Frankenstein é uma autobiografia de Mary Shelley?

Frankenstein é uma autobiografia de Mary Shelley?

Mary Shelley (1797-1851) é conhecida como a autora do primeiro livro de ficção científica do mundo, o clássico Frankenstein (1818). O trabalho mais notável de Shelley não tem apenas um, mas dois protagonistas: Victor Frankenstein e sua criação, que o imaginário popular nomeia erroneamente com o sobrenome de seu criador. 

A obra fala sobre um cientista que desafia a natureza ao criar vida a partir da morte. Após passar muito tempo trabalhando na criação de um novo ser vivo com partes de pessoas já falecidas, seu resultado final acaba sendo diferente do esperado: um monstro gigante e horrendo, que apavora as pessoas que cruzam seu caminho.

Contudo, a nova criatura assombrosa tem sentimentos como todos os seres humanos e passa a sentir-se rejeitada e odiada pelo próprio criador. As únicas respostas encontradas para lidar com a situação são ameaças e perseguição a Victor Frankenstein, que se vê obrigado a criar um par para sua criação, para que não viva eternamente solitário e amargurado.

Ator britânico Boris Karloff em uma das mais famosas adaptações cinematográficas de Frankenstein
Ator britânico Boris Karloff em uma das mais famosas adaptações cinematográficas de Frankenstein

Embora geralmente lida como uma obra de ficção científica que foge da realidade, o clássico do romantismo gótico Frankenstein pode ser interpretado de uma maneira ainda mais profunda: uma espécie de autobiografia da autora.

A vida pessoal de Mary Shelley foi marcada pela morte

Filha de dois grandes escritores e pensadores ingleses, Mary Wollstonecraft Shelley tem a literatura correndo em suas veias.

Sua mãe, Mary Wollstonecraft (1759-1797), é considerada “a mãe do feminismo” e tem obras de grande valia para estudos sociológicos até os dias de hoje, sendo a principal delas Uma reivindicação dos direitos das mulheres (1792).

Seu pai, William Godwin (1756 – 1836), utilizava críticas sociais como principais pautas de suas escritas e tem como principal criação o livro Inquérito sobre justiça política (1793).

Perda prematura da mãe

Apesar de ter grande admiração pela figura e convicções de Wollstonecraft, a autora de Frankenstein não conviveu com a mãe. Isso porque sua mãe faleceu dias após o nascimento da única filha, devido a complicações do parto.

Apesar das normas morais da sociedade do século XVIII, que restringiam o acesso das mulheres à educação formal oferecida aos homens, Mary foi educada pelo pai, que não poupou esforços para que sua filha se tornasse uma intelectual, tal qual ele e a falecida esposa.

Contudo, não foi tão fácil e romantizado quanto parece. Quando o pai se casou novamente, a jovem estudiosa não se dava bem com sua madrasta, que já tinha duas filhas e não aprovava o tratamento estimado que Godwin atribuía à própria filha.

Retrato de Mary Wollstonecraft Shelley
Retrato de Mary Wollstonecraft Shelley

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Início do romance e casamento controverso

Na adolescência, a jovem estudiosa conheceu Percy Shelley (1792–1822), grande nome do romantismo inglês. Na época, ele já era casado, mas o matrimônio prévio com Harriet Westbrook Shelley (1795-1816) não impediu que o autor se apaixonasse de forma recíproca pela jovem garota.

O romance, no entanto, aconteceu por debaixo dos panos da sociedade europeia, que, entre todas as condenações morais impostas na época, julgava o divórcio. O casamento, portanto, aconteceu apenas após a morte de Harriet, em 1816.

A primeira filha de Mary e Percy, Clara, nasceu antes do casamento, porém faleceu dias depois. Após a perda, o casal teve mais três filhos: William (1816–1819), Clara Everina (1817–1818) e Percy Florence (1819–1889).

Em 1822, Percy, o pai, morreu no naufrágio do barco onde viajava durante uma tempestade. Na época, Mary vivia na Itália com o marido e o único filho sobrevivente, e após a perda do esposo, retornou à Inglaterra, onde escreveu grandes obras até 1851, quando faleceu por conta de um tumor cerebral.

Pintura retratando o casal Mary e Percy Shelley, por William Powell Frith (1877)
Pintura retratando o casal Mary e Percy Shelley, por William Powell Frith (1877)

Tragédias pessoais

A trajetória de 53 anos da romancista foi marcada por dificuldades e reviravoltas, mas, acima de tudo, por perdas. Desde seus primeiros dias de vida, precisou lidar com a ausência física da mãe, e depois de adulta, aprender a lidar com a falta de três dos seus quatro filhos, do marido e do pai, que faleceu quando a escritora tinha 39 anos. Isso sem contar que pode casar-se com o homem que amava apenas após a morte da primeira esposa dele.

É impossível conhecer a história daquela que é considerada a “mãe da ficção científica” e não afirmar que a morte foi a grande protagonista de sua existência. E é exatamente nessa afirmação que se baseia a teoria de que Frankenstein é, na verdade, a autobiografia de sua autora.

Mary se reconhece como criador e criatura em Frankenstein

O clássico do romance gótico reflete experiências, pensamentos e emoções pessoais de sua autora camuflados em personagens que não se encaixam em uma sociedade realista. Frankenstein trata-se de uma janela direta para a história de Mary Shelley e os desafios que enfrentou durante toda a sua vida.

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A perda e a parentalidade

A perda prematura da mãe deixou uma marca inapagável na escritora, que criou uma conexão com a parentalidade retratada em Frankenstein. A criatura, abandonada por seu criador, sofre de uma ausência de orientação e afeto, refletindo sua experiência de crescer sem sua mãe.

Quando o monstro descreve a rejeição que sente vinda de Victor Frankenstein, pode-se interpretar isso como um sentimento involuntário que a autora experienciou ao supor que, ao morrer dias após o parto, Wollstonecraft a tinha rejeitado.

Não importava o quanto Mary corresse atrás da aceitação e do afeto materno, ela jamais os teria. Adicionado a isso, vem a culpa, como se o fato de a morte da mãe ter ocorrido em decorrência de complicações no parto fosse inteiramente culpa de Shelley.

“Diante de tanta incompreensão e injustiça, tangido pela revolta,

assassinei criaturas inocentes, que nem mesmo sabiam da minha existência.

Lancei meu criador, digno, em todos os sentidos, do amor e admiração dos

homens, aos meandros da mais completa desgraça.”

Retrato de Mary Wollstonecraft, por John Opie (1797)
Retrato de Mary Wollstonecraft, por John Opie (1797)

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Culpa e tristeza

Também é possível reconhecer os sentimentos de culpa e tristeza pela perda de sua primogênita nas atitudes e sentimentos de Victor Frankenstein. Shelley se identifica com o sentimento de culpa e sofrimento do cientista pelas tragédias que ocorrem como resultado de suas ações.

Como parte da análise de Frankenstein como uma autobiografia, é importante observar como tanto o criador quanto o monstro explicam seus posicionamentos de forma que suas ações são facilmente validáveis.

Não existe herói ou vilão na relação dos protagonistas, assim como não existem heróis ou vilões nas relações humanas, porque ambos são representações da mesma pessoa: Mary Wollstonecraft Shelley. Ela valida tão bem os sentimentos e as decisões dos personagens porque já se sentiu exatamente como eles.

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Interpretação do final da obra

Uma das interpretações para o final da história, baseada nesta teoria, é a de que o perseguidor opta pelo fim da própria vida apenas após a morte de sua principal vítima, porque, como são baseadas na mesma pessoa, no caso, sua autora, não existe possibilidade da existência de um sem a coexistência do outro.

Não existe cientista sem criatura, assim como nenhuma pessoa se resume apenas ao bem e ao mal. Os traumas de uma permanência na terra marcada pela morte são simultâneos às alegrias de uma vida com pessoas amadas. Não há ser humano totalmente bom, nem totalmente ruim. Como qualquer pessoa em qualquer época da humanidade, a romancista foi assombrada por seu monstro e seu criador, que não eram ninguém mais do que ela mesma.

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Por fim, utilizando as palavras do capitão Robert Walton, que narra a história do cientista e sua criatura em cartas para sua irmã Margaret, Mary Shelley, assim como Victor Frankenstein, ironicamente apenas descansou de uma jornada repleta de perdas e tragédias pessoais quando a própria morte lhe alcançou.

“É meu desejo consolá-lo, mas como é possível aconselhar a retornar à plenitude da vida a alguém tão duramente atingido pela desgraça e tão destituído de esperanças?

Oh, não! Ele só poderá encontrar consolo quando tiver aquietado o torvelinho de seu espírito na paz da morte.”

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Uma jornalista apaixonada por música, literatura e cinema. Seus maiores hobbies incluem criar playlists para personagens fictícios e falar sobre Taylor Swift nas redes sociais.
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