responderia “é o seu corpo, Bella Baxter, seu para dar gratuitamente”. A lógica masculina de que mulheres são livres exatamente para oferecer o que homens desejam permeia todo o filme, e nunca é contestada.
Não há escolha para Bella Bexter
Ao perceber que não poderia continuar com Duncan, Bella oferece o dinheiro da passagem para ele partir. A cena é mostrada como se ela estivesse novamente no controle da situação e tivesse obrigação de arcar com os custos da partida dele ao abandoná-lo.
Ela assim “escolhe” permanecer no bordel, apesar de não ser apresentada a ela NENHUMA outra alternativa além dessa. Não foi realmente uma escolha, apenas a sua única opção.
As cenas no bordel são as mais repulsivas do filme. Em sua primeira vez atendendo no bordel, Bella é estuprada. Ela avisa que não está pronta e precisa de mais estímulo, mas é ignorada e penetrada dolorosamente. A cena foca em seu rosto sentindo dor e desconforto, mas ao final ela sorri. Mais um estupro naturalizado com sucesso no cinema.
Sua falta de autonomia é demonstrada quando ela precisa atender um homem malcheiroso sem poder recusar, sendo tratada literalmente como uma boneca, onde o homem a posiciona exatamente como deseja.
O filme tenta novamente mostrar um verniz de emancipação de Bella, onde ela busca criar um mínimo de conexão com os clientes para sentir que o ato sexual não é algo mecânico, e questiona o porquê de não serem as próprias prostitutas escolhendo com quem querem ir para a cama.
Violência e fetiche masculino
A cafetina se encarrega de justificar: “Alguns homens gostam que você não goste – Doente! – Mas bons negócios”, e mais uma vez a naturalização do estupro é conceituada no filme, sem qualquer tipo de contraponto. A cafetina também a chantageia usando um bebê: se der a Bella a opção de “escolher” os clientes, haverá menos dinheiro e o futuro do bebê será prejudicado.
Mais uma vez, o lado maternal de Bella é posto à prova, e ela cede. É nesse diálogo que a cafetina explica: “Devemos trabalhar, devemos ganhar dinheiro, mas o mais importante: devemos experimentar tudo”.
Esse diálogo direcionado a Bella é uma síntese do que esperam das mulheres, tanto na prostituição como na vida comum: que aceitem todos os tipos de violências e fetiches masculinos, para assim, estarem ilusoriamente no controle da situação.
Ao acharem que podem escolher se auto-objetificar e naturalizar que a sexualidade feminina seja apenas a extensão de desejos degradantes masculinos, as mulheres buscam algum nível de controle sobre si mesmas e ao que estão sendo submetidas.
Assim, é legitimado o que acontecerá a seguir: seguem cenas de Bella participando de fetiches masculinos, inclusive com referências ao BDSM, e internalizando que isso contribui para sua própria emancipação sexual, quando ela, em nenhum momento, está dirigindo seus próprios desejos, apenas realizando os masculinos.
Menores de idade e bordel como “aprendizado sexual”
Uma das cenas mais deploráveis do filme é uma tomada explícita com atores menores de idade levados ao bordel para “aprendizado sexual”, normalizando a introdução precoce da sexualização dos meninos [cultura da pedofilia] numa alusão à pornografia, acessada por meninos e adolescentes, aceita socialmente como “padrão” de masculinidade.
Essa cena pode ser questionada para além do roteiro, e ser apontada sobre o quão ético é expor atores infantis a esse conteúdo. Também há uma referência clara à pornografia, assimilada pela protagonista que sugere um toque indesejado ou “sufocar” o parceiro quando deseja aumentar o prazer. As crianças assistem ao ato sexual e Bella age sorrindo, piscando e naturalizando a situação.
Em novo encontro com Duncan, ela defende continuar se prostituindo. Aqui acompanhada de sua amiga também prostituída e que se autointitula uma socialista, o filme prega uma peça no telespectador: os socialistas eram contra a prostituição. É contraditório que uma socialista se prostitua.
Em um novo encontro com Duncan, ela defende continuar se prostituindo, acompanhada de sua amiga também prostituída, que se autointitula uma socialista. Neste ponto, o filme prega uma peça no telespectador: os socialistas historicamente eram contra a prostituição. Surge a contradição de uma socialista se prostituir.
Aqui, o filme se torna panfletário e não pode mais ser considerado apenas entretenimento livre de politização, ao colocar uma personagem politizada e prostituída para validar as “escolhas de Bella”. É a própria Bella quem pontua, com conceitos marxistas, a defesa dessa atividade: prostitutas são o “próprio meio de produção”.
Ausência de sororidade em Pobres Criaturas
A única cena de sexo lésbico do filme não é antecedida por nenhum desenvolvimento afetivo-sexual entre as personagens. Apresentadas num contexto apenas de companheiras de bordel e amigas, as personagens são simplesmente empurradas para uma cena de sexo sem qualquer preâmbulo. É notório o fetichismo masculino de se apropriar visualmente da relação sexual entre as duas e colocar a cena no filme como um capricho do diretor.
Para sair do bordel, sua escolha é intermediada novamente pelo chamado de um homem: seu criador, que está doente. Ao retornar a casa, as duas mulheres presentes – a governanta e o novo experimento do médico – a recebem chamando-a de “puta”. Não há sororidade entre elas, Bella está quase sempre isolada de outras personagens femininas.
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O que resta às mulheres se não o casamento?
Ao reencontrar o ex-noivo, em uma guinada supostamente “empoderada”, é Bella quem retoma a questão do casamento e pede Max para casar com ela. Mas por que Bella sentiria vontade de casar com aquele homem que esteve tanto tempo afastada e que agora mal a conhecia?
O roteiro com viés masculino explica. Depois de se aventurar no mundo, o que resta às mulheres se não o casamento? É nesse retorno que Bella é finalmente informada sobre sua condição: a morte da mãe e seu cérebro de bebê. Primeiro, ela mostra repulsa ao seu criador, mas isso é logo esquecido.
Segue-se a cerimônia de casamento com Max, que é invadida por Alfie, o ex-marido de Victoria, a mulher dona do corpo de Bella Baxter. Ele reclama ter sua esposa de volta [que na verdade é sua própria filha no corpo da mãe] e Bella decide ir embora com ele. Esse fato não é mencionado nem por Bella, nem por nenhum dos dois homens presentes [GOD e Max] em prol de alguma ética sobre um pai se relacionar com a filha.
Ao voltar para a casa que foi de sua mãe, Bella percebe que sua mãe Victoria estava num relacionamento abusivo, e o suicídio foi fruto dessa infelicidade conjugal. Ela menciona ir embora, mas é sempre ameaçada de morte. Finalmente, ao escutar o pai falando com um médico sobre retirar seu clitóris e todo o “pacote infernal” para acalmá-la da histeria, ela se rebela para ir embora.
Num dos únicos momentos de autonomia sem mediação masculina da personagem, ela consegue dopá-lo e fugir de seu controle. No entanto, pede ajuda a Marx para consolidar seu plano final. Mais uma vez um homem intermediando Bella a fazer algo em sua narrativa.
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A continuidade do legado masculino
Ao final, Bella decide se tornar médica. O roteiro opta por não concretizar isso, deixando apenas a expectativa de que isso vai acontecer. No entanto, o primeiro experimento de Bella é transplantar o cérebro de um cabrito para o corpo de seu pai. Que tipo de médica Bella irá se tornar se está engajada em experimentos tão antiéticos como ao que ela própria foi submetida? Ela se torna o mesmo que seu criador.
O final ilude o telespectador ao trazer um cenário idílico de jardim onde Bella aparece cercada da governanta, a outra pobre criatura, e sua ex-companheira de bordel, forjando uma aliança feminina artificial, pois permanece hierarquizada, subalternizando suas iguais. E claro, seu ex-noivo Max.
Afinal, onde uma mulher poderia chegar sem um homem auxiliando em sua jornada? Bella Baxter é a pobre criatura que foi moldada por seu criador e permanece material e simbolicamente na casa dele. Não há libertação alguma, apenas a continuidade natural de seu legado.
Autora convidada: Ingrid Peixoto é arquiteta e ativista feminista. Fundou em 2018 o projeto @leiafeministas para ler e divulgar teoria feminista com leitoras de todo o Brasil. Desde 2020, pesquisa sobre mulheres arquitetas e faz palestras sobre arquitetura e gênero. Em 2023, ministrou o curso Arquitetas Antes do Século XIX em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil-IAB. É Mestra em História da Arquitetura, do Urbanismo e da Urbanização pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com foco na historiografia das arquitetas.