Frankenstein: o horror está vivo no mangá de Junji Ito!

Frankenstein: o horror está vivo no mangá de Junji Ito!

De uma faísca fez-se a aterradora criação: é admirável imaginar como um desafio horripilante, em uma noite tempestuosa, trouxe à tona uma das histórias mais instigantes e influentes da literatura de horror e ficção científica do século XIX, cujas nuances, direta ou indiretamente, reverberam em outras mídias até os dias de hoje. Victor Frankenstein e seu monstro solitário e questionador, personagens da escritora britânica Mary Shelley (1797-1851), voltam para assombrar os leitores no mais novo lançamento da editora Pipoca e Nanquim, o mangá Frankenstein, de Junji Ito, traduzido por Drik Sada.

Cena de "Frankenstein", de Junji Ito
Cena de “Frankenstein”, de Junji Ito.

A influência de Mary Shelley e dos personagens de sua obra magna na cultura pop é sempre celebrada e fonte de inspirações inesgotáveis. Das inúmeras adaptações de filmes (como os clássicos protagonizados por Boris Karloff, em 1931, e por Elsa Lanchester, em 1935, ambos dirigidos por James Whale), séries (Penny Dreadful, dirigido por Coky Giedroyc, Dearbhla Walsh, Juan Antonio Bayona e James Hawes, 2014) e passando por releituras literárias (A Sombria Queda de Elizabeth Frankenstein, Kiersten White, editora Plataforma 21, 2018), destaca-se também, agora, uma nova roupagem na versão mangá, em uma edição brasileira muito aguardada, adaptada e desenhada por Junji Ito.

O autor, mangaká mais conhecido pelo seu trabalho primoroso em Uzumaki (Editora Devir, 2018), revive o clássico de Mary Shelley no já conhecido traço repleto de tensão, terror e body horror. Este é um dos quatro mangás dele lançados pela Pipoca e Nanquim, que conta ainda no catálogo com o primeiro trabalho de Ito, Tomie (volumes 1 e 2) e o perturbador A Sala de Aula que Derreteu, ambos traduzidos por Drik Sada.

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Cena de "Frankenstein", de Junji Ito.
Cena de “Frankenstein”, de Junji Ito.

Na trama, acompanhamos Victor Frankenstein, autodidata desde a infância e explorador do mundo que o cercava, que mais tarde torna-se estudante de ciências naturais, pois sempre fora apaixonado pelos mistérios e possibilidades que elas evocavam. Em uma de suas aulas na universidade, acerca de técnicas de como gerar vida, Victor tem acesa em seu coração a soturna chama da curiosidade e da vontade de fazer um experimento para colocar em prática o que fora postulado por seu professor (não pensando um segundo sequer nas drásticas consequências).

Ele, então, reúne partes de corpos roubadas de um cemitério, une-as uma a uma e dá início ao que se tornaria, dentro de poucos instantes, o início de sua perdição: o monstro, grotesco, incompreendido e aterrorizante, vive e, com ele, morre a cada momento um pouco da sanidade do protagonista – e de seus entes queridos.

Frankenstein vai além de uma obra de horror e, junto ao clássico O Mundo Resplandecente de Margaret Cavendish (Plutão Livros, 2019), precursora da ficção científica que conhecemos hoje em dia: os assuntos levantados na história, como o medo, a solidão, a aversão ao que é diferente e a ambição humana, são apenas alguns dos fatores que tornam a obra tão atual e cultuada por fãs de ambos os gêneros e que, nos desenhos de Junji Ito, ganham toda a dramaticidade gráfica que o livro carrega em seu cerne.

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Mangá Frankenstein
Cena de “Frankenstein”, de Junji Ito.
Junji Ito pela Pipoca e Nanquim
Cena de “Frankenstein”, de Junji Ito.

AVISO: a resenha contém spoilers do mangá

A adaptação do autor inicia no mesmo ponto do livro de Shelley: Victor é encontrado por marinheiros no Polo Norte, cuja balsa ficara presa no gelo, quase morto por hipotermia. Ao ser resgatado por eles, fica aos cuidados do capitão Walton, para quem confia toda a sua história e conta os percalços que o levaram até ali, em busca da criatura.

É pelos olhos do protagonista que acompanhamos os seus anos iniciais e a curiosidade pelo mundo que o rondava desde então, a vida tranquila em família e a promessa de uma união futura com a bela Elizabeth, órfã adotada pela mãe, e a mudança da Suíça para a Alemanha, local onde os estudos o tomam por completo e são o ponto decisivo para a mudança drástica em sua vida. Assim, o monstro, mais humano do que o próprio criador, colocará à prova toda a sua vivência e ambições, seus planos e os da família e amigos, em reviravoltas inquietantes e angustiantes que surpreenderão tanto os leitores de Shelley quanto os que já conhecem as narrativas gráficas de Junji Ito.

Monstros e terrores para além de Frankenstein

As prolíficas criações originais de Ito também estão presentes no mangá, dispostas em dez histórias, além da que dá título à obra, cujos títulos são: “Pescoço Imaginário”, “Pântano dos Espíritos Vivos”, “Amizade por Correspondência”, “O Invasor”, “Contos Bizarros de Oshikiri”, “Contos Bizarros de Oshikiri: A Parede”, “Funeral da Boneca do Inferno”, “Imobilizador Facial”, “Non-non, a Chefona” e “Esconde-esconde da Non-non, a Chefona”.

A maioria dos contos acompanha os infortúnios ocorridos na vida Oshikiri, um estudante que, atormentado pela presença e personalidade do amigo, Najima, cuja beleza chama a atenção de todas as garotas do colégio, decide assassiná-lo e enterrá-lo nos fundos de sua casa, como forma de silenciar seus próprios complexos de inferioridade e os demônios interiores.

Cena das histórias de Oshikiri, personagem de Junji Ito.
Cena das histórias de Oshikiri, personagem de Junji Ito.
Resenha de Frankenstein, mangá de Junji Ito
Abertura de uma das histórias de Oshikiri, personagem de Junji Ito.

No entanto, Oshikiri acaba despertando males que transcendem a sua própria compreensão, fazendo-o questionar sua sanidade e a das pessoas que com ele convivem. Esta história, que abre o mangá, lembra muito a do conto O Coração Denunciador (ou “delator”, “revelador”, em algumas traduções – do inglês, The Tell-Tale Heart), de Edgar Allan Poe, em que o protagonista, tomado por uma fúria incompreensível, assassina e esconde as partes do corpo do vizinho idoso por sentir a perseguição de seu olhar cego, mas que mesmo após a morte dele é assombrado pelas batidas de seu coração.

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O nível de loucura de Oshikiri escala para episódios e revelações surpreendentes nas próximas histórias, que, assim como em Uzumaki, são apenas a ponta de uma montanha de acontecimentos terríveis, com direito a um pântano assombrado, adolescentes possuídas por espíritos malignos, uma casa que, na verdade, é um portal para outra dimensão e doppelgangers (palavra alemã para “duplo ambulante”) macabros. Em “Amizade por Correspondência”, Oshikiri conhece Kazuko Satomi, uma jovem que estuda em sua escola e que por também ser solitária, logo se torna amiga do rapaz.

A amizade dos dois ia bem, até que Kazuko conta a ele sobre as amizades por correspondência com as quais começara a conversar: em um primeiro momento, as amigas parecem ser descontraídas e animam a garota, mas não demora muito para mostrarem a verdadeira face – delas mesmas e da própria Kazuko.

Em sua origem, a palavra monstrum diz respeito “àquele que revela, àquele que adverte”. Tanto o monstro criado por Victor, em Frankenstein, quanto as criaturas sobrenaturais que aparecem nas histórias de Oshikiri, podem ser lidos como frutos das próprias ânsias e frustrações de seus criadores. Enquanto de um lado temos o monstro de Frankenstein, que traz luz sobre os complexos de superioridade de Victor, sua vontade de desafiar divindades ao ser capaz de também gerar vida pelas próprias mãos (e, por consequência, à sua imagem e semelhança, revelando o mais putrefato e íntimo de sua alma), temos do outro Oshiki, que no ápice da adolescência, impopular e com apenas um amigo que é o seu total oposto, acaba atormentado pelos fantasmas da rejeição, do medo, da ausência das figuras paterna e materna e do seu próprio interior adormecido, escondendo uma faceta ameaçadora que ele próprio nunca ousara reconhecer.

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São obras como Frankenstein, de Junji Ito, que, como sugerido por Jeffrey Cohen em seu artigo A Cultura dos Monstros: sete teses, fazem com que o corpo do monstro incorpore “de modo bastante literal – medo, desejo, ansiedade e fantasia (ataráxica ou incendiária), dando-lhes uma vida e uma estranha independência”. O corpo do monstro, seja ele literal dentro da obra, ou fruto da imaginação e projeção dos personagens, é consequência direta da cultura na qual se inserem; têm-se, portanto, a “corporificação de um certo momento cultural”; estas obras são fundamentais e adotam um caráter atemporal, que explica muitos dos costumes e particularidades dos nossos tempos.

Nas quatro últimas histórias, o autor deixa Oshikiri um pouco de lado, lidando com as aberrações de seu universo, para apresentar contos curtíssimos que fecham com maestria o mangá. São narrativas rápidas e fluídas que possibilitam um respiro após a apreciação e leitura apoteótica de Frankenstein, mas que não devem em nada quanto ao brilho e à genialidade do autor.

Cena de "Funeral da Boneca do Inferno", de Junji Ito
Cena de “Funeral da Boneca do Inferno”, de Junji Ito.
Monstros e terrores para além de Frankenstein
Cena de “Imobilizador Facial”, de Junji Ito.
Páginas de Frankenstein, lançado pela Pipoca e Nanquim
Cena de “Non-non, a Chefona”, de Junji Ito.

Em “Funeral da Boneca do Inferno”, o pai e a mãe de uma garotinha passam a ser atormentados pelas mudanças físicas sobrenaturais que a filha começa a sofrer; em “Imobilizador Facial”, uma jovem precisa ter o rosto examinado em um equipamento desconfortável e claustrofóbico, mas não contava com uma adversidade em seu caminho. E, por fim, em “Non-non, a Chefona” e “Esconde-esconde da Non-non, a Chefona”, os leitores são apresentados à Non-non, a cadelinha de Junji Ito, que como o próprio sugere, é quem dita as regras na casa do autor, com muito fofura – e terror.

A monstruosidade nos detalhes de Frankenstein

A edição de Uzumaki da Pipoca e Nanquim apresenta um projeto gráfico cuidadoso e de encher os olhos: ela tem uma jacket (uma sobreposição utilizada, na maioria das vezes, em livros de capa dura) contendo a capa original do mangá e, na brochura do exemplar, têm-se as imagens de Victor Frankenstein de um lado e, do outro, a face do monstro, em detalhes alaranjados, além do preto e branco habitual do gênero.

O papel de impressão do mangá é agradável ao toque e não permite que o outro lado das páginas seja visto, o que promove uma melhor experiência aos leitores quando os grandes quadros de revelações do autor dentro das histórias aparecem. Como um agrado ao público, os mangás de Junji Ito vêm com um marcador de página exclusivo para uma melhor imersão (e organização) da leitura.

Detalhes da edição de Frankenstein da Pipoca e Nanquim.
Detalhes de “Frankenstein”, de Junji Ito.
Detalhes de “Frankenstein”, de Junji Ito.

O mangá, ainda, tem sentido de leitura oriental e conta com os perfis de Junji Ito e de Mary Shelley ao final da obra.

Detalhes da edição de Frankenstein da Pipoca e Nanquim.
Detalhes de “Frankenstein”, de Junji Ito.

Ademais, outras obras do autor chegarão à Pipoca e Nanquim em 2022: as publicações dos títulos Sensor, Shiver e Smashed, aclamados pelo público, foram anunciadas no final de 2021 e trarão ainda mais terrores para os novos e antigos fãs do autor no Brasil. Vale lembrar que as obras do autor não são recomendadas para quem não se sente confortável vendo imagens gráficas minuciosas de mutilações, assassinatos e body horror no geral.

Fontes/créditos:

  • COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In: COHEN, Jeffrey Jerome (Org). Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Pedagogia dos monstros. Os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 25-60.
  • SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou o Prometeu Moderno (Deluxe Edition). 1. ed. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
  • Fotos por Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Frankenstein

Autor: Junji Ito

412 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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